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Uma representação que resiste: a boa esposa e boa mãe

Mais do que respostas que elucidem o lugar – ou os lugares – ocupados pelas mulheres na sociedade ocidental, encontram-se nos escritos e nos registros históricos os lugares que lhes são atribuídos. Perrot (2005, p. 320), ao lembrar o fechamento dos clubes femininos na França, em pleno curso da Revolução, considera-o exemplo emblemático de como a mulher foi historicamente privada da palavra pública. E de como foi representada publicamente no curso da história. O fato ganha peso, na visão da autora, dada a conjuntura em que se desenrola. A moderna concepção de direitos civis do homem está sendo gestada neste momento, é tema primordial daqueles que pensam a Revolução Francesa, porém não inclui a preocupação com a mulher – e muito menos sua participação.

O que interessa, nesse caso, é evidenciar o pensamento que sustentou tal atitude - e entre tantas conseqüências ao longo da existência humana - determinou o fim precoce de um movimento feminista, embrião da participação das mulheres nos debates e decisões políticas na França da Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Diz Perrot:

[...] assustados ao verem aquelas mulheres que “têm a raiva para percorrer as assembléias e fazem barulho com suas vozes roucas”, [os Revolucionários Franceses] expulsam-nas das tribunas que elas ocupam sem cessar e fecham seus clubes, proibindo-as, a partir de então, de falar [de] política. Restaurar a ordem é impor silêncio a esta desordem: a palavra das mulheres.

Esta é uma época em que cabe ao sexo feminino representar o papel de “mulher ideal: silenciosa, submissa, boa esposa e boa mãe” escreve Elisabeth Badinter (1991, p. 9). E durante muito tempo a historiografia oficial representa as mulheres da Revolução Francesa dessa maneira, independentemente se sua atuação tenha ou não correspondido ao estereótipo forjado no masculino. Perrot (2006, p. 173-174) exemplifica com uma citação em que Michelet se refere à participação feminina, na obra A História da Revolução Francesa:

As mulheres estiveram na vanguarda de nossa revolução. Não é de admirar: elas sofriam mais [...] Convocadas ou não convocadas, elas tiveram a mais viva participação nas festas da Federação. Em não sei em que aldeia, os homens tinham se reunido sozinhos num grande edifício, para redigirem juntos uma mensagem para a Assembléia Nacional. Elas se aproximam, escutam, entram com lágrimas nos

olhos, também querem estar ali. Então relêem a mensagem para elas; elas aderem de todo o coração. Essa profunda união entre família e pátria trouxe a todas as almas um sentimento desconhecido.

As que subverteram o papel ideal, atuando de fato pela igualdade de direitos, constituindo e participando das sociedades de mulheres e da cena política, receberam, por sua vez, um reconhecimento tardio, feito pelas mãos de historiadoras e escritoras feministas (BADINTER, 1991, p. 8-12). Dez entre os 22 textos analisados pela autora, escritos por pensadores (no masculino) da Revolução, defendem a idéia de que “fora do lar as mulheres são perigosas para a ordem pública” (1991, p. 26). “Que as mulheres se calem nas assembléias, pois não lhes é permitido tomar a palavra; que se mantenham na submissão como a própria lei o diz” teria propagado São Paulo (1 Coríntios 14: 34-35 apud DELUMEAU, 1989, p. 315).

Como mostra Badinter (1991, p. 9; 1991, p. 12), alguns revolucionários usaram seus escritos e discursos para argumentar a favor da igualdade de direitos entre os sexos, mas a Declaração dos Direitos do Homem preserva a opinião de Jean Jacques Rousseau que se mantém como ideologia dominante durante os séculos XVIII e XIX. Diz a autora:

Todos [girondinos e montanheses] reivindicam valores republicanos, e são ardentes defensores dos direitos do homem. A única questão que os divide é a seguinte: a Declaração dos Direitos do Homem aplica-se a todos os seres humanos, seja qual for seu sexo, religião ou raça, ou antes diz respeito apenas aos homens, aos machos? Emancipando os judeus, depois os negros, mas recusando às mulheres o mesmo privilégio, a Revolução Francesa pôs fim ao debate, sem medo de se contradizer. As mulheres eram seres humanos excluídos da humanidade responsável, à semelhança das crianças e dos loucos.

