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Uma das diferenças significativas encontradas entre a versão de Cara mama... coletada por Leydi na província lombarda de Bérgamo e as duas versões coletadas na RCI é a presença, na variante italiana, de duas estrofes representadas pela esposa. Quando a sogra sugere ao filho que ele dê à esposa a enxada, a esposa responde:

Casa mia facevo ni-ent stavo in botega stavo in botega casa mia facevo ni-ent stavo in botega servire la gént Servivo la gente facevo i calzett favo l’amore

favo l’amore

servivo la gente facevo i calzett favo l’amore coi bei giovinet

Em minha casa eu nada fazia ficava na bodega

ficava na bodega

em minha casa eu nada fazia ficava na bodega a servir as pessoas Servia as pessoas fazia meias fazia amor

fazia amor

servia as pessoas fazia meias fazia amor com os belos jovenzinhos

Estas estrofes não aparecem em nenhuma das variantes locais estudadas. Podem ser interpretadas como uma provocação – uma “resposta à altura” dada à sogra que anteriormente a mandara “capinar”. O caráter permissivo da fala da esposa na versão documentada por Leydi sugere, mais evidentemente do que nas versões locais, o tom jocoso da canção, a brincadeira que se dava a partir de sua representação. A alusão à bodega – ambiente predominantemente masculino – e a fala em primeira pessoa, explícita, de que a esposa passava o tempo a fazer amor com belos jovens (no plural) dão o tom carnavalesco da canção. A versão documentada por Sanga (1979, p. 153) confirma o embate caricato entre sogra e nora, como demonstra o excerto recuperado:

màma màma la spùsa l’è che figh’ alegria figh’ alegria màma màma la spùsa l’è che figh’ alegria che inco l’è ‘l so dé ga faróm la limonàda

co le pene del capù ga faróm la minestrina co le gose dèl limù

mãe, mãe a noiva aqui está dai-lhe alegria, dai-lhe alegria mãe, mãe a noiva aqui está dai-lhe alegria que hoje é seu dia lhe faremos a limonada

com as penas do capão lhe faremos uma sopinha com o suco de limão

As duas estrofes são assim descritas por Sanga: na primeira o esposo convida a mãe a aceitar a esposa, na segunda a mãe responde que fará a ela desaforos, isto é, a rejeitará. Nas versões documentadas localmente, a enxada e a vassoura substituem a função da limonada de penas de galo e do caldo (de galinha) com suco de limões.

Pode-se apenas relacionar algumas razões hipotéticas para que essa fala “feminina” – transgressora – observada nos documentos de Leydi (e de algum modo também em Sanga) não tenha resistido no ambiente cultural da RCI pesquisado. Deve ficar claro que inúmeras e distintas razões poderiam ser identificadas. O que se pergunta, a princípio, é se esta atitude

feminina explicitamente contrária às regras de conduta vigentes sobreviveria à moral cristã num ambiente misto (ou seja, não exclusivamente masculino) com eram as festas de casamento na RCI. Pode-se pensar – e as versões locais sinalizam - que sobreviveram na canção as falas sob o véu, “cobertas”, como diz uma das informantes do Projeto Ecirs. Essas, sabe-se, eram falas não apenas toleradas, mas vitais - incorporadas e mantidas de forma imanente na vida dos imigrantes. O explícito, porém, pode não ter resistido.

Uma outra razão, menos moralmente carregada, para a estrofe que alude ao trabalho feminino na bodega não ter sobrevivido vem da própria adaptação cultural feita pelos imigrantes no novo espaço: a aldeia como espaço de socialização não se organiza aqui como existia na Europa, tornando pouco provável que uma mulher trabalhasse em um espaço público como se configura o espaço do armazém italiano de aldeia. A bodega, que poderia ser um equivalente do armazém nas capelas da RCI, se configura como espaço masculino e ainda hoje assim se mantém.

