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Por que a “concha” não está presente entre os objetos sugeridos em Cara mama... para fazer a “alegria” da noiva, dado que é um elemento importante do rito de passagem descrito? Presume-se que sua ausência é um dos sinais textuais do duplo sentido que sustenta a construção da canção. Segundo Chevalier e Gheerbrant (2006, p. 269-270) a concha participa do simbolismo da fecundidade própria da água. “Sua forma e sua profundidade lembram o órgão sexual feminino. Seu conteúdo ocasional, a pérola, suscitou, possivelmente, a lenda do nascimento de Afrodite, saída de uma concha. O que confirmaria o duplo aspecto, erótico e fecundante, do símbolo”. A partir deste raciocínio, numa referência – e presságio - ao ato sexual, a mulher já seria portadora da “concha”, cabendo ao noivo contribuir com a “vassoura” ou a “enxada” – que se apresentam então como símbolos fálicos - o que parece ser sugerido pela canção.

De acordo com Chevalier e Gheerbrant (2006, p. 374) a enxó, de onde possivelmente provenha o termo “enxada”, pode ser identificada tanto com um instrumento ligado à marcenaria como com uma insígnia que escultores, altos funcionários reais na África, levavam em seu ombro esquerdo. Entre os egípcios, era um instrumento mágico utilizado em rituais de morte, através do qual o defunto recuperava as faculdades vitais para viver em outro mundo. Neste último caso, dizem os autores, a enxó aparece como símbolo daquilo que corta para conservar a vida, como o bisturi para o cirurgião. Se é possível relacionar o instrumento a um símbolo fálico, a enxada seria o pênis que corta o hímen em nome da fecundidade.

Ainda segundo Chevalier e Gheerbrant (2006, p. 932) também é possível interpretar a vassoura como um símbolo fálico. Nas civilizações agrárias da África do Norte ela evoca o cultivo (fertilidade), mas associado à figura das feiticeiras é que este objeto se reveste de um simbolismo de caráter transgressor. “A feiticeira é a antítese da imagem idealizada da mulher”, dizem os autores (2006, p. 419). E a “vassoura” o objeto que conduz a mulher “à festa de alegria”, que aqui pode significar o “orgasmo”, o prazer decorrente do ato sexual. Le

Goff (2007, p. 234-235) lembra que a perseguição à bruxaria (mais especificamente às feiticeiras, no feminino), intensificada pela Igreja a partir do século XIV, combateu principalmente as “desordens sexuais”, tornando-se no século XV o principal alvo da Inquisição. Nesse contexto, o “sabat” é citado pelo autor como a imagem que representava, sintetizava, as práticas de bruxarias.

Antes de ganhar uma significação religiosa de “dia do descanso” ou “tempo consagrado a Deus”, o sabá teria existido como uma “festa de alegria”, relacionada aos ciclos lunares (cada ciclo lunar dura sete dias) que, segundo os autores, nada tinha em comum com o dia do Senhor. Seus resquícios teriam sido combatidos já pelos profetas Isaías e Oséias em nome da significação religiosa. Lenda referida por Chevalier e Gheerbrant (2006, p. 932; 794), por exemplo, conta que, montadas em vassouras, as feiticeiras dirigiam-se ao sabá, vencidas por uma força (a da vassoura, que simboliza a força da vida, da perpetuação da espécie) que elas não conseguiam derrotar. Parece estar ligada à antiga tradição profana das “festas de alegria” o simbolismo sexual encontrado em Cara Mama... .

Ao levar-se em conta a informação de que os casamentos aconteciam, via de regra, aos sábados, pode-se buscar uma referência ao sabá, dia em que as feiticeiras, antíteses das mulheres idealizadas, montadas em seus cabos de vassouras, saíam, à noite, em busca de “alegria”. Dia em que, como mostram as expressões da cultura camponesa na RCI, coexistem o sagrado e o profano. Dia em que a tradição permitia a transgressão. O sábado, associado ao sétimo dia, responde ao mesmo tempo a significados profanos e sagrados, no sentido de que o número sete apresenta um vasto simbolismo relacionado à renovação, à conclusão de um ciclo e ao início de outro e, pode-se dizer, a um momento de passagem (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2006, p. 826-831).

O tom jocoso de Cara mama... e o simbolismo que converte a canção em um texto de apelo sexual também é encontrado em Marito Mio. Quase toda a canção desenvolve-se de forma séria, dramática até, envolvendo em um diálogo a esposa e seu marido. Exaurida pelo trabalho que está a executar, a esposa manifesta repetidas vezes seu cansaço e frio, ao que o marido responde ordenando que continue a fiar:

Marito mio mi son fréda mi son gelata sposina oi cara quanti fòsi gaveo filato Marido meu estou fria estou gelada esposinha querida quantos fusos tu tens fiado?

ghenò filato uno sposina va lavora che quésta non l’è e l’óra de venìr dormìr com me.

tenho fiado um

esposinha, vai trabalhar que esta não é hora de vir dormir comigo.

