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Ao analisar as funções do canto na RCI, especialmente quando se alude a uma possível função transgressora, observa-se que esta manifestação da cultura oral está diretamente relacionada à cultura cômica popular européia. O estreito vínculo existente entre o canto e os momentos de socialização na RCI é outro indicativo de sua ligação com o riso. “Nenhuma festa se realizava sem a intervenção dos elementos de uma organização cômica [...]” relata Mikhail Bakhtin (1999, p. 4).

Ao discutir François Rabelais, Bakhtin trabalha com a tese de que é impossível interpretar sua obra sem recorrer às “fontes populares” em que está estruturado o “conjunto de seu sistema de imagens”. Os que não acessaram “esta chave”, diz, não chegaram a compreender sua produção literária, pois é “[...] impossível chegar a ele seguindo qualquer dos caminhos batidos que a criação artística e o pensamento ideológico da Europa burguesa adotaram nos quatro séculos que o separam de nós [...] (1999, p. 2).

Conforme Bakhtin (1999, p. 3-5; 12; 63), a obra de Rabelais ilumina a cultura cômica popular de vários milênios, manifestação que durante a Idade Média e o Renascimento teve uma função importante, pois “opunha-se à cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época”. Suas origens, no entanto, acompanham o cristianismo desde sua “Antiguidade”. Essa

cultura, analisa o autor, manifestava-se de diversas formas, mas tem uma unidade e institui “um segundo mundo, uma segunda vida” vividos em ocasiões determinadas, principalmente em festas como o carnaval, ritos e cultos cômicos especiais. “O riso popular ambivalente – diz – expressa uma opinião sobre um mundo em plena evolução no qual estão incluídos os que riem.” (1999, p. 11).

O autor categoriza estas manifestações em “ritos e espetáculos” (festejos carnavalescos e obras cômicas representadas nas praças públicas); “obras cômicas verbais” (orais e escritas, inclusive as paródias, em latim ou língua vulgar); e nas “diversas formas e gêneros do vocabulário familiar e grosseiro” (insultos, juramentos, blasões populares). Todos pertenciam, em maior ou menor grau, a uma vida paralela transitória, que fazia emergir uma nova visão de mundo, totalmente diversa das construídas pela Igreja e pelo Estado.

Isso criava uma espécie de dualidade do mundo e cremos que, sem levá-la em consideração, não se poderia compreender nem a consciência cultural da Idade Média nem a civilização renascentista. Ignorar ou subestimar o riso popular na Idade Média deforma também o quadro evolutivo histórico da cultura européia nos séculos seguintes.

Azevedo (1975, p. 193-195) identifica a blasfêmia – bestema 12 em dialeto de tipo vêneto - como uma manifestação através da qual o camponês acusa e desafia a divindade e os santos. Bestemar, diz Azevedo, é característica própria ao imigrante e um expediente utilizado nas “ocasiões de infortúnio”, geralmente relacionadas a problemas com a agricultura, criação de animais e transporte de mercadorias pelas quase intransitáveis estradas que ligavam as colônias e as comunidades da RCI. Como o canto e o cantar, o vocabulário classificado como blasfêmia pode ser considerado um elemento identitário da RCI rural. Uma expressão do profano desafiando o sagrado.

A função catártica de desabafo da blasfêmia, relata Azevedo (1975, p.197), está relacionada ao catolicismo, como mostra ao citar Montagu: “A Itália é uma nação católica, e todas as nações católicas são grande blasfemadoras, mas, com exceção da Hungria, nenhuma mais do que a Itália moderna”. Ao referir-se a seu “caráter paradoxalmente religioso” Montagu (apud AZEVEDO, 1975, p. 197) mostra que o imigrante crê nos entes que invoca ao mesmo tempo em que usa a blasfêmia como “desabafo contra os constrangimentos impostos

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De acordo com Alberto Vitor Stawinski (Dicionário Vêneto – Português – Italiano, 1995, p.43) bestema é um termo do dialeto de tipo vêneto que significa em português blasfêmia, imprecação, palavra ofensiva a Deus e aos Santos ou às coisas sagradas. Na língua italiana diz-se bestémmia, imprecazione.

por uma ética social rigorosa”. Não se pode estranhar – refere Montagu – que a blasfêmia tenha lugar “em uma cultura dionisíaca, extroversa, como a italiana”.

