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Em História do Medo no Ocidente, Delumeau (1989, p. 314) percorre as representações que historicamente fizeram da mulher o “diferente” temido pelo homem. Ressalta que “o medo da mulher não é uma invenção dos ascetas cristãos [...]”, porém “o cristianismo muito cedo o integrou e em seguida agitou esse espantalho até o limiar do século XX”. A mulher não só foi acusada de ter introduzido o pecado no mundo, cita Delumeau, como também de ter feito desaparecer o paraíso da terra. É Pandora que ao abrir a caixa que contém os males do mundo põe fim à Idade de Ouro. É Eva quem ao oferecer a Adão a maçã comete o pecado original.

Jacques Ruffié (1988, p. 145-146), a partir de Delumeau, analisa o discurso criado em torno do pecado original mostrando como o cristianismo, ao interpretar o Antigo Testamento, teria se apropriado de um sentido que contraria a natureza dos homens. A atitude de Eva - uma personagem mais humana do que Maria - poderia ter sido reconhecida em suas fraquezas e suas forças, mas acabou representada como mito, dessa forma relegando o sexo ao terreno dos interditos. A personagem central deste episódio é nascida de uma costela de Adão - inferior, incapaz, defeituosa, pecadora - e portanto identificada ao longo da história como aquela que dá origem à imperfeição humana, ao sofrimento e à existência do mal. Delumeau (1989, p. 314) refere-se, em termos semelhantes, a como os primeiros representantes do

cristianismo, a exemplo de São Paulo, não levaram adiante uma suposta igualdade entre os homens preconizada por Jesus e descrita no Evangelho.

Jacques Dalarun (1990, p. 53) diz da complexidade que envolve a análise da representação da mulher feita pela alta cultura clerical. Um primeiro ponto e consensual é a matriz bíblica, de onde parte todo e qualquer pensamento que tenha sido construído e difundido pela igreja. A representação, no entanto, move-se. É circunstanciada pelo tempo e pelo espaço. Nos séculos XI e XII predomina, discorre o autor, a antinomia Eva - Maria: a imagem de Eva serve ao objetivo da disciplina clerical e a de Maria como o modelo de mulher, a virgem, inatingível, mas exemplar. Entre as duas, figura Madalena, a pecadora remida, aquela que é reintegrada à sociedade pelo arrependimento e que também serve para solidificar a imagem do Purgatório. As imagens da tentadora, da Rainha do Céu e da pecadora resgatada entrelaçam-se entre os autores clericais.

A partir do século XIII, com o advento das ordens mendicantes, a imagem de Maria – antes essencialmente associada à virgem - passa a ser associada à mãe. É um período em que as mulheres começam a ganhar as conotações até hoje tão difundidas de seres que zelam, que amam, que transmitem segurança e carinho aos filhos e à família. A Pietá, imagem de Jesus morto nas mãos de Maria, esculpida por Michelangelo em 1498 a pedido da igreja e hoje exposta na Basílica de São Pedro, no Vaticano, representou historicamente esta idealização do amor materno.

Entre as crenças que associam a mulher ao tema do medo está o poder de profetizar e também de curar ou prejudicar, ambos de forma significativamente presentes nas culturas tradicionais cita Delumeau – e que caracterizaram as temidas feiticeiras perseguidas e incendiadas durante a Inquisição, no período que marca o fim da Idade Média e o início da Idade Moderna. No final da Idade Média, refere Dalarun, os clérigos retomam a imagem de Eva, difundindo-a para um público mais amplo, entre os quais os autores dos manuais da inquisição. Ao mesmo tempo, retomam o estereótipo de que a mulher ideal é aquela que cala. Ao condenar a mulher que se pronuncia em público, atua em nome da igreja, prega o Evangelho, cura, faz parir, que tem, enfim, uma função social para além daquelas prescritas pelo estado androteocrático, os clérigos na verdade tentavam restringir os espaços que vinham sendo progressivamente ocupados pelas mulheres na sociedade, especialmente na igreja.

O medo obsessivo nutrido em relação às mulheres não expressou, no entanto, apenas os interesses da igreja. Associar esta postura aos primórdios do mais negro período da Inquisição revela por que as camponesas e as monjas medievais foram o verdadeiro alvo dos milhares de processos levados a cabo pela Santa Inquisição. Ao evidenciar por que as

parteiras foram incluídas entre as merecedoras de punição nas fogueiras, Franklin Cunha (1994, p. 26-32) demonstra o conflito existente entre essas mulheres camponesas pobres - habilidosas no manejo de ervas e no tratamento das doenças dentro de suas comunidades - e os filhos dos senhores feudais, egressos das recém criadas escolas de medicina. A imagem da bruxa e da feiticeira atendia a um clero misógino, mas, como mostra o exemplo das parteiras, não apenas a ele.

Burke (1989, p. 294) reconhece a distinção entre os médicos formados nas universidades e os curandeiros não oficiais como um dos exemplos da progressiva divisão entre cultura erudita e cultura popular que marca o fim da Idade Média e o início da Idade Moderna. A separação destes dois tempos históricos reflete na verdade a separação promovida pelas classes superiores em relação ao povo, que repercute nos mais diversos ambientes. Configurava-se, de fato, a existência de dois mundos distintos.

O discurso médico do século XVI, por sua vez, mostrava-se amplamente favorável à supremacia do macho e inclusive diferenciava com detalhes a saudável aparência física e o desempenho das gestantes que davam luz a filhos homens. Diante da suposição de que o sexo era uma escolha de Deus, um médico chamado Ambroise Parè argumentava o seguinte: “Parece-me que os maridos não são sensatos em encolerizar-se contra as mulheres e companheiras por terem filhas meninas” (apud DELUMEAU, 1989, p. 332-333).

Também se dá toda uma construção negativa a partir da fisiologia feminina que menstrua e que pare – o que torna a mulher perigosa, impura e perecível. Representações de origem pré-cristãs na Suécia, Alemanha e Dinamarca comentadas por Delumeau (1989, p. 312) mostram “mulheres que convidam” mas cujos corpos ao mesmo tempo “pululam vermes”. Representações construídas, portanto, num terreno de explícita ambigüidade. Tanto a iconografia como a literatura, refere o autor, são historicamente portadoras do tema “da mulher aparentemente graciosa, mas cujo dorso, os seios ou o ventre são já podridão”.

Usos anteriores ao cristianismo contam, portanto, a história dessa tradição. Autores eclesiásticos, no entanto, continuaram a considerar o sangue menstrual como algo impuro, representação que, conforme descreve Delumeau (1989, p. 317-318) resultou no isolamento das mulheres, impedidas de comungar e até mesmo de freqüentar a igreja nos períodos menstruais. No âmbito privado, menstruação, gravidez, parto (quarentena) e amamentação também faziam parte do rol de tempos em que o sexo era proibido à mulher (MACEDO, 1992, p. 20). As dores do parto, neste contexto, nada mais eram que a justa punição àquela que havia cedido aos prazeres da carne (CUNHA, 1994, p. 26).

Relatos de informantes (mulheres e homens) do Projeto Ecirs dão conta da vida perene destas tradições pré-cristãs e cristãs quando iluminam, através de seus depoimentos, os interditos relativos à gravidez: a reclusão da mulher ao espaço doméstico iniciava quando a “barriga” tornava-se aparente e só cessava algum tempo depois do parto ter ocorrido. Vivência semelhante é trazida por Delumeau (1989, p. 312) quando descreve tradições remotas em que a parturiente precisava ser reconciliada à sociedade, o que se fazia em muitas civilizações por meio de ritos purificadores.