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Prandi (1997b, p. 166), lançando mão da antropologia, conceitua tradição como “a passagem de um conjunto de dados culturais de um antecedente a um conseqüente que podem configurar-se como famílias, grupos, gerações, classes ou sociedades”. As tradições, reflete, estão ‘inscritas’ na consciência coletiva dos grupos que delas são portadores, como normas implícitas ou direitos tidos como adquiridos. O conjunto de tradições, diz Prandi, é muito amplo, está presente nos comportamentos humanos - tendo nos costumes uma de suas maiores expressões - e “participa de um processo de conservação/inovação no qual se realizam, de modo diferentemente tematizados, as múltiplas possibilidades de inserção do passado no presente”.

A tradição é, em conjunto com a ideologia, fator preponderante no processo de produção artística (DUBY,1990, p. 127). Apesar de reconhecer que esta herança “não é imóvel, mas movente, alternado-se na duração”, Duby defende que mais importante é prestar atenção “à enorme massa do que remanesce”:

O principal interesse da história literária, da história das artes e da história da filosofia é inventariar essas formas, mostrar como essa reserva se empobrece ou dilata, como ela se transforma, precisar a genealogia dos invólucros formais, esclarecer o jogo do gosto, da moda, os fenômenos de rejeição, de transferência e de ocultação. Imaginemos isso como uma espécie de loja onde se encontram prateleiras esquecidas, onde outras estão cheias, outras vazias. Esse conjunto tem uma história relativamente autônoma: existe, de forma bem evidente, uma história das formas. No movimento dessa história, evitemos dar excessiva atenção às inovações, não esqueçamos a enorme massa do que remanesce.

O conceito formulado por Prandi e a inserção da tradição como elemento importante do processo criador apontado por Duby levam a perguntar quem são os “portadores da tradição” e em que sociedades, grupos sociais ou indivíduos as tradições estão presentes. Para responder a esta pergunta são necessárias pelos menos duas considerações apontadas por Prandi (1997b, p. 191; 184-185): a de que “não existe sociedade sem tradições” e a de que as tradições, em maior ou menor grau, fazem parte da vida de todos os estratos sociais:

Fragmentos mais ou menos consistentes de tradições inconscientes estão presentes em todos os estratos sociais e, no limite, em cada homem, na medida em que ele participa sempre de comportamentos, crenças e hábitos justapostos à cultura superior de que é portador. Em última análise a tradição, como o éter que em tempos se cria que permeasse todas as coisas, ocupa a porosidade da cultura reflexa e constitui com ela uma pasta cujos ingredientes variam de valores máximos a valores mínimos sem nunca chegarem à eliminação radical de todos de uma só vez (no sentido em que no comportamento humano permanece sempre uma parte de componentes tradicionais).

Em relação ao primeiro ponto, o mesmo autor (1997b, p. 191) esclarece não existir “sociedade na qual os conteúdos culturais e estruturais que caracterizam as suas dinâmicas históricas não se manifestem como a intersecção perenemente mutável entre um patrimônio marcado pelo passado e as constantes exigências de inovação que surgem em todos os níveis de vida colectiva”. O que existe são sociedades mais ou menos tradicionais, no sentido da importância que as tradições ocupam na vida dos grupos e entende “sociedades tradicionais” como o “conjunto de sociedades que precederam ou não conheceram a revolução industrial”, em que a “experiência coletiva [...] não é posta globalmente em causa, as condições de vida são interiorizadas pelas gerações que se sucedem como dados da natureza”. Atualizando o conceito, as associa às “culturas subalternas do Ocidente” e ainda àqueles grupos que se mantêm mais distantes dos processos de urbanização, em que a cultura popular predomina em oposição à cultura douta. Nesse sentido, a RCI rural, no período em que as canções foram repertório da cultura oral, pode ser considerada uma sociedade tradicional.

A partir desta reflexão, pode-se abordar o segundo ponto: o lugar ocupado pelas tradições nas culturas ditas hegemônicas e subalternas. A presença de elementos culturais considerados “doutos” passa, ao longo do tempo, a identificar o primeiro grupo, enquanto que os elementos “populares” mantêm-se de forma mais resistente no segundo, sendo responsáveis por sua diferenciação/oposição. A materialização da tradição nesse segundo grupo, através de práticas culturais mantidas ao longo do tempo, é uma característica diferenciadora das sociedades consideradas tradicionais e, segundo Prandi (1997b, p. 184), expressam-se na fenomenologia da pequena tradição:

Entendida como transmissão de modelos em grande parte irrefletidos, a tradição inconsciente constitui larga parte do horizonte cultural das classes subalternas: a vasta fenomenologia da “pequena tradição”, enquanto resiste à força expansiva da “grande tradição”, enquanto se reclama de um passado mais ou menos remoto, transmite-se recorrendo predominantemente a meios como a transmissão oral, a festa, a peregrinação, e também utilizando os veículos da cultura popular: lunares, almanaques, artefatos vários (do instrumento agrícola ao ex voto).

