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As técnicas de recolha de dados

Percurso e reflexões metodológicos

4. As técnicas de recolha de dados

Quanto às técnicas de recolha de dados, recorremos a técnicas documentais, à observação e à entrevista narrativa de relatos de vida.

As técnicas documentais foram utilizadas para recolher informações na imprensa e nos arquivos históricos. Relativamente aos arquivos, o objectivo foi o de encontrar informações sobre a integração dos antigos combatentes africanos nas FAP e sobre a sua desmobilização aquando dos processos de negociação de transferência de poderes depois do 25 de Abril de 1974. A maioria dos dados foi utilizada para descrever essas situações e apoiar a análise do contexto histórico da Guerra. Contudo, procedeu-se a um trabalho comparativo entre os três cenários o que permitiu avançar com algumas hipóteses exploratórias relativas às diferenças que assumiram as desmobilizações dos soldados africanos nos três territórios.

A análise efectuada à imprensa teve por objectivo captar a imagem e as representações que se transmitiam sobre os combatentes africanos, em Portugal, entre 1961 e 1974. Sabíamos, à partida, como os meios de comunicação exercem um papel fundamental na manipulação da opinião pública, particularmente durante regimes

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Segundo Pina Cabral, a identidade narrativa é uma das formas de objectivação das identidades entre outras, tais como as formas de linguagem, normas, leis, formas de consumo (2003).

totalitários que nela investem para procurar eliminar quaisquer representações e opiniões que desafiem as suas ideologias30. Com esta análise, de carácter qualitativo e sem pretensões de exaustividade, esperava-se ter acesso a informações sobre os combatentes africanos que, deste modo, correspondessem à propaganda ideológica que o Estado Novo desejava promover na medida em que, como é do conhecimento geral, a imprensa, foi objecto de censura, tal como aconteceu com outros meios de acção pública31. Em suma, esperava-se que a análise desse registo fornecesse elementos sobre a forma como esse mesmo regime pretendia posicionar os africanos no seu discurso colonial sobre a guerra.

Os dados foram utilizados descritivamente e para ilustrar algumas situações contextuais. Contudo, alguma informação encontrada na imprensa foi ao encontro de resultados obtidos noutros trabalhos, o que nos levou a propor uma hipótese exploratória que discutimos no capítulo terceiro. Analisaram-se os diários Diário de Notícias e O Século ao longo de todo o primeiro ano de guerra. A partir de 1962 e até ao ano de 1974, analisaram-se todos os meses de Junho do Diário de Notícias, alguns meses de Junho de O Século e outros meses seleccionados aleatoriamente para estabelecer um termo de comparação. O mês de Junho foi objecto de uma análise sistemática por se tratar daquele em que se comemorava o dia de Portugal e, sendo assim, supôs-se que as comemorações registadas, nesse dia, seriam representativas de aspectos significativos da ideologia do regime.

Para a recolha das narrativas de vida conjugámos duas técnicas: a recolha dos relatos através de entrevistas e a observação. Procurámos adoptar um estilo etnográfico, utilizando a observação como uma das técnicas privilegiadas de recolha de dados. Esta, e sobretudo a observação participante, que implica a inserção do observador no grupo observado, “[…] permite uma análise global e intensiva do objecto de estudo” (Almeida e Pinto, 1982: 97). Neste trabalho diríamos que foi utilizada uma observação parcialmente participante, isto porque, se, por um lado, ao longo da investigação fomos acompanhando e participando em várias actividades do quotidiano de antigos combatentes, inclusive na esfera privada das suas vidas, por outro lado, o investigador,

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Sobre o poder de manipulação dos mass media, particularmente em épocas de guerras, consulte-se Noam Chomsky (2003).

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Acerca da censura implementada ao longo do Estado Novo veja-se Rosas (1994), Santos (2004) e Cabrera (2006).

neste caso concreto, nunca poderia integrar-se intensamente num grupo pelo simples facto de ser mulher, branca, europeia, e não ter vivido a guerra como um combatente.

Para a recolha dos relatos de vida na primeira pessoa, utilizamos entrevistas narrativas focadas no tema da Guerra Colonial. Ao contrário dos questionários com perguntas fechadas que determinam, à partida, a parte da realidade social que pretendem capturar, e mesmo das entrevistas semi-estruturadas cujas respostas não deixam de ser provocadas pelas questões que se vão colocando (Pais, 2007: 147), pensamos que as entrevistas narrativas dão maior liberdade ao sujeito quanto ao relato que quer contar. Como nos interessava particularmente saber os significados que os sujeitos atribuem aos seus percursos, essa técnica pareceu-nos a mais indicada. Isto sobretudo pela forma como são orientadas estas entrevistas. Estas entrevistas começam com uma pergunta genérica e ampla de acordo com o relato que se pretende, de modo a estimular a narrativa nuclear do entrevistado em direcção à área temática e a importância da fase da vida que se pretendem explorar. No caso concreto das nossas entrevistas, a pergunta com que iniciamos as entrevistas seguiu o modelo apresentado por Hermanns, e foi a seguinte: “gostaria de lhe pedir que me contasse a história da sua vida” (apud Flick, 2005: 101). Segundo este modelo de entrevista, só quando o entrevistado dá por terminado o seu relato é que o entrevistador coloca questões no sentido de explorar fragmentos da vida que considera terem ficado por examinar ou poderem ser completados com outras informações. Por fim, segue-se uma fase de balanço da narrativa, onde as questões do entrevistador procuram que o entrevistado explique e atribua significados a momentos da sua vida (Flick, 2005: 100- 107). Deste modo, estas entrevistas não são totalmente abertas, e a sua estruturação e reestruturação depende sempre do primeiro relato oferecido pelo entrevistado.