Chevalier e Gheerbrant (2006, p. 782; 872-873) mostram que o fuso e a roca foram, na Antiguidade, símbolos do poder feminino. Citam que a estátua de Atena tinha na mão direita uma lança, sinal de suas virtudes guerreiras, e na mão esquerda uma roca e um fuso, indicativo das artes domésticas e da habilidade manual. A exemplo de Atena, inúmeras deusas importantes do Oriente trazem nas mãos fusos e rocas, expressando, mais do que uma habilidade, o poder de controlar “os nascimentos [...] o decurso dos dias e o encadeamento dos atos”.

Citando J. Servier, os autores (2006, p. 432) esclarecem que a tecelagem e a lavoura aparecem sempre juntas e evocam a atividade criadora, a fecundidade, sendo a primeira uma ação relacionada à mulher e a segunda ao homem. Le Goff (2005, p. 285-286), ao referir-se às atividades laborais da mulher no medievo, cita a fiação como uma atividade feminina relacionada tanto às mulheres nobres como às camponesas e lembra que as canções entoadas durante o trabalho de fiar nos gineceus eram conhecidas como chanson de toile, ou seja, “canção de tear”. Assim, o fio, o fuso, a roca, o tear, a tecelagem, a costura, o bordado são imagens recorrentes, que se observam ao longo do tempo vinculadas à identidade feminina. Burke (1989, p. 153), por exemplo, refere “a heroína sentada no seu quarto a costurar” como um dos motivos das baladas européias. Coltro (1982, p. 64) recupera o ditado Úcia in man e lèngoa in boca (agulha na mão e língua na boca), exemplificando a educação dada às noivas pelas mães quando preparavam as filhas para morar na casa dos sogros.

Observa-se na canção Marito Mio uma representação em que parece evidente a relação de identidade que existe entre a figura da esposa e o trabalho a que a ela cabe na estrutura familiar. Prevalece ainda a imagem da esposa submetida, que deve obediência ao marido 15. Na versão gravada pelo Coro São Roque de Antônio Prado, o diálogo das primeiras estrofes se repete até o quarto “fuso”, evidenciando de um lado o cansaço da esposa e de outro a indiferença do marido.

No entanto, o fio dramático é subvertido ao final da canção, quando, diante da insatisfação do marido em relação ao resultado do trabalho executado, a esposa sugere que

15

Coltro (1976, p.319) registra entre os cantos de trabalho e sociais Fila fila Teresina. A versão tem apenas uma estrofe: Fila fila Teresina / te comprarò la mulinèla / fila fila Teresina / fin che el filo l’è termina.

poderia render muito mais se tivesse à disposição uma “roca”. À reivindicação da esposa, o homem prontamente responde: “Então minha querida / vem, vem dormir comigo”:

Marito mio mi son fréda mi son gelata sposina oi cara quanti fòsi gaveo filato ghenò filato quatro se fusse la rochéta cosi la mia dilèta vién vién dormìr com me

Marido meu estou fria estou gelada esposinha querida quantos fusos tu tens fiado? tenho fiado quatro se eu tivesse a roca! então minha querida vem, vem dormir comigo

Embora não se perceba inicialmente, esse desfecho sugere que a canção é construída a partir do duplo sentido da palavra “roca”. O diálogo, nos termos em que se apresenta, torna possível que, ao final, o significante seja subvertido em nome de um novo sentido. Nesse caso, a “roca” parece predominar como símbolo fálico, masculino, e não como um símbolo feminino, associado ao poder atribuído às deusas da Antiguidade. Dizem Chevalier e Gheerbrant (2006, p. 782): “Separada do fuso, a roca, pequena vara de cana, tem uma significação fálica e sexual. Representa não apenas o órgão viril, mas também o fio das gerações”. Nesse sentido, cabe considerar a canção como uma representação da transição que envolve a tomada de consciência sobre a fertilidade, que transita ao longo da história de um poder feminino para um poder masculino.

A hipótese de que há nessas canções de temática feminina um conteúdo latente, em que se pode observar uma mulher temida pelo homem ou, ao contrário, um homem temente à mulher, a presença de um símbolo que expressa ao mesmo tempo poderes femininos e masculinos é significativa, porque nessa ambivalência se revela o embate. O dito e o não-dito da canção desvelariam, assim, a voz predominantemente masculina que se impõe na representação. “Por vezes – diz Meneses (2000, p. 37) – a canção tematiza personagens femininas, mas é o homem que se revela”.