Nem sempre, no entanto, a cultura cômica popular existiu em oposição à cultura oficial. Nas civilizações primitivas, relata Bakhtin (1999, p. 5), indícios apontam que este segundo mundo era também considerado sagrado e oficial. O surgimento do Estado e das sociedades de classes mudou essa configuração e enquadrou as formas cômicas entre as expressões imanentes à cultura popular:

[...] as formas cômicas – algumas mais cedo, outras mais tarde – adquirem um caráter não oficial, seu sentido modifica-se, elas complicam-se e aprofundam-se, para transformarem-se finalmente nas formas fundamentais de expressão da sensação popular do mundo, da cultura popular. É o caso dos festejos carnavalescos no mundo antigo, sobretudo as saturnais romanas, assim como os carnavais da Idade Média que estão evidentemente muito distantes do riso ritual que a comunidade primitiva conhecia.

Ao transpor essa reflexão para a realidade das canções da RCI, percebe-se que sua interpretação também precisa de uma “chave” que abra portas a caminhos não acessíveis caso a análise mantenha-se na teia de relações estabelecidas pela ideologia recente do cristianismo. Acredita-se que uma das chaves seja buscar a função de festas e ritos como as Saturnais da Roma antiga e o carnaval da Europa medieval, e assim estabelecer uma relação destas tanto com a cultura popular manifesta na Idade Moderna como com o cancioneiro tradicional mantido na RCI.

As Saturnalia, ou Saturnais, foram festas criadas em Roma para homenagear Saturno, o deus que, segundo a mitologia, instituiu na sociedade romana a Idade de Ouro. Brandão (1993, p. 268-269) relata que, pela tradição romana, “Saturno teria emigrado da Hélade para a Itália depois que Zeus (em latim Júpiter), vencendo os Titãs, comandados por Crono (Saturno), os destronou e expulsou do Olimpo”. O mesmo autor (1991, p. 253) explica que na mitologia grega a Idade de Ouro é estabelecida quando Crono é redimido por seu filho Zeus: “Esta reconciliação do senhor do Olimpo com o pai [...] é que gerou o mito da Idade de Ouro. A identificação de Saturno com o deus grego Crono, por sua vez, se deu a partir do século III a.C., quando houve na Itália “um vasto sincretismo religioso e cultural greco-latino”.

No mito das Cinco Idades (ou raças), narrado por Hesíodo em Trabalhos e Dias para explicar a degradação da humanidade iniciada por Pandora, a Idade de Ouro figura como a primeira das cinco etapas de decadência das raças humanas (BRANDÃO, 1991, p. 215; 369). Teria sido criada pelos imortais que habitaram o Olimpo e consistido em um tempo em que todos “viviam como deuses e como reis, tranqüilos e em paz. O trabalho não existia, porque a

terra espontaneamente produzia tudo para eles”. O ouro simboliza a perfeição primordial: “Sua raça denomina-se ouro, porque o ouro, sendo ígneo, solar e real, é o símbolo da perfeição primordial”.

A chegada de Saturno à Itália teria provocado a aetas áurea, o início da Idade de Ouro, assim descrita por Ovídio (Metamorfoses, 1, 107-108) - a primavera era eterna e os meigos zéfiros / com seu hálito suave acariciavam as flores nascidas sem semente. E por Vergílio (Geórg., 2, 538-540) : - era esta a vida na terra, quando reinava o áureo / Saturno. Não se tinha ouvido ainda o som da trombeta bélica / nem o retinir das espadas nas duras bigornas (apud BRANDÃO, 1993, p. 269).

As Saturnalia realizadas em homenagem ao deus Saturno e em comemoração ao “estado paradisíaco” proporcionado pela Idade de Ouro foi uma tradição que o Império Romano fortaleceu e ampliou, conforme relata Brandão (1991, p. 270-271): “[...] de início duravam só um dia; César acrescentou-lhe mais dois; Augusto e Calígula, mais um dia cada um e finalmente Domiciano prolongou-as por sete dias, de 17 a 23 de dezembro [...]”. Os dias da festa são assim descritos pelo autor:

A tão esperada solenidade iniciava-se, em Roma, pela manhã. Após se retirar a faixa de lã que cobria, durante todo o ano, o pedestal da estátua de Saturno, realizava-se um pouco mais tarde um banquete público, cujo término era marcado pelo grito da distensão: Io saturnalia! Viva as Saturnais! Tudo parava: o senado, as escolas, o trabalho, os tribunais. As execuções dos condenados à morte eram adiadas. Concedia-se liberdade a alguns presos, que depositavam suas algemas como oferenda no templo do deus. Jogos de azar, expressamente proibidos pelas leis romanas, eram inteiramente liberados. Afinal era um retorno ao Paraíso Perdido, onde todos os homens eram justos, pacíficos e livres, inexistindo o cárcere, a escravidão e a morte. Sangue havia, mas era uma efusão ritual: a da vítima imolada ao deus e o dos gladiadores no Circo, cujo escopo era atrair o favor de Saturno sobre as colheitas e a cidade. Trajando as mais ricas indumentárias de seus senhores, os escravos sentavam à mesa ou inclinados em leitos, como era de hábito nas refeições, faziam-se servir pelos patrões, aos quais, não raro, insultavam, lançando-lhes em rosto os vícios, torpezas e crueldades. Reinavam a alegria, a orgia e a liberdade. Eliminavam-se interditos de toda ordem. Quebrava-se a hierarquização da orgulhosa sociedade romana.

Esse “retorno efetivo e completo (embora provisório) ao país da idade de ouro” reconhecido nas Saturnalia perpetuou-se, segundo Bakhtin (1999, P. 6), nos carnavais da Idade Média. Assim, as tradições das saturnais permaneceram vivas, tornando o carnaval a festa “que representou, com maior plenitude e pureza [...] a idéia da renovação universal”. Isso se deve também ao fato apontado pelo autor de que todas as demais manifestações do cômico popular eram expressões artísticas, enquanto que o carnaval não era “assistido” como aos demais espetáculos, mas “vivido”, mesmo que provisoriamente, pela população. Por isso, considerado o “núcleo da cultura cômica popular”.

Todas as manifestações descritas, aponta Bakhtin (1999, p.6-7), não mantinham, inicialmente, ligação com a Igreja, embora mantivessem com as festas religiosas o que chama de “ligação exterior”. O carnaval, por exemplo, acontecia antes da quaresma, preparatória da Páscoa. Mas seu caráter era pagão e, como diz o autor, sua genética está muito mais próxima das festas agrícolas da Antiguidade. A propósito, etimologicamente, “Saturno” provém de Saturnus, particípio de satus, do verbo serere, que significa “semear, plantar”. Saturno teria sido ainda “esposo de Ops Consiua, isto é, da ‘abundância que protege e prodigaliza os bens da terra’” (BRANDÃO, 1991, p. 253).

Bakhtin (1999, p. 8-9) distingue na Idade Média de um lado o carnaval e demais festas populares e públicas e de outro as festas oficiais da Igreja e do Estado feudal. Enquanto as segundas “contribuíam - nas palavras do autor - para consagrar, sancionar o regime em vigor, para fortificá-lo”, as primeiras possibilitavam a “segunda vida do povo” e faziam com que este “penetrasse temporariamente no reino utópico da universalidade, liberdade, igualdade e abundância”:

[...] a festa oficial traía a verdadeira natureza da festa humana e desfigurava-a. No entanto, como o caráter autêntico desta era indestrutível, tinham de tolerá-la e às vezes até mesmo legalizá-la parcialmente nas formas exteriores e oficiais da festa e conceder-lhe um lugar na praça pública. Ao contrário da festa oficial, o carnaval era o triunfo de uma espécie de liberação temporária da verdade dominante, e do regime vigente, de abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus. Era a autêntica festa do tempo, a do futuro, das alternâncias e renovações. Opunha-se a toda perpetuação, a todo aperfeiçoamento e regulamentação, apontava para um futuro ainda incompleto.

Burke (1989, p. 231), ao analisar a cultura popular européia dos inícios da Idade Moderna, período que situa entre os anos de 1500 e 1800, descreve a ação da Igreja no sentido de extinguir as práticas pagãs dos ritos cristãos e de extinguir as manifestações da cultura popular como um todo. O movimento é descrito pelo autor como “a tentativa sistemática de algumas pessoas cultas – do clero principalmente – de modificar as atitudes e valores do restante da população”, de “aperfeiçoá-los”.

Essa orientação, no entanto, não nasceu na Idade Moderna. Acompanha a história do cristianismo desde os primeiros dias. E a ela que resiste a “cultura do riso”. Ao considerar que o nascimento de Cristo coincide com a festa do Solstício de Inverno, 25 de dezembro, uma das mais importantes festas do calendário popular, vê-se o seguinte: que o Contrafaktur - termo utilizado por Lutero para descrever o processo de transposição ou substituição das melodias populares para os hinos protestantes - é um expediente antigo no processo de implantação e consolidação do cristianismo ao longo de seus dois mil anos de existência.