Observa-se, por outro lado, na versão gravada pelo Coro Linha Cândida do (travessão) 30, uma contaminação de La Verginela, canção que relata o esforço de um homem para encontrar uma mulher virgem (donzela) com quem possa casar:

O girato l’Itàlia ‘l Tiròl O girato l’Itàlia ‘l Tiròl sol per trovare na verginèla e cionbalarilalèla e viva l’ amor sol per trovare na verginèla e cionbalarilalèla e viva l’ amor

Percorri a Itália e o Tirol Percorri a Itália e o Tirol só para achar uma donzela e ciomba larilalela e viva o amor só para achar uma donzela e ciomba larilalela e viva o amor

A presença repetida desta estrofe permite observar, em primeiro lugar, a dinâmica da oralidade, que nesse caso promoveu a junção de partes de duas canções originalmente distintas. Na versão cantada pelo Coro da Linha Camargo essa contaminação não aparece. É difícil saber por que razão se deu. Pode-se trabalhar com a hipótese de que tenha sido deliberada, intencional. La Verginela é uma das canções mais conhecidas do cancioneiro da RCI. Cantada em primeira pessoa, relata a experiência de um homem resignado que procurou inutilmente por uma mulher virgem e bonita com quem se casar. Além disso, é identificada como uma canção de caserna, ou seja, repertório dos jovens em ofícios militares.

A alusão ao casamento e à virgindade pode ter motivado os cantores a trazerem para dentro de Cara mama... parte de La Verginela. Esse argumento é plausível, dada a comicidade que pauta a canção. Supondo-se que a fala da esposa, na versão publicada por Leydi, e a contaminação de La Verginela, na versão da Linha Cândida do (travessão) 30, têm funções

semelhantes - fazer menção a uma esposa que não casa virgem - estabelece-se uma relação de identidade interessante entre as duas versões, evidenciando como o sentido transgressor permanece, apesar das variações. A contaminação pode ter havido, ainda, em decorrência de uma perda de contexto. Nesse caso, refere Ribeiro (informação verbal16), os cantores acabam inserindo involuntariamente nas canções versos que para eles fazem algum sentido. Não se pode saber o que de fato ocorreu, apenas conjecturar.

Em uma cultura moralmente repressiva como se mostra a cultura ocidental cristã – e especialmente a católica - a dança é um elemento que contém importante simbolismo. Foi, a propósito, por muito tempo combatida no ambiente da RCI. Sua presença pode ser interpretada como indicativo da função que os tempos e espaços festivos exerciam nas comunidades imigrantes. Observa-se em Cara mama... que a primeira “alegria” endereçada à noiva é a dança:

16

Che legria gavònti de far che legria gavònti de far sonè la gaita sonè la gaita sonè la gaita e mandéla balár sonè la gaita sonè la gaita sonè la gaita e mandéla balár

Que alegria podemos dar? Que alegria podemos dar? tocai a gaita, tocai a gaita tocai a gaita e mandai-a dançar tocai a gaita, tocai a gaita tocai a gaita e mandai-a dançar

Numa leitura que evoca o ato sexual, é significativo que a canção inicie ofertando à esposa a dança (Coro da Linha Cândida do 30) – que é um símbolo de libertação (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2006, p. 319) - e encerre com a entrega do esposo (ou “ao” esposo, observa-se uma ambigüidade) para que ela (ou ele) possa “amar”. Enquanto a versão referida não faz menção explícita a uma noite de amor, a versão cantada pelo Coro da Linha Camargo, faixa seis do disco Mèrica, Mèrica II, traz na última estrofe o texto em que a esposa é dada ao esposo, a fim de que tenha “alegria”:

Che alegria gavemo de far?

Deghela a ‘l sposo, e deghela a ‘l sposo [e deghela a ‘l sposo e fé-la amar.

Que alegria podemos dar?

Daí-lhe ao esposo, e dai-lhe ao esposo [e dai-lhe ao esposo e faça-a amar.

O ordenamento da ação na canção pode ser interpretado como uma estratégia essencialmente masculina, preparatória ao ato sexual que está por vir. A aproximação entre homem (macho) e mulher (fêmea) se dá nesse momento – como nas danças de cortejamento dos pássaros – e evolui para a “entrega” final. Dizem Chevalier e Gheerbrant (2006, p. 319) que dança é linguagem, para aquém e para além das palavras. Numa sociedade de interditos, ela comunica, como o canto de múltiplos sentidos, o que não é permitido às palavras explicitamente falar.

O caráter coletivo e público da execução de Cara mama... pode fazer ver a performance como manifestação de um consentimento ao prazer dos noivos, ao êxtase que a dança e o sexo buscam. Essa interpretação encontra um simbolismo certamente oposto ao gerado pela cultura eclesiástica. Manifesta a existência de um sentido para a vida que não se apagou, mesmo diante de todos os mecanismos de controle e repressão impostos pela sociedade, entre os quais os postos eficientemente em prática pela Igreja.

