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A opção de compor o corpus de análise deste estudo com canções coletadas no município de Antônio Prado justifica-se pelo fato de que os grupos pesquisados pelo Projeto Ecirs, em número de onze7, mostraram-se, no contexto, os mais ricos em repertório8.

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Os grupos informantes em Antônio Prado foram Coro Linha Cândida do (travessão) 30, Coro Linha Silva Tavares, Coro Linha Camargo, Os Murialdinos, Coro São Roque, Coro Virgínio Panozzo, Coro Nova Treviso, Coro Linha Paranaguá, Coro Borgo Forte, Coro Santo Isidoro e Coro Santana.

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Ribeiro (2004, p. 344-345) assim relata a coleta de canções em Antônio Prado: “A primeira etapa do registro dos cantos populares foi realizada em Antônio Prado, em setembro de 1985. Os contatos iniciais com os diversos grupos deixaram entrever que não seria tarefa de uma ou duas semanas que daria conta do registro de tão amplo repertório. Nessa oportunidade, confirmou-se o predomínio dos cantos de matriz dialetal italiana sobre aqueles

Conforme relata Ribeiro (2004, p. 343-345) em Antônio Prado “conservou-se um número expressivo de cantos que não foram encontrados, até o momento, em outras áreas de pesquisa”. Além do que a autora define como “preciosas raridades” em termos de repertório, os grupos apresentaram elementos tradicionais do canto, por exemplo, “diversidade de execução”, a presença do il primo, as dissonâncias que indicam uma menor disciplina ocasionada pela inexistência de um regente e a “ausência de acompanhamento musical”, esta última característica identificada como “um dos modos mais antigos de cantar”.

A seleção seguiu os seguintes critérios: 1. integrar o acervo de canções coletadas nos onze grupos pertencentes ao município de Antônio Prado à época do registro etnográfico realizado pelos pesquisadores do Projeto Ecirs; 2. fazer alusão à mulher, a fim de que o questionamento proposto pela pesquisa pudesse ser investigado; 3. possibilitar a análise de construções de duplo sentido que caracterizam parte das canções localizadas na RCI. A partir da leitura de aproximadamente 174 canções, total de exemplares do acervo de Antônio Prado, foram inicialmente selecionadas sete. As canções escolhidas são representativas e destacam-se no conjunto por razões distintas, que serão explicitadas no decorrer da análise.

Cara mama la spósa l’è qui (Cara mãe a noiva chegou), gravada pelo Coro Linha Cândida do (travessão) 30, é uma canção ritualística de bodas e está entre os cantos raros apontados por Ribeiro (2004, p. 343). Uma segunda versão desta canção, de nome Mama mia la sposa la è qui (Minha mãe a noiva chegou) foi gravada pelo Coro da Linha Camargo e está também reproduzida no disco Mèrica, Mèrica II, – Cantos populares da imigração italiana, editado pelo Projeto Ecirs. O disco é alusivo ao centenário de criação da colônia Antônio Prado, comemorado no ano de 1986 9, e resultado da pesquisa realizada no município. Esta canção é o objeto central da análise proposta. No capítulo destinado à análise e interpretação das canções estas duas versões locais são colocadas em diálogo com duas versões italianas,

brasileiros, da moderna cultura de massa, já verificado em outras áreas de pesquisa. A faixa etária dos informantes variava dos 22 aos 68 anos de idade, à exceção de um grupo da Linha Castro Alves... No mês de junho de 1986, prosseguiu-se a documentação do canto popular nas mesmas áreas iniciadas no ano anterior. Todas as gravações foram realizadas à noite por ser esse o horário disponível, depois de um dia de trabalho na roça, na boléia de um trator ou nos afazeres domésticos. Os locais para o registro foram os mais variados: a pequena capela do lugar, a cozinha do salão comunitário, ou, na maioria das vezes, a casa de um dos integrantes do grupo. Quando as gravações se realizaram em casa de uma das famílias, cumpriu-se, como um ritual, o velho costume da colônia italiana: Fez-se o filó. E durante o filó, onde não faltaram o vinho, o pão, o salame, o queijo, os crostoli, as pipocas, foram se encadeando novas canções, ora em solo, ora em dueto, e, no mais das vezes, em coro. De gravador já desligado, reforçava-se a constatação: ainda não seria daquela vez que se poderia fazer o índice dos cantos populares da imigração italiana em Antônio Prado. Mesmo porque havia grupos nesse município que possuíam um repertório de mais de cem canções. Um dos informantes da Capela São Roque, durante a gravação, foi retirando dos bolsos do paletó pequenos pedaços de papel onde havia anotado a relação de alguns cantos que ele cantava, por inteiro, sem esquecer nenhum verso! [sic]. Eram ao todo 118 canções!” 9

Informação retirada da contracapa do disco Mèrica, Mèrica II – Cantos populares da imigração italiana, editado pelo Projeto Ecirs da Universidade de Caxias do Sul.

ambas documentadas por pesquisa etnográfica realizada por Leydi (1978) e Glauco Sanga (1979), respectivamente, na região lombarda: Mamma mia la sposa l'è che (Minha mãe a noiva chegou) e Mama mama la spùsa l’è che (Mãe, mãe a noiva chegou).

La sposina (A noivinha), cantada pelo Coro Nova Treviso, é uma canção cumulativa de bodas e está entre os exemplares considerados raros por Ribeiro (2004, p. 343). Se la togo picola (Se escolho uma baixinha), gravada pelo Coro Santana, integra o repertório do disco Mèrica, Mèrica II e Marito Mio (Marido Meu), gravada pelo Coro São Roque, são canções classificada como cômicas. Bernardo bel Bernardo (Bernardo, belo Bernardo), gravada pelo Coro Virgínio Panozzo, é uma canção narrativa. Além de tematizar a mulher e de ser considerada uma das canções raras do acervo de literatura oral do Memorial do Projeto Ecirs, foi selecionada por ser considerada a canção preferida de uma das informantes ouvidas durante a pesquisa.