Ao cotejar o calendário lunar e o calendário cristão (BURKE, 1989, p. 204-205), vê-se que o Solstício de Verão passa a ser a noite de São João – celebrada como a noite do nascimento do anunciador de Cristo – e o Solstício de Inverno - que marca o início do período de carnaval - torna-se o dia do nascimento de Cristo. Burke observa que nos inícios da Europa moderna a festa do Solstício de Verão mantinha rituais pré-cristãos como “acender a fogueira”, “pular por cima delas”, “tomar banho de rio”, “mergulhar ramos”. Eram todos rituais de fertilidade, de renovação e regeneração, originários de tempos remotos em que a vida e a festa dos povos agrícolas organizavam-se de acordo com as estações. Transformada em festa de São João, o “banho de rio”, por exemplo, ganhou nova simbologia e, a partir da apropriação pela igreja, passou a significar a comemoração do “batismo de Cristo por São João no Rio Jordão”.

E o que acontece quando o carnaval é incorporado ao “tempo cristão”? Emmanuel Lê Roy Ladurie, em O Carnaval de Romans (2002, p. 323-324), diz que o cristianismo convive com o carnaval, na medida em que o interpreta como o momento em que o cristão “enterra sua vida de pagão”, “entrega-se a um último desregramento paganizante” antes dos “jejuns” e das “pregações da quaresma”:

Em Romans, como alhures, eles são inseridos, espremidos no tempo cristão, mais precisamente no tempo católico (os protestantes, que eliminam o jejum da quaresma, abolem como conseqüência necessária as comezainas do Carnaval; esforçam-se com persistência, desde o século XVI, em destruir as sobrevivências desse Éden de iniqüidade). O Canaval, em sistema “papista”, situa-se no transcurso de um longo ciclo de igreja anual, que vai do Dia de Todos os Santos ao Advento e ao Natal, depois prossegue por Carnaval, quaresma, Páscoa e o São João do verão.

O endurecimento observado no período que compreende a análise de Burke foi, na verdade, o corolário de um processo desencadeado muitos séculos antes. A pesquisa do autor (1989, p. 240-241; 252) registra a repressão dos religiosos à participação cristã nos espetáculos de gladiadores e nas Saturnalia romanas e atitudes semelhantes diante de manifestações populares nos séculos posteriores até 1500. Outro exemplo de contrafação (Contrafaktur) citado data de 601 d.C. , quando o papa Gregório, o Grande orienta o bispo Agostinho a não derrubar os templos pagãos da Inglaterra, mas a destruir os ídolos em nome de quem os templos foram erigidos – e substituí-los. Os templos seriam transformados em igrejas e os ritos pagãos substituídos por outras “solenidades”. Assim relata Burke (1989, p. 252):

O princípio básico de Gregório era que “é certamente impossível erradicar todos os erros de mentes obstinadas de um só golpe, e quem quer escalar uma montanha até o alto sobe gradualmente passo a passo e não num só salto”. Era a famosa doutrina da “adaptação”, que explica como uma festa pagã de Solstício de Inverno pôde sobreviver como Natal e uma festa de Solstício de Inverno como nascimento de são João Batista.

O Concílio de Nicéia, realizado em 325 d.C., considerado a primeira Assembléia de Bispos, já discutia as festas populares. Em 590 d.C. o carnaval é integrado ao calendário cristão pelo papa Gregório, o Grande e em 1582 o papa Gregório XIII estabelece em definitivo as “datas” do carnaval.

Entre a Idade Média e o início da Idade Moderna acontece uma mudança fundamental na forma como a igreja passa a operar, definida pelos recursos de trabalho que se modificam profundamente de um período para outro. Enquanto na Idade Média as ações do clero eram dificultadas pelas distâncias e pela inexistência de formas de comunicação, o que impedia uma atuação mais sistemática junto às comunidades, a partir do século XVI “os ataques à cultura popular tradicional se tornam mais assíduos, e multiplicam-se as tentativas sistemáticas de retirar-lhe seu ‘paganismo’ e ‘licenciosidade’” (BURKE, 1989, p. 241).