Uma das entrevistas efectuadas foi em grupo. Nestas, o papel do entrevistador é apenas o de moderador, no sentido de procurar que cada entrevistado apresente a sua opinião sobre os temas debatidos entre eles. Trata-se de uma experiência muito particular, sobretudo pela forma como cada entrevistado estimula o debate e apoia os outros na recordação dos acontecimentos (Flick, 2005: 116-122). Contudo os três homens entrevistados em grupo foram, posteriormente, entrevistados individualmente.

Uma vez que o objectivo das entrevistas era recolher o máximo de informação possível sobre os percursos dos sujeitos que abrangesse a sua vida antes, durante e depois da sua participação na Guerra incluindo a sua situação em Portugal, construímos um guião de entrevista que foi utilizado para orientar as narrativas para estes momentos

quando algum deles não era narrado, e para provocar o sujeito no sentido de examinar e atribuir significados aos percursos que empreendeu.

Relativamente ao grupo de antigos combatentes entrevistados, como a maioria das investigações que recorrem a metodologias qualitativas, não podemos falar em representativa estatística da amostra. Contudo, tentámos seguir o princípio da representatividade social segundo a qual se procura garantir uma diversidade de perfis, de opiniões, de expectativas relativamente aos sujeitos a entrevistar, e alcançar a saturação do material recolhido (Guerra, 2006: 20-21). Nesta pesquisa, entrevistámos quarenta antigos combatentes africanos das FAP: dezasseis da Guiné-Bissau; dezasseis de Moçambique e oito de Angola. Em relação aos naturais de Moçambique e da Guiné-Bissau era possível aumentar o número de sujeitos entrevistados, porque encontrámos mais homens disponíveis e dispostos a oferecer o seu depoimento. Contudo, consideramos que os dados recolhidos com aqueles eram os necessários para garantir a representatividade social que procurávamos. Quanto aos homens de Angola, embora se considere que os dados recolhidos com o número de casos envolvidos sejam suficientes porque vão ao encontro dos objectivos da nossa pesquisa, na realidade, não encontrámos mais homens naturais desse país que quisessem oferecer os seus testemunhos, embora se tenha feito um esforço extraordinário nesse sentido.

Para analisar as entrevistas socorremo-nos da análise de conteúdo. Todas as entrevistas começaram por ser transcritas literalmente. Para analisar os dados procedeu-se a uma análiprocedeu-se descritiva onde procedeu-se identificaram todas as problemáticas preprocedeu-sentes nas entrevistas e, de acordo com elas, procedeu-se à sua categorização. Com base nas categorias consideradas mais significativas, procedeu-se a uma análise comparativa entre os dados. Para proceder a esta análise recorremos ao programa N’Vivo, uma ferramenta particularmente útil para tratar a quantidade de dados que tínhamos ao nosso dispor. Além disso, a utilização deste programa foi também importante para estabelecer o distanciamento necessário em relação às narrativas de cada sujeito, e ter uma visão conjunta de todos os dados.

Embora a análise de conteúdo empreendida tenha sido fundamental, concordamos com Machado Pais segundo o qual, relativamente à lógica de continuidade do discurso que deriva do encadeamento da fala, se trata de um método que constitui, por vezes, “[…] um desvelar de sentido, mas ao mesmo tempo, um despedaçar desse mesmo sentido; uma sequência de fragmentos cortados, um esquartejamento de uma unidade de sentido que dá lugar, sub-repticiamente, a outros sentidos (interpretativos)” (2007:

149-150). E, se não há dúvida que este esquartejamento do discurso tem a vantagem de oferecer ao investigador caminhos necessários para passar da descrição à interpretação dos dados, também consideramos que, no caso da pesquisa efectuada, esta análise dificultava o acesso a uma visão de totalidade e de continuidade que queríamos encontrar em relação aos percursos de vida dos sujeitos. Por isso, para captar estas características, e com base nos dados recolhidos nas entrevistas e na observação, procedemos à construção do percurso vida de cada um dos entrevistados. Os percursos foram (re)construídos seguindo uma lógica cronológica ao longo da qual se estruturaram os diferentes momentos dos percursos destes homens, associados aos significados que atribuíam a cada um.

Foi com base neste trabalho analítico que procedemos à comparação dos percursos entre si e à construção das tipologias dos percursos de vida dos antigos combatentes africanos das FAP.