Todas as canções do corpus 10 exceto Vuto Sapere... (Queres saber...) integram o acervo oficial do Memorial do Projeto Ecirs. Esta última, apesar de não fazer inicialmente parte do acervo, foi incluída por ser considerada importante no conjunto de canções

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A gravação de canções do repertório do Coro São Roque foi realizada em 19 de julho de 1986. Participaram oito cantores: Ari Tondello (33 anos), Ernesto Stefani (65 anos), Geraldo Vasco Tondello (54 anos), João Dosolin Filho (57 anos), José Francisco Brusamarello (60 anos), José Tondello Sobrinho (60 anos), Mário Aquiles Tondello (59 anos) e Valdir Antônio Tondello (61 anos). As idades informadas correspondem à idade dos cantores no ano da coleta. Levantamento realizado em abril de 2007 mostrou que cinco dos oito informantes do grupo já haviam falecido (Ernesto, João, José Tondello Sobrinho, Mário e Valdir). Foram registradas neste grupo 21 canções, entre as quais Marito Mio. A gravação de canções do repertório do Coro Santana foi realizada em 23 de julho de 1986. Participaram nove cantores: Delfino José Bellé (44 anos), Félix José Stefani (42 anos), Firmino Tondello (49 anos), Guiglielmo Foralozzo (59 anos), José Coronetti (57 anos), Ulisses Viapiana (54 anos), Valdecir Foralozzo (32 anos), Valdemar Foralozzo (22 anos) e Valdir Foralozzo (37 anos). Levantamento realizado em abril de 2007 mostrou que dois dos nove informantes do grupo já haviam falecido (Guiglielmo e Ulisses). Foram registradas neste grupo nove canções, entre as quais Se la togo picola (também catalogada como La dona picola no la voi nò ). A gravação de canções do repertório do Coro Virgínio Panozzo foi realizada em 26 de julho de 1986. Participaram nove cantores: Angelina Panozzo (58 anos), Arilde Panozzo (57 anos), Helena Panozzo Tonet (45 anos), João Panozzo (39 anos), José Panozzo (57 anos), Lídia Panozzo Rigo (53 anos), Luiz Panozzo (59 anos), Maria Panozzo Cansan (49 anos) e Rita Panozzo Appio (43 anos). Levantamento realizado em abril de 2007 mostrou que três dos nove informantes do grupo já haviam falecido (José, Luiz e Maria). Foram registradas neste grupo 72 canções, entre as quais Bernardo bel Bernardo. A gravação de canções do repertório do Coro Linha Cândida do 30 foi realizada em 25 de julho de 1986. Participaram cinco cantores: Graciema Simeone Serigotto (52 anos), Natalício Simeone (61 anos), Pedro Paulo Mussato (65 anos), Silvestre Mario Zulian (68 anos) e Teresinha Simeone Francescato (50 anos). Levantamento realizado em abril de 2007 mostrou que dois dos cinco informantes do grupo já haviam falecido (Pedro e Silvestre). Foram registradas neste grupo oito canções, entre as quais Cara mama la spósa l’è qui e Ma pin ma pon ma pa (também catalogada como Se la togo picola e como La dona picola no la voi nò). A gravação de canções do repertório do Coro Linha Camargo (data não informada) teve a participação de seis cantores: Antônia Torresan Venturin (49 anos), Fiorentina Frigotto (47 anos) Gessi de Rossi Cavassola (39 anos), Hilário Frigotto (48 anos), Santina Susin (58 anos) e Valdemar Toressan (33 anos). Foram registradas neste grupo nove canções, entre as quais Mama mia la sposa la à qui. A gravação de canções do repertório do Coro Nova Treviso foi realizada em 19 de julho de 1986. Participaram oito cantores: Adelar Mercio Peliciolli (49 anos), Adelina Scapin Lovat (45 anos), Angelina Panozzo (58 anos), Carmela Pigatto Peliciolli (52 anos), João Panozzo (39 anos), José Appio (49 anos), Rita Panozzo Appio (43 anos) e Silveste Tonin (63 anos). Levantamento realizado em abril de 2007 mostrou que dois dos oito informantes do grupo já haviam falecido (Carmela e Silveste). Foram registradas neste grupo quatro canções, entre as quais La sposina.

selecionado. Chegou ao conhecimento da autora do presente estudo em função de ter integrado o projeto “Canções Ilustradas” do Atelier de Artes Visuais de Antônio Prado, em 1995, em que foram feitas “interpretações plásticas de [26] antigas canções italianas” 11.

A canção foi posteriormente coletada em entrevista realizada pela autora, em sete de abril de 2006, na cidade de Nova Roma do Sul - RS. A informante integra o Coro Virgínio Panozzo (em 1986, quando foi realizada a gravação, este coro situava-se em distrito do município de Antônio Prado). Gravada em fita cassete, foi posteriormente transcrita em dialeto e traduzida para a língua portuguesa, conforme os procedimentos adotados para sistematização das demais canções do acervo do Memorial do Projeto Ecirs. Esta canção aborda explicitamente o tema da transgressão feminina, trazendo para a “vida” algo que o ascetismo tentou esconder, mas que o “segundo mundo” ou “o mundo às avessas” tão bem iluminou: a insubmissão aos preceitos cristãos.