Ao levar em conta as estruturas tradicionais que modelam e controlam a ação dos indivíduos no processo conservação/inovação, deve-se considerar o caráter institucional da tradição apontado por Prandi. A tradição deve ser entendida, segundo o autor (1997, p.169), como “fenômeno de longa duração que a história retém, ‘esconde’, remodela segundo exigências variáveis, mas sempre em função de problemas renovados e não necessariamente enquanto produtos exclusivos dos mecanismos inconscientes dos imaginários coletivos”. Nesse sentido, “as tradições configuram-se como programas impostos pela sociedade à conduta dos indivíduos: ou seja, exercem a função de instituições”.

O caráter institucional das tradições apontado por Prandi (1997b, p. 169) baseia-se em cinco aspectos: 1. a qualidade de serem extrínsecas, ou seja, as tradições são adquiridas como algo não criado pelo indivíduo, mas vivido por ele como profundamente próprio; 2. a objetividade, ou seja, a tradição é um modelo a partir do qual os indivíduos fazem suas distinções na sociedade; 3. o poder coercitivo, ou seja, a relativa imobilidade dos indivíduos em relação aos modelos , à medida que eles interiorizam um determinado modelo tradicional para não verem-se em situação de anomia; 4. a autoridade moral, ou seja, uma autoridade que ultrapassa o poder coercivo, porque gera sentimentos como culpa, vergonha, exclusão sempre que o indivíduo experimenta comportamentos que transgridem as normas que estruturam a tradição; 5. a historicidade , ou seja, a tradição participa de processos que fazem com que os significados nasçam, sejam enriquecidos, transformados e dissolvidos pelos processos históricos.

Ao valorizar a singularidade do pensamento de Menocchio na obra O queijo e os vermes, Ginzburg (1991, p. 27) não deixa de apontar os limites em que suas idéias são elaboradas. Estes, de alguma forma, podem ser relacionados aos aspectos institucionais da tradição apontados por Prandi:

[...].essa singularidade [a singularidade de Menocchio] tinha limites bem precisos: da cultura do próprio tempo e da própria classe não se sai a não ser para entrar no delírio e na ausência de comunicação. Assim como a língua, a cultura oferece ao indivíduo um horizonte de possibilidades latentes – uma jaula flexível e invisível dentro da qual se exercita a liberdade condicionada de cada um. Com rara clareza e lucidez, Menocchio articulou a linguagem que estava historicamente à sua disposição.

As possibilidades latentes de cada um se transformam em liberdade condicionada à medida que entram em contato com as pressões institucionais, sejam elas emanadas da ordem “natural” dos fatos, dos modelos, das coerções, da moral ou do próprio processo histórico.

Em determinada passagem de O queijo e os vermes, quando inventaria a literatura que chegou às mãos de Menocchio, Ginzburg (1991, p. 86) pergunta quais dos livros lidos foram realmente uma escolha do moleiro. De todas as obras reconhecidas e comprovadamente lidas, uma apenas fora de fato comprada pelo autor. Fazendo uma analogia com as canções, pode-se perguntar se a consignação de geração a geração é feita por escolha. Provavelmente, a resposta seja não. Como nos livros lidos “por empréstimo” por Menocchio, não há um processo de autêntica escolha. Haverá, por sua vez, um poder de escolha por parte dos que recebem aquelas canções que serão suportadas pela memória coletiva? E levando além a reflexão, de que forma serão lidas as canções aceitas nesse processo de consignação? Residirá a possibilidade de escolha no processo interpretativo? Ou seja, na relativa autonomia que se confere à leitura?

Ao analisar os textos selecionados para estudo percebe-se um movimento criador em que pesam conservação e inovação e que, usando a expressão de Duby, contém “estruturas profundas” da cultura ocidental. São, em decorrência disso, textos ambíguos e ambivalentes, multiformes, como são multiformes seus sentidos através dos tempos.

Neste contexto, pode-se presumir que as representações do feminino lidas nas canções em análise têm a carga do sistema de valores de que o grupo é portador, bem como a tem a solução de leitura apresentada pela autora a partir dos textos escolhidos. Quando Duby (1990, p. 99) escreve que “quase todas as fontes que nos são acessíveis informam menos sobre a realidade do que sobre a ideologia dominante” voltamos à questão de que toda a representação é ideológica. E mais, que nela estão contidos, com relativa autonomia, não apenas e necessariamente o sistema de valores do autor e de uma época, mas da obra em si e também do leitor:

Nossas fontes de informação refletem, em certa medida, a realidade, mas todas ou quase todas se colocam necessariamente à distância dessa realidade. O problema, para nós historiadores, é medir essa distância, discernir as deformações que podem ter decorrido da pressão da ideologia. Evidentemente, essa distância é mais ou menos larga de acordo com as categorias de fontes e, de acordo com os períodos, as imagens que recolhemos são mais ou menos estilizadas, mais ou menos realistas. Todavia, e essa é a minha convicção pessoal, jamais essa tela poderá ser totalmente rasgada. Devemos abandonar o sonho positivista de atingir a realidade das coisas do passado. Nós permaneceremos sempre separados delas.

A tendência pela conservação dos quadros culturais é, como aponta Duby (1990, p. 133), construída “sobre uma armação de tradições, aquelas que, de geração em geração, são transmitidas, sob múltiplas formas, pelos diversos sistemas de educação, aquelas cujo

sustentáculo sólido é constituído pela linguagem, pelos ritos e pelas convivências sociais”. O que remanesce e o que muda neste movimento é a pergunta instigadora.