As duas estrofes que encerram a versão apresentada por Leydi, cantadas, conforme indicação do pesquisador, por todos os que participam da representação durante a festa de casamento, são, na verdade, uma fala do esposo para a esposa tomada como consenso. Revelam, assim, os termos da relação homem/mulher impostos pelo casamento. Os versos “Todos os passos que tu me fazes fazer / bela loirinha me deves pagá-los” podem ser

interpretados como uma cobrança de responsabilidades. Sintetizam as balizas postas pela cultura em questão:

Tutti quei passi che tu mi fai far cara biondina

cara biondina

tutti quei passi che tu mi fa far cara biondina me li devi pagar

Todos os passos que tu me fazes dar bela loirinha

bela loirinha

todos os passos que tu me fazes dar querida loirinha me deves pagá-los

Logo a seguir, o esposo explica à esposa como deve ser pago:

Me li devi pagare col sangue e’l sudor quando la luna

quando la luna

me li devi pagare col sangue e’l sudor quando la luna la cambia i color bionda bella bionda

oi biondinella d’amor

Deve pagá-los com sangue e suor quando a lua

quando a lua

deve pagá-los com sangue e suor quando a lua muda de cor loira bonita loira

ai loirinha de amor

Embora na estrofe pareça se sobrepor o sentido de que o noivo deve ser pago com sexo, os versos “deve pagá-los com sangue e suor / quando a lua muda de cor” levam a extrapolar a interpretação. O pagamento acontece em jornada dupla, de acordo com o ritmo da vida: quando anoitece, na cama, com o sexo; quando amanhece, no campo, com o trabalho braçal. O ritmo natural da vida determina e naturaliza a conduta imposta ao feminino.

Outra possibilidade de interpretação surge a partir da palavra “passos”, que tanto pode referir-se aos movimentos (sacrifícios) feitos pelo noivo para tê-la como esposa quanto, mais especificamente, aos passos relacionados à dança, esta sim de apelo sexual. Essa possibilidade de leitura se estabelece no diálogo com as duas versões locais da canção, que permitem entender a dança como o preâmbulo para o ato sexual. Os “passos” ou a “dança” surgem como um sacrifício que precisa ser realizado na concretização do casamento, pois a esposa é necessária.

A cultura camponesa, diz Coltro (1982, p. 62), não alimenta uma imagem poética da mulher, antes disso refere-se a ela como um “bem” indispensável, por isso valorizado e protegido. Esse conceito parece estar presente, por exemplo, na canção Se la togo picola (Se escolho uma baixinha), que descreve, ao longo da narrativa, as desvantagens que qualquer esposa vai acabar trazendo ao marido. O dilema do camponês que precisa casar mas não sabe qual escolher dá um tom cômico à canção que, em termos gerais, associa a vinculação a uma mulher pelo casamento à idéia do mal necessário.

E se la togo picola, mapin, mapon, mapà picola e picolina, mapin, mapon, mapà la spassa la cosina

e altro non la fa, mapin, mapon, mapà

Se escolho uma baixinha, mapin, mapon, mapà baixa e baixinha, mapin, mapon, mapà ela varre a cozinha

e outra coisa não faz, mapin, mapon, mapà

Esta estrofe de abertura mostra que uma mulher de valor é aquela que, acima de tudo, esteja apta ao trabalho. E o trabalho, como deixa claro a voz masculina, ultrapassa os limites da casa. Essa fala lembra a colocação de Grandi, quando verbaliza que o porte da mulher era um pré-requisito importante na escolha da esposa. A canção se desenvolve fazendo referência a diferentes atributos físicos femininos: a altura, a beleza e seus contrários. A mulher “alta” não é adequada para o sexo, a “bonita” chama a atenção de outros homens, a “feia” nunca irá embora, porém o espantará todo o dia. Nem mesmo a “mais ou menos” tem qualquer qualidade, pois provavelmente escapará com a mãe e o deixará sozinho.

Subentendido no conjunto de rimas fáceis e sem compromisso, depreciativas até, seria possível ler, seguindo a percepção de Coltro (1982, p. 62), o valor dado à mulher pela sociedade camponesa, um dos principais elementos de sua estabilidade e sobrevivência. O fato de casar com a “mulher certa” é paradoxalmente para o camponês uma garantia de segurança econômica e moral. Muitos dos ditados depreciativos, diz Coltro, são resultado do “espírito carnavalesco” típico das classes rurais – mas da mesma forma revelam. Texto e contexto mostram, porém, que os limites entre ficção e realidade são tênues.