Dois eventos, em sua opinião, justificam o fato de a mulher burguesa ter, de maneira geral, se enquadrado ao modelo que a manteve no espaço privado e ter participado de forma bastante tímida nos eventos da Revolução. O primeiro deles é a influência dos escritos de Rousseau, principal teórico da república e cujas idéias eram seguidas como os mais respeitados ideais progressistas. Homens e mulheres aderiram de forma inconteste a seu modelo familiar: “fechado para o exterior e centrado no amor conjugal e parental” diz Badinter (1991, p. 19). A nova Heloísa (1761) e Emílio (1762), por sua vez, foram obras que influenciaram diretamente o pensamento feminino, escreve.

Um segundo evento e anterior foi o reconhecimento da sociedade burguesa de que “a riqueza de uma nação depend[ia], em primeiro lugar, de uma população numerosa” (BADINTER, 1991, p. 23). Diante da necessidade de reduzir a mortalidade infantil e de

aumentar a população, as mulheres, incentivadas pelos maridos, mas também por “filantropos, médicos, padres, moralistas e pedagogos” assumem a responsabilidade pelos filhos e a função exclusiva de “esposas e mães admiráveis”. O papel de mulheres respeitáveis, esposas ternas, encerradas em seus lares, sem qualquer necessidade de instrução, é reforçado em seguida pela obra de Rousseau.

A casa, a família e a maternidade são lugares permeados pela influência capital da igreja. Conforme relata Giorgio (1991, p. 199-200), o movimento restaurador católico acolhe o modelo revolucionário francês da “mãe ‘nova’ que desenvolve e fortifica, primeiro no coração dos filhos, depois no dos homens, as virtudes sociais e individuais”, bem como o discurso científico. Este último passara a tratar a “fragilidade e sensibilidade” da mulher não apenas como aspecto corpóreo que a inferiorizava em relação ao homem, mas como aspecto positivo, que diferenciava a alma feminina. Segundo Giorgio,

Aos olhos dos católicos da Restauração a dialética entre a força e a fragilidade femininas revelada pela Revolução é um dos poucos méritos desse acontecimento. Aparece um novo sujeito social isento de paixões políticas, com sentimentos de tal modo cristãos que se torna perfeitamente exemplar.

A Itália, que no final do século XVIII não havia ainda se configurado nação, vê a igreja católica assumindo a responsabilidade pela difusão dos ideais de “esposa e mãe” e de padrões comportamentais unificados, tarefas que na França, por exemplo, foram em grande parte supridas pela literatura e pelos tradicionais manuais de comportamento que circulavam de maneira generalizada (GIORGIO, 1991, p. 201). Nesse processo, a mulher é transformada no principal sustentáculo do catolicismo.

A prática, no entanto, tem precedente. Jean Delumeau (1989, p. 320-322) discorre, por exemplo, sobre o papel desempenhado pelas ordens mendicantes (franciscanos, dominicanos, etc.) que vigoraram na Europa a partir do século XIII. É difícil mensurar a extraordinária importância adquirida por esta pregação, refere o autor, especialmente durante os movimentos de Reforma e Contra-Reforma. Seu estudo mostra, porém, que os sermões do período referem-se às mulheres como “seres predestinados ao mal” e aos homens como seres que precisam tomar providências em relação a este fato. Em resumo, cabe ao homem ocupar as mulheres com tarefas “sãs”, ou seja, varrer, lavar, peneirar, cuidar das crianças [...] As litanias, aponta o autor, também tiverem longa duração na Europa, exercendo, como os sermões, uma considerável função doutrinadora.