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Para além do culto de Maria - Virgem – Mãe, a Idade Média decorreu sem que o sentimento de família como se conhece hoje tivesse ainda se configurado. Evidencia Philippe Ariès (1981, p. 210-211), tendo como ponto de partida uma análise iconográfica, que este sentimento nasceu nos séculos XV e XVI e tornou-se de fato presente no século XVII. A mulher ocidental, assim, parece ter entrado na Idade Média destituída do compromisso de zelar e amar os filhos que gera. Como observa L’Hermite-Leclercq (1990, p. 303), a própria união conjugal era frequentemente interrompida pela morte precoce dos cônjuges, que não raro fazia com que filhos fossem criados por outras pessoas que não os progenitores.

As evidências demonstram, diz L’Hermite-Leclercq (1990, p. 282; 278), que a sociedade feudal preferiu, seja de que classe se fale, o nascimento de filhos homens, que representavam tanto a força guerreira como a força laboral. A vida de uma criança que “nasce mulher” terá distintos destinos na Idade Média. O casamento - muitas vezes ainda na infância, pois significava a expansão ou manutenção do patrimônio das linhagens e famílias -, a ocupação com trabalhos femininos ou o envio aos mosteiros eram os lugares destinado às meninas nascidas na aristocracia. “Só conhecemos o dos meios mais favorecidos - relata esta autora. Aí o casamento é uma estratégia. Não está excluído que também o fosse no caso dos camponeses ou do povo miúdo das cidades. Uma união podia servir para arredondar uma parcela ou para absorver a tenda vizinha”.

Necessidades mais elementares se impunham ao homem camponês e ao homem artesão que casava: encontrar uma mulher com quem pudesse partilhar a casa, o trabalho e a cama (L’HERMITE-LECLERCQ, 1990, p. 282; 326). “No nível dos camponeses o casamento era praticamente um acordo econômico em que duas pessoas reuniam recursos suficientes para sobreviver juntas” refere Marilyn Yalom (2002, p. 70-73). “Os membros da nobreza eram guiados pelas propriedades negociadas em grande escala. O casamento era o

meio pelo qual o poder fazia alianças e transmitia heranças”. Contextos distintos de um mesmo problema. Duby (1990, p. 15) esclarece que durante a Idade Média o casamento transitou entre dois sistemas, representativos de objetivos e interesses distintos:

[...] um modelo leigo, encarregado, nessa sociedade ruralizada, na qual cada célula tem raiz num patrimônio fundiário, de preservar, geração após geração, a permanência de um modo de produção; um modelo eclesiástico cujo objetivo, atemporal, é refrear as pulsões da carne, isto é, reprimir o mal, represando numa moderação estrita as irrupções da sexualidade.

São os séculos XI-XII, no entanto, que consolidam o casamento cristão nos moldes que hoje se conhece. Data de 1150 a inclusão da prática entre os sete sacramentos (VAINFAS, 1986, p. 31). L’Hermite-Leclercq (1990, p. 310) assinala 1139 como o ano em que os padres começam a expulsar suas esposas de casa, “até o triunfo do celibato eclesiástico no século XIII” (VAINFAS, 1986, p. 35).

A civilização romana é frequentemente reconhecida por manter uma estrutura mais favorável à mulher – em função de que as filhas também eram beneficiadas pela herança familiar (MACEDO, 1992; VAINFAS, 1986). Esta mesma civilização, no entanto, é quem lega aos povos europeus a rígida tutela exercida pelos pais às filhas mulheres. A falta de liberdade das romanas se expressa mais drasticamente no fato de que nenhuma filha podia de fato escolher o homem com quem iria casar. O “direito” do homem e da mulher consentirem ou não com a união é uma transformação promovida pelo modelo cristão - e data da Idade Média Clássica.

O legado romano da tutela paterna, porém, supera as determinações oficiais, mantendo-se por muito mais tempo entre as práticas matrimoniais européias. Giorgio (1991, p. 206-207) observa, por exemplo, que mulheres burguesas e aristocratas nascidas em meados do século XVIII na Itália continuavam obedecendo, ou melhor, continuavam levadas a obedecer, majoritariamente, à norma anterior, ou seja, dos casamentos arranjados pelas famílias. E que a disseminação da idéia da união não sentimental por grupos como o da juventude católica feminina italiana continua sendo observada na década de 1920. Embora o casamento baseado no amor sexual recíproco tenha sido proclamado pela sociedade burguesa como um direito tanto do homem como da mulher – e até como uma norma moral – esta liberdade, observa Engels (s.d., p. 86-87), não foi de fato exercida a não ser pelas classes dominadas.

Desde a Idade Média os mosteiros também se caracterizaram lugares da mulher. José Rivair Macedo (1992, p. 16) relata o crescimento do número deste tipo de estabelecimento já

no final do século XII, pois quando os valores dos dotes pagos começavam a ameaçar a estabilidade do patrimônio da família, a alternativa ao casamento era o envio das filhas aos conventos. Giorgio (1991, p. 208-209) assinala que uma das características do século XIX é a feminilização do clero. A França, país singular em relação ao fenômeno, viu entre 1808 e 1880 o número do efetivo de congregações religiosas crescer de 13 mil para 130 mil mulheres. Um dado significativo é a diminuição observada no contingente de mulheres provenientes da aristocracia após a Revolução: de 29% para 19%.

Outra informação posta pela autora refere-se à educação em colégios de freiras: 80% das crianças francesas que freqüentavam escolas no século XIX, mais precisamente em 1876, recebiam educação através das congregações religiosas. Ribeiro (2006, p. 73-74), ao referir- se à RCI, informa que data de 1898, portanto ainda século XIX, a instalação da primeira escola sob responsabilidade de congregações religiosas na região, implantada em Garibaldi, então Colônia Conde d’Eu, sob a responsabilidade de congregação francesa de São José de Moûtuers. Vinte anos mais tarde já se contavam quinze instituições desse caráter na RCI.

Embora a cerimônia de casamento só venha a ser realizada de fato por um padre tardiamente – o que significa um tardio reconhecimento da igreja como instituição juridicamente responsável por ela - os primeiros séculos medievais serviram para que a igreja católica (instituição essencialmente masculina) disseminasse um modelo de controle sobre a mulher sem precedentes. A virgindade figura como signo maior desta ideologia que, conforme observa L’Hermite-Leclercq (1990, p. 284), tem valor tanto social como religioso. Como resultado, aponta, “a mulher permaneceu fechada nas suas funções tradicionais, ao serviço da espécie ou de Deus”.

Ronaldo Vainfas (1986, p. 8) retoma os primórdios do cristianismo para lembrar que a primeira literatura moral cristã não priorizou nem o casamento nem a família. Pelo contrário, o casamento era desencorajado enquanto a castidade (expressa pela disseminação dos valores da virgindade e da continência) exaltada. Manter-se virgem garantia ao homem e à mulher a imortalidade, o encontro da alma com Deus após a morte. Esse discurso igualitário da renúncia (VAINFAS, 1986), no entanto, não resiste por longo tempo. A Antiguidade tardia é reconhecida como um período em que o “discurso da virgindade” já era pronunciado majoritariamente para as mulheres.

Aspecto que também caracteriza a transição para a Idade Média é a postura hesitante e ambígua da igreja para com o casamento. Ao mesmo tempo em que o hostilizou e condenou, já que sua prática contrariava totalmente os ideais ascéticos, passou a utilizá-lo como instrumento de controle e normatização da relação entre os sexos, considerando-o “um espaço

alternativo ao prazer desregrado”: “Monogamia e indissolubilidade formavam, assim, o corpo institucional do modelo cristão do casamento, em oposição ao concubinato e ao divórcio tão freqüentes no Mundo Antigo”, diz Vainfas (1986, p. 12-13; 21; 28; 33). Na prática, porém, “a fronteira entre o ‘casamento’ e o ‘concubinato’ permaneceu, por séculos, invisível”.

É assim, num arrastado e conturbado jogo de interesses e num longo processo de consolidação de poder, que o “contrato” torna-se “sacramento” e faz uma transição lenta para os novos espaços: do interior das casas e palácios para as portas das igrejas; das portas das igrejas para o domínio cristão. “Imposto aos leigos e proibido para os membros do clero” (VAINFAS, 1986, p. 74), o casamento torna-se instrumento por meio do qual a igreja controla a sociedade ocidental cristã – e especialmente as mulheres. Descrições dos ritos de casamento na RCI feitas por informantes do Projeto Ecirs mostram traços da coexistência destes dois modelos. Embora haja um domínio do modelo eclesiástico, tendo a igreja e o padre funções preponderantes, observam-se rituais de aceitação entre famílias acontecendo nas portas das igrejas ou então em ambiente doméstico. Costumes que remanescem do modelo leigo. Sinais da resistência das tradições.

Quando discorre sobre o processo de aceitação do modelo eclesiástico de casamento nas comunidades camponesas européias dos inícios da Idade Média, Vainfas (1986, p. 35-36) reconhece a carência de fontes que dificulta o estudo da questão. Apresenta as hipóteses de Ariès, para quem o casamento indissolúvel foi bem aceito mais por promover a estabilidade da vida comunitária do que pela influência do clero, e de Duby, para quem o casamento cristão competiu acirradamente com as práticas heréticas a fim de conseguir se impor.

A posição não consensual do clero a respeito do casamento caracterizou o processo de consolidação do modelo eclesiástico. Macedo (1992, p. 17) refere três vertentes distintas: a que manifestava a posição dos ascéticos, para quem o casamento maculava a pureza da alma; a do clero secular, na qual se incluem os Nicolaístas, que defendia o casamento e inclusive manifestava-se a favor de que fosse permitido também aos religiosos; e a vertente que defendia o casamento para leigos e a proibição para religiosos, a mais representativa e que acabou preponderando perante as demais.

As concessões feitas pela igreja ao sacralizar o casamento são parcialmente neutralizadas pela introdução da confissão, tornada obrigatória durante o Concílio de Latrão, em 1215. Esta prática instaura uma rotina – inicialmente anual - de controle da vida conjugal dos casais, baseada em um complexo sistema de normas e interdições. Até o século XII, relata Ângela Mendes de Almeida (1992, p. 16-17), vigorou a confissão pública, desestimulada, entre outros fatores, pela dificuldade de se tratar publicamente alguns pecados

que, se confessados coletivamente, resultariam em processos civis. Exemplo citado pela autora é o adultério feminino, punido com a condenação à morte da esposa e também do amante. Evoluiu então a idéia da confissão privada.

O surgimento dos “Confessionais”, também denominados “manuais de confessores”, reflete a nova função dos sacerdotes, “transformados em diretores de consciência de homens e mulheres, em juízes de suas relações tanto no foro externo quanto no interno” (ALMEIDA, 1992, p. 19). Os confessionais, descreve a autora, consistiam em “catálogos de pecados” que orientavam o interrogatório e também as condições para a absolvição dos pecadores.

Interessa lembrar que o argumento por meio do qual a igreja passa a consentir no sexo sustenta-se na “necessidade de procriação”. O sexo existia para perpetuar a espécie e o casamento justificava-se, então, para regular os atos da carne. No que se refere à mulher, a disciplina imposta prega a passividade, como exemplifica norma instituída no século XIII pelo teólogo Alberto Magno, descrita em Vainfas (1986, p. 37-38): “o homem poderia manifestar-se claramente quando desejasse a sua mulher; essa, porém, deveria eximir-se de tal solicitação, ficando o marido obrigado a decifrar no semblante ou na sutileza gestual de sua esposa, a vontade do ato carnal”. Esta atualização da antiga noção de “débito conjugal” (MACEDO, 1992; VAINFAS, 1986), em que homem e mulher casados devem-se obrigações mútuas em relação ao sexo, é utilizada como argumento que justifica e normatiza o ato carnal. Na balança, a mulher novamente pesa menos. E por isso cabe a ela reprimir desejos – e esperar.

Os tratados morais criados pela igreja a partir do século XII também estabelecem um rígido sistema penitencial que, no entanto, aplicava-se de forma distinta em decorrência das circunstâncias e dos envolvidos. Ao mesmo tempo em que apresentava uma hierarquia de pecados a serem vigiados e punidos, este sistema praticava frequentemente indulgências que o contradiziam (VAINFAS, 1986, p. 74-76). A tolerância era explícita em diversas situações. Severidade maior entre camponeses do que entre nobres pode ser citada como exemplo e também a diferença no tratamento entre os sexos. O homem, por exemplo, era punido nas transgressões que envolviam o casal, enquanto a mulher sofria castigos maiores quando a transgressão envolvia masturbação ou adultério. A história da moral sexual cristã mostra-se, nesse sentido, tempo e espaço em que o lugar da mulher na sociedade ocidental é construído e delimitado. O prazer, nesse contexto, torna-se um dos mais significativos interditos impostos às mulheres.