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A Antiguidade, especialmente o Império Romano, lega à Idade Média uma mulher invisível (VAINFAS, 1986, p. 27), tanto no que se refere ao modelo laico quanto ao modelo eclesiástico: considerada “patrimônio familiar” ou “protótipo da virgem” não há lugar para que seus desejos – não importa de que ordem sejam - manifestem-se autonomamente. São Paulo, lembra Delumeau (1989, p. 314-315), a quem a historiografia atribui a origem da hostilidade dirigida pelo cristianismo à mulher, era “filho e aluno de fariseu e ao mesmo tempo cidadão romano”. Ou seja, teria vivido em uma cultura “antifeminista”, herdeira da estrutura patriarcal. Inserido neste contexto é que “contribuiu para colocar a mulher cristã em uma posição de subordinação simultaneamente na Igreja e no casamento”. Se as palavras atribuídas a São Paulo são ou não interpolações é um debate que de certa forma dilui-se quando a personagem é analisada inserida em seu tempo.

O medievo, por seu turno, consolida a imagem da mulher passiva (sem que ela deixe de figurar, circunstancialmente, como a inferior, a virgem, a pecadora, a diabólica) e prefigura a representação feminina que determina e limita as relações sociais até nossos dias. José Rivair Macedo (1992, p. 8) descreve os mil anos da Idade Média como um período que alimentou e reforçou o preconceito contra o sexo feminino. Assim define Paulette L’Hermite- Leclercq (1990, p. 325), em estudo que refere o período Clássico:

As mulheres não existem mais do que as mónadas. Só existem sistemas de representações, variáveis segundo as sociedades que distribuem as unidades num tipo de relações e lhes atribuem um lugar. Todos os sistemas do Ocidente cristão dos séculos XI–XII têm em comum a afirmação da inferioridade constitucional da mulher; e como, nessa ideologia, a essência precede a existência, a mulher tem que ser dirigida.

Se, desde as representações pré-históricas, a mulher tem sido ou não exaltada é uma discussão que depende em grande parte do olhar dirigido ao tema. Friedrich Engels defende em A origem da família, da propriedade privada e do estado que a mulher tornou-se inferior ao homem no momento em que a organização familiar, fundada no direito materno, passa ao domínio exclusivo dos homens. Até então homens e mulheres viviam em igualdade. Foi Morgan, autor de Ancient Society, de 1877, quem, segundo Engels, ao estudar as tribos indígenas americanas, asiáticas e africanas, demonstrou a existência de uma primitiva gens2

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Segundo Engels (s.d., p. 92) o termo gens em latim e génos em grego é utilizado para designar o agrupamento por linhagem que reclama uma descendência comum. Morgan o utilizava para designar os grupos de consangüíneos existentes nas tribos indígenas que estudava, como a dos iroqueses americanos.

materna. Este grupo teria precedido a organização familiar ancorada na gens de direito paterno - observada já nas sociedades grega e romana - que dá origem à família patriarcal.

A constatação de que por milhares de anos as sociedades pré-históricas viveram a partir de uma organização social distinta da que se conhece nos escritos bíblicos evidencia uma herança cultural e tradições familiares que modificam a experiência do ser humano em sociedade. Este é um conhecimento recente que, segundo Engels (s.d., p. 16), alterou de forma cabal a concepção que se tinha de como evoluiu a família até que chegasse ao modelo que hoje se reconhece:

Até o início da década de sessenta [1860] não se pode falar de uma história da família. Nesse domínio, as ciências históricas ainda se encontravam sob a influência dos cinco livros de Moisés. A forma patriarcal da família, descrita nesses livros com pormenores não encontrados em outro lugar, era não somente aceita como a mais antiga, mas também era identificada – excetuando-se a poligamia – com a família burguesa de hoje, de modo que parecia a todos que a família não havia experimentado nenhuma evolução através da história.

Apesar de acreditar erroneamente que foram as divindades gregas as responsáveis por derrubar o direito materno e instaurar o direito paterno, Johan J. Bachofen teve, segundo Engels (s.d., p. 18-19), um papel inovador: evidenciou, em seus estudos da literatura clássica, os vestígios que demonstram a existência de sociedades em que o homem mantinha relações sexuais com diversas mulheres e em que a mulher mantinha relações sexuais com diversos homens, configurando os primitivos “casamentos grupais”.

Nestas sociedades, em que também se caracterizavam “famílias por grupos”, as mulheres eram respeitadas por serem os “únicos genitores certos de seus filhos o que, conforme Engels, lhes assegurou “a posição social mais elevada que tiveram desde então até nossos dias”. Já que se podia provar que os filhos eram de fato da mãe, mas não do pai, cabia às mulheres o poder sobre a descendência. Embora, escreva Engels, não existisse então a noção de direitos e deveres, as relações de herança decorriam dessa identificação com a mãe.

O caminho percorrido pelas famílias consangüíneas (também chamadas de gens ou linhagens) até a monogamia é longo. A transição do casamento por grupos para o casamento pré-monogâmico, foi, segundo o autor, uma decorrência natural das restrições impostas ao longo do tempo às uniões entre parentes. Sugere que mesmo nos períodos em que o casamento grupal predominou, homens e mulheres já deviam ter seus companheiros preferidos, o que levou paulatinamente ao predomínio de casais nas gens. Salienta que durante um longo período, no entanto, um homem e uma mulher devem ter permanecido

unidos por “vínculos ainda frágeis”, sendo comuns tanto a poligamia masculina quanto a dissolução do casamento quando houvesse por parte dos cônjuges esse desejo (ENGELS, s.d., p. 54-55). A estrutura pré-monogâmica já exerce, porém, uma vigilância sobre a mulher, à medida que – em função da linhagem materna - os filhos pertencem exclusivamente a ela.

Supõe-se que até o momento em que o excedente de produção não se verificou e que as relações na gens mantiveram-se comunitárias, sem que predominassem a dominação e servidão entre seus integrantes, este modelo baseado na descendência materna se manteve resistente (ENGELS, s.d., p. 170). Quando, através da atividade pastoril, o homem (no masculino) passa a acumular mais recursos que a mulher, ganha progressivamente maior destaque no grupo familiar. É preciso considerar, como mostra Engels (s.d., p. 60; 170), que a domesticação de animais e a criação de gado operaram uma mudança fundamental, pois permitiram uma acumulação de riquezas até então inexistente nas comunidades que “trabalhavam” apenas para sobreviver, sociedades primitivas que durante muito tempo foram caracterizadas por uma divisão natural do trabalho entre homens e mulheres:

[...] o homem vai à guerra, à caça e à pesca, procura as matérias-primas para a alimentação e produz os alimentos necessários para isso. A mulher cuida da casa, prepara a comida e confecciona roupas; cozinha, fia e costura. Cada um manda em seu domínio, o homem na floresta e a mulher na casa. Cada um é proprietário dos instrumentos que confecciona e utiliza. O homem possui as armas e os utensílios de caça e pesca, a mulher é dona dos utensílios domésticos. A economia doméstica é comunista, abrangendo frequentemente muitas famílias. Aquilo que é feito e utilizado em comum é de propriedade comum: a casa, a horta, a canoa. (ENGELS, s.d., p. 170)

Quando o homem aprende a dominar a criação de gado e a agricultura - e dá-se conta de que é possível “incrementar a produção da natureza por meio da atividade humana” (ENGELS, s.d., p. 35) - a estrutura comunitária passa a ter de operar com o excedente de produção e isso altera tanto as relações sociais dos grupos como as relações entre homens e mulheres. “A quem pertencia essa riqueza nova?” pergunta. Não se sabe ao certo em que momento surgiu a propriedade privada dos rebanhos, tampouco quando se operou a substituição da descendência feminina pela descendência masculina, mas sabe-se que a evolução das famílias para o modelo monogâmico patriarcal está relacionada às mudanças ocorridas nas relações de produção, diz Engels. Tornara-se de certa forma inconcebível ao homem que seus bens acumulados (muito mais numerosos se comparados aos da mulher) estivessem sujeitos a uma estrutura que privilegiava o direito materno ou à organização coletiva gentílica.

A origem da propriedade privada – inicialmente aplicada à produção e posteriormente ao domínio de terras - e a evolução da família até o estágio em que hoje é configurada, estão, na visão de Engels, amplamente imbricadas. O autor sustenta, porém, a partir de Bachofen, que a transição para a monogamia foi uma iniciativa feminina, pois a mulher deve ter lutado ao longo do tempo pelo “direito de se entregar apenas a um homem”. À medida que o casamento evolui dos grupos para a pré-monogamia e posteriormente para a monogamia, institui-se um dos grandes paradoxos da história da mulher: a transformação do que a princípio configurou-se um direito em mecanismo de dominação entre os sexos. Diz Engels (s.d., p. 81) que

A monogamia surgiu da concentração de grandes riquezas nas mesmas mãos – as de um homem – e do desejo de transmitir essas riquezas, por herança, aos filhos desse homem, excluídos os filhos de qualquer outro. Para isso era necessária a monogamia da mulher, mas não a do homem, tanto assim que a monogamia daquela não constituiu o menor empecilho à poligamia, oculta ou descarada, desse.