Esse processo acontece em meio aos movimentos de Reforma e Contra-Reforma que dividem cristãos em católicos e protestantes. A “reforma da cultura popular” - expressão sintetizadora de Burke – assume, assim, matizes regionais, sustentados pela orientação de cada grupo religioso e pelas características de cada comunidade, mas é, segundo o autor, um movimento que pode ser reconhecido e que repercute em toda a Europa. Importante ressaltar que a “reforma da cultura popular” foi um pré-requisito para a consolidação do protestantismo e do catolicismo - já que cabia a ambos “remanejar” as populações para uma das duas culturas cristãs, através de ações que ora apropriavam, ora faziam uma oposição consentida, ora reprimiam e ora baniam tradições populares. Etapa recente de um processo lento, persistente e duradouro de transformação cultural. O rol de manifestações combatidas compunha uma ampla lista (BURKE, 1989, p. 232):

Os reformadores objetavam particularmente contra certas formas de religião popular, como as peças de milagres ou mistérios, sermões populares e, acima de tudo, festas religiosas como os dias de santos e peregrinações. Também objetavam contra inúmeros itens da cultura popular secular. Uma lista abrangente atingiria proporções enormes, e mesmo uma lista curta teria de incluir atores, baladas, açulamento de ursos, touradas, jogos de cartas, livretos populares, charivari, charlatões, danças, dados, adivinhações, feiras, contos folclóricos, leituras da sorte, magia, máscaras, menestréis, bonecos, tavernas e feitiçaria. Um número considerável desses itens criticados associava-se ao Carnaval, de modo que não surpreende que os reformadores concentrassem suas investidas contra ele.

Diante desse quadro, a extirpação do riso, a separação entre o sagrado e o profano, pode ser pensada como um processo que encontrou grande resistência na prática, expressa pela conservação da cultura cômica popular. “Pensar nas festas religiosas dos inícios da Europa moderna como pequenos carnavais está mais perto da verdade do que concebê-las como graves rituais sóbrios à maneira moderna”, diz Burke (1989, p. 223). Corpus Christi, por exemplo, que vinha sendo comemorado em toda a Europa desde o século XIII, era “permeado de elementos carnavalescos”. As festas de verão eram consideradas, na verdade, pequenos carnavais e sua apropriação pela Igreja e pelo Estado, com seus respectivos propósitos, não significava que os participantes aderissem a eles (BURKE, 1989, p. 218).

Encontra-se um relato de práticas carnavalescas associadas ao casamento em Giovanni Bonoldi (1981, p. 228-229). A partir do ano de 944 foram acrescentados a uma cerimônia coletiva de casamento realizada anualmente em 2 de fevereiro na igreja de San Pietro di Castello, em Veneza, sete dias de festa em que o Campo de São Lucas era tomados pela dança, por mascaradas, regatas e representações teatrais. Os dias de festas lembravam a vitória dos venezianos diante de um ataque pirata ocorrido naquele ano com o objetivo de roubar os dotes pertencentes às noivas.

Há registros do século XVII na Europa - provenientes de áreas distantes, de difícil acesso e onde a língua oficial não era de domínio popular - que descrevem a necessidade de proibir os próprios párocos de continuarem a participar de “peças, danças e mascaradas”. Outro relato refere-se à ação coibidora de padres reformadores diante dos párocos que realizavam seus sermões “contorcendo o rosto e gesticulando como bufões” (BURKE, 1989, p. 234; 258).

As representações dos religiosos mais como vilões e bobos do que propriamente como heróis podem ser interpretadas como uma resistência ao cristianismo e a suas interferências na vida do povo. Essas representações, aponta Burke (1989, p. 180), estão expressas numa variedade de manifestações populares (peças, anedotas, imagens, narrativas, estatuetas [...] ) e também na literatura inspirada no acervo oral popular, como revelam as novelas de Boccaccio, datadas do século XII. E, como poderá ser visto adiante, no cancioneiro tradicional da RCI.

O Decamerão, escrito entre 1348 e 1353, é também um exemplo da luta travada entre os ideais ascéticos da decência, ordem, razão, sobriedade, etc e os ideais profanos. Vittorio Santoli (1979) aborda em diferentes momentos de seu texto sobre os cantos populares italianos a reelaboração que Boccaccio faz das matérias populares, e também se refere ao Decamerão como fonte para a poesia popular posterior a sua publicação. Há uma passagem,

na Despedida da Quinta Jornada, em que, ao propor o que cantar, Dionéio “embaraça” a rainha Fiammetta (1981, v.1, p. 315-116) fazendo alusão às canções populares: