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Antigos combatentes africanos das FAP: estrangeiros em Portugal

Independências e Desmobilização dos Combatentes Africanos

2. Antigos combatentes africanos das FAP: estrangeiros em Portugal

Com as independências de Angola, da Guiné-Bissau e de Moçambique, os antigos combatentes africanos das Forças Armadas Portuguesas deixam de ter a nacionalidade portuguesa. Assim o determinam os acordos estabelecidos entre Portugal e os diversos representantes dos movimentos de libertação, relativamente a qualquer indivíduo nascido nas antigas colónias portuguesas, com excepção daqueles que solicitassem a sua preservação. Se a nacionalidade do país africano passava a conferir, pelo menos teoricamente, cidadania plena a qualquer homem ou mulher nascidos num daqueles novos Estados e, assim, eliminava um indício de ligação ao antigo regime colonial, suprimia, ao mesmo tempo, a possibilidade de preservar os direitos e deveres relativos à cidadania portuguesa.

Quando decidem deixar a sua terra natal, a maioria desses antigos combatentes das FAP são, então, considerados estrangeiros em Portugal221. A não ser que sejam Deficientes das Forças Armadas Portuguesas, como veremos adiante, o único direito excepcional que estes homens têm, comparativamente a outros imigrantes, é a autorização de residência com dispensa do visto de residência222. Este estatuto não impede, porém, como também veremos, que venham a usufruir de outros direitos atribuídos a antigos combatentes.

Há duas situações que se distinguem das anteriores: uma relativa aos antigos combatentes africanos que pertencem às Forças Armadas Portuguesas por serem militares de carreira; outra diz respeito aos que vieram oficialmente para Portugal com o estatuto de antigo-combatente.

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Em parte por isso é que quando procurámos saber quantos seriam os antigos combatentes de origem africana a residir em Portugal, a tarefa se tornou inexequível. Isto porque não existe uma base de dados que, por si, permita esclarecer essa questão. Seria necessário cruzar um conjunto de informações, muito dispersas, que fomos encontrando ao longo deste trabalho, em locais tão distintos como os Arquivos dos Hospitais Militares, que seguramente terão dados relativos aos africanos que lá estavam internados depois do 25 de Abril, o Arquivo Associação dos Deficientes das Forças Armadas, onde se pode ter acesso aos dados dos associados, o Arquivo Geral do Exército onde se encontram os processos individuais de alguns antigos combatentes, bem como uma base de dados relativa a todos os que requereram o complemento especial de pensão, os dados da Caixa Geral de Aposentações etc., para chegar a uma estimativa sobre os mesmos.

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Os antigos combatentes africanos, militares de carreira, que pertencem às FAP, são portugueses. Mas, com as independências dos territórios africanos e de acordo com o D.L. 308-A/75 de 24 de Junho, tiveram de requerer essa nacionalidade, como foi o caso de Amadú, que retomaremos adiante, ou o de Marcelino da Mata, que já citamos no capítulo anterior e que, a este propósito, disse, visivelmente indignado:

Eu estava aqui no Regimento de Comandos da Amadora, em 1974, a comandar uma companhia, a 123, e obrigaram-me a pedir a nacionalidade portuguesa. Será que eu era mercenário aqui dentro? Um militar fardado, dentro de uma unidade a comandar uma companhia, a fazer todos os serviços que fossem precisos, e obrigarem-no a requerer a nacionalidade? Mas eu

nunca renunciei à nacionalidade portuguesa” (in Antunes, 1995: 553-554).

Por sua vez, entre os homens que vieram para Portugal oficialmente como combatentes ou antigos-combatentes, encontramos três grupos distintos: antigos combatentes naturais da Guiné-Bissau trazidos do Senegal pelo Governo português; antigos combatentes que estavam internados no Hospital Militar em Lisboa quando se deu o 25 de Abril e que acabaram por ficar; e alguns DFAs e antigos combatentes que vêm regularizar a sua situação de reforma e/ou fazer tratamentos médicos e que também acabam por ficar.

O primeiro destes conjuntos de homens é relativo aos antigos comandos africanos da Guiné-Bissau que o Governo português conseguiu trazer do Senegal, em 1982, através da sua embaixada em Dakar, e que a Associação de Comandos acolheu e apoiou, situação que já descrevemos no capítulo precedente.

Um dos antigos comandos que veio nesse grupo foi Rolando, que fugiu para o Senegal depois da guerra e onde viveu sete anos223. Durante a guerra, tinha sido 1.º cabo da 1.ª Companhia de Comandos Africanos da Guiné. No Senegal, Rolando foi pintor da construção civil. Em Portugal, a Associação de Comandos arranjou-lhe um emprego de segurança e, mais tarde, Rolando optou por retomar a profissão de pintor. Depois de reorganizar a sua vida, conseguiu trazer a sua família da Guiné-Bissau. Entretanto Rolando adquiriu a nacionalidade portuguesa, e quando os seus cinco filhos também a obtiveram emigraram para Inglaterra, mais precisamente para Londres. Rolando, reside num apartamento seu, no Monte Abraão, com a sua esposa, com quem, gosta de dizer, casou duas vezes, uma à moda da terra, outra oficialmente em Portugal, para que ela

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Julde Jaquité Semedo é outro comando que também fugiu para o Senegal e veio para Portugal através da Associação de Comandos. Para conhecer um pouco da sua história leia-se Bernardo (2007: 347-352).

também pudesse obter a nacionalidade portuguesa. Rolando não pretende regressar à Guiné-Bissau, a não ser de férias ou eventualmente na velhice, mas acha isso pouco provável, apesar de lá ir com alguma regularidade ver a sua casa, assim como a Londres onde vai visitar, com muita frequência, os seus filhos.

Situação distinta é a dos antigos combatentes que estavam internados no Hospital Militar quando se deu o 25 de abril e que, por isso, estavam cá oficialmente com o estatuto de combatentes das FAP. Alguns deles ainda se encontravam internados no ano de 2001 na ala do Hospital Militar de Lisboa224, conhecida por Anexo, situada em Campolide.

Louro, fisioterapeuta da ADFA, entrevistado em 2009225, chefiou essa enfermaria durante mais de dez anos até o complexo ter sido vendido pelo Estado Português, naquele ano, e os pacientes, que ainda lá estavam, terem sido transferidos para outros locais, nomeadamente para o Hospital Militar da Estrela. Alguns desses pacientes vieram para Portugal transferidos de hospitais militares das antigas colónias, antes das independências ou durante os processos de negociação das mesmas. Foi o caso de um dos pacientes de Louro, conhecido por Menino, que o fisioterapeuta recorda com particular carinho e emoção, uma vez que este já fora por ele tratado em Angola, onde cumpriu a sua comissão, no Hospital de Luanda, e que acompanhou no Anexo até ele lá falecer.

Por fim, a terceira e última situação, relativa aos antigos combatentes que vêm regularizar a sua reforma de DFAs ou fazer tratamentos, ao abrigo dos acordos estabelecidos entre Portugal e os Estados Africanos, e que acabam por ficar a residir em Portugal. Uns decidem ficar por opção, enquanto outros, por motivos de saúde, ou por motivos económicos, acabam por ser forçados a permanecer em Portugal adiando, sine die, o seu regresso.

É o que acontece a Frederico que confessa que é por razões económicas que ainda está em Portugal.

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Documentos datados de 1977 da Direcção do Serviço de Pessoal, do Depósito Geral de Adidos do Ministério do Exército, falam neste problema, nomeadamente em GEs, Fiéis, Milícias e Flechas que foram evacuados do ‘ultramar’ por ferimentos ou doenças e se encontravam ainda ilegais em Portugal naquele ano. Nesse documento, também se informa que um sargento, evacuado da Guiné em 1972, teve alta do hospital em 1977, foi-lhe atribuída uma percentagem de desvalorização, ia auferir uma pensão de invalidez e optou pela nacionalidade portuguesa (Ministério da Defesa: cx 765.1).

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se eu tivesse dinheiro, doutora, mesmo hoje eu ia-me embora. O que me prende principalmente é a passagem, não tenho. Esse dinheiro que eu recebo não dá para comprar passagem, é muito caro, são 1000 e tal. Eu não tenho dinheiro para comprar a passagem (entrevista: Junho, 2008).

Balói teve um percurso diferente: veio e ficou em Portugal exclusivamente por motivos de saúde. Balói é um dos antigos combatentes que vivia no Anexo e que em 2001 foi transferido para o Hospital da Estrela onde ficou internado, até falecer, no dia 16 de Abril de 2009. Louro também se lembra dele, inclusive de quando chegou a Portugal, doente mas ainda "com as suas perninhas [...] era um rapazinho educado, um jovem [...] sempre paciente" (entrevista: Janeiro, 2009). Quando nos conhecemos, naquele Hospital, em 2008, Balói aguardava por mais uma das muitas cirurgias que fez em Portugal desde que chegou. Dessa vez, ia ser operado aos olhos. Em Novembro de 2008, enquanto recuperava dessa operação, que o tinha deixado com uma sensibilidade à luz que o obrigava a estar às escuras no seu quarto, Balói continuava a alimentar uma forte e incompreensível esperança de que, dessa vez, iria curar-se e que poderia, então, regressar definitivamente a Moçambique para junto dos seus (entrevista: Novembro, 2009).

Percurso semelhante teve André de Angola mas, ao contrário de Balói, ficou a residir em Portugal por opção, após regularizar a sua situação de reforma como DFA. André chegou a Portugal em 1997 para tratar da sua reforma e foi recebido no Hospital Militar de Lisboa ficando internado no Anexo. Quando este encerrou, André foi transferido para o Quartel de Paço de Arcos – o Centro Militar de Electrónica - onde residiu, alguns meses, até receber a sua reforma. André já conhecia o Anexo. No seu terceiro ano de serviço militar, em 1963, foi atingido por uma mina, veio evacuado para Portugal e ficou lá internado antes de ir para a Alemanha, onde passou um ano para adaptar-se à prótese que passou a substituir a perna que perdeu. Depois disso, André passou mais três anos no Anexo e foi reenviado para Angola, no Vera Cruz, sem, diz ele amargurado, receber qualquer indemnização. Quando nos conhecemos morava em Queluz-Belas, com a sua esposa com quem casara recentemente, depois de quase 50 anos de vida conjugal, de modo a garantir que ela passasse a usufruir dos direitos legais de esposa de DFA. Ela só veio para Portugal em 2002, após André ter reunido as condições que achava necessárias para a receber (entrevista: Julho, 2007).

Além do Hospital Militar e do Quartel de Paço de Arcos, o Regimento de Transmissões, situado na Graça, em Lisboa, é outro quartel que, desde que encerrou o

Anexo, passou a receber alguns dos homens que vieram na mesma situação do André, ao abrigo de protocolos estabelecidos entre Portugal e os Estados Africanos. Em 2011, eram vinte e nove os antigos combatentes africanos a residirem naqueles quartéis: cinco em Paço de Arcos e vinte e quatro na Graça. Quando contactámos pela primeira vez, com essa realidade, em Janeiro de 2008, o número de antigos combatentes africanos aí aquartelados correspondia àquele, variando, apenas, ao longo dos anos, quando algum conseguia receber a sua reforma e resolvia regressar ao seu país ou quando um dos quartéis recebia mais um antigo combatente.

Estes antigos combatentes queixam-se, sobretudo, do tempo que esperam pela resolução dos seus processos, chegando, para alguns, a ultrapassar dez anos.

Joaquim teve que esperar um pouco menos. Após ter conseguido a nacionalidade portuguesa, em Novembro de 2000, veio para Portugal em 2003 regularizar a sua situação de reforma, o que conseguiu passados seis anos. Com uma reforma de DFA no valor de 1159€38 Joaquim decidiu regressar a Moçambique. Ernesto, Flávio e Gonçalo, pelo contrário, estão em Portugal desde 2002, 2005 e 2004 respectivamente, e em 2011, residiam, ainda, naqueles quartéis226. Nesse ano, nenhum deles tinha resolvido o seu processo quanto à atribuição de reforma como DFA. A todos eles, contudo, já lhes tinha sido atribuída a nacionalidade portuguesa, por naturalização, que tinham requerido quando chegaram ou antes de vir, e que era exigida para poderem ter acesso às reformas que requeriam227. Todos eles esperavam que os seus processos se resolvessem para poderem regressar às suas terras natais228.

Embora estes e outros antigos combatentes africanos que residem, temporariamente, em quartéis portugueses se encontrem numa situação muito particular, muitas das suas preocupações, reivindicações e referências são semelhantes às de muitos outros que vivem em situações muito distintas como procuraremos mostrar de seguida, começando por analisar, com mais pormenor, a situação dos ‘aquartelados’.

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Não identificamos os quartéis onde cada um reside de maneira a preservar o anonimato dos entrevistados. Isto porque alguns, por apresentarem algumas críticas em relação à sua situação em Portugal ou em relação aos seus processos de reforma, mostraram recear represálias e pediram para não serem identificados.

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Até 2001, segundo o Acórdão n.º 423/2001. DR 258 SÉRIE I-A de 2001-11-07. 228

O documentário “Esquecidos da Pátria” do programa “Linha da Frente”, transmitido na RTP1 no dia 15 de Junho de 2011, apresenta testemunhos de alguns antigos combatentes africanos aquartelados.