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Do colonial, do pós-colonial e dos sujeitos (pós)coloniais

5. Pensar na fronteira

Todas as teorias apresentadas interpelam, de algum modo, o conceito de fronteira. Fronteiras que se constroem e outras que se diluem, fronteiras entre Oriente e Ocidente, entre colonizado e colonizador, entre supostas raças, culturas e identidades, entre os que não podem falar e os que não ouvem, entre homens e mulheres, fronteiras que se reconfiguram na diáspora, fronteiras que se diluem entre campos.

Fronteiras simbólicas ou materiais que, no pensamento ocidental moderno, representaram fundamentalmente linhas de demarcação que separaram o que pretendiam que se diferenciasse, ao mesmo tempo que encerraram aquilo que consideravam e desejavam que se assemelhasse.

Deste modo, pensar as fronteiras remete inevitavelmente para a problemática da construção de delimitações e das relações de poder subjacente às mesmas. Delimitações que podem ser territoriais, tais como as que configuram os estados-nação modernos, mas que, e ao mesmo tempo, alimentam e sustentam a construção ideológica, cultural e

identitária das comunidades ditas nacionais e que, segundo Benedict Anderson (2005), não passam de comunidades imaginadas.

Pensar as fronteiras desta forma significa, ainda, reconhecer que constituem delimitações que permitem distinguir e identificar uns e outros e que são instrumentos ao serviço de estratégias de dominação.

O que os estudos pós-coloniais e as perspectivas feministas têm revelado é que reduzir o significado de fronteira à ideia de delimitação significa ignorar a sua complexidade e as potencialidades que ela oferece. A problemática da fronteira não remete unicamente para o reconhecimento da existência de espaços dicotómicos, impermeáveis e intransponíveis. Ela tem sido conceptualizada como um lugar de múltiplas contradições, geradora de contaminações, como lugares de fluxos e trânsitos, de encontros, coexistência e co-presenças, de diálogos, intercâmbios e transculturações. Ao mesmo tempo que delimitam e distinguem, que estabelecem e fixam diferenças, as fronteiras são, para Susan Friedman “uma zona de contacto onde convergem diferenças fluídas, onde o poder circula de formas complexas e multidireccionais, onde a capacidade de acção existe de ambos os lados desse fosso permanentemente mutável e permeável” (2001: 9).

Como lembra António de Sousa Ribeiro, já em 1979 Bakhtine defendera que "todo o acto cultural vive, no essencial, nas fronteiras", após observar que "no domínio da cultura, não existe um território interior: ele situa-se inteiramente nas fronteiras, por toda a parte, por cada um dos seus elementos, há fronteiras a passar" (apud Ribeiro, 2005: 3).

Nesta óptica, é a própria fronteira, geradora de contaminações, que permite pensar que os espaços do colonizador e do colonizado não são puros, nem fechados, nem sequer intransponíveis. Nesta lógica de interacção dinâmica, que pensa a fronteira como uma espécie de lugar outro, o conceito de zonas de contacto oferece, pensamos, toda a sua potencialidade analítica. Explorado por Mary Louise Pratt, no seu esforço em descolonizar o conhecimento, as zonas de contacto são entendidas como "espaços sociais onde diferentes culturas se cruzam, embatem e lutam entre si, geralmente no seio de relações altamente assimétricas de dominação e de subordinação, como o colonialismo, a escravatura ou outras que daí resultam e que se vivem actualmente em muitas partes do mundo" (1992: 4).

Sem ignorar as relações desiguais e conflituosas que envolvem o encontro colonial, o conceito de zona de contacto permite, sobretudo, convocar, para esta análise, as

dimensões interactiva e imprevisível desse encontro, dimensões raramente reconhecidas nas concepções que acompanharam conquistas e dominações. Neste caso, é no contacto que se situa a problemática porque nele se intersectam sujeitos "previamente separados por disjunturas geográficas e históricas”, sujeitos que se constituem nas relações que entre eles estabelecem (Pratt, 1992: 7). Neste sentido, colonizador e colonizado convertem-se em sujeitos cuja co-presença espacial e temporal os coloca em interacção e intercâmbio em espaços não necessariamente opostos.

De modo a realçar as relações bilaterais que podem emergir nessa zona, e de não se render a perspectivas que apenas entendem a relação colonial como relação de subordinação, imposição e assimilação entre outras, Mary Louise Pratt acrescenta que, embora não possam controlar o que emana da cultura dominante, os subjugados podem no entanto determinar de várias formas o que absorvem, o que usam e como o usam (1992: 6).

Deste modo, as fronteiras remetem para uma pluralidade de possibilidades. Para Friedman

as fronteiras, com as suas linhas de demarcação, simbolizam a ideia de impermeabilidades, se bem que seja de permeabilidade a realidade com que convivem. As fronteiras separam ao mesmo tempo que ligam. Remetem para noções de pureza, distinção e diferença, mas por outro lado propiciam a contaminação, a mistura e a crioulização. As fronteiras fixam e demarcam, mas são, em si mesmas, linhas imaginárias, fluídas, e em permanente processo de mutação. As fronteiras prometem segurança, estabilidade, a sensação de se estar «em casa», ou «na sua terra» - ao mesmo tempo que forçam a exclusão e que impõem a condição de estranho, de estrangeiro, e de apátrida. As fronteiras são a materialização da Lei, policiando as divisões; mas, por isso mesmo, elas vêem-se constantemente atravessadas, transgredidas e subvertidas. As fronteiras são usadas para exercer o poder sobre os outros, mas também para ir buscar o poder que permite sobreviver contra uma força dominante. Regulam os movimentos migratórios e de quem viaja – os fluxos de pessoas, bens, ideias, e das formações culturais de toda a espécie. Ao fazê-lo, no entanto, contrariam as práticas de regulação, na medida em que promovem os encontros interculturais e a concomitante produção de hibridizações e de heterogeneidades sincréticas (2001: 9).

Comparando-as com fricções provocadas pelas placas tectónicas que provocam erupções, Friedman acrescenta que “[...] as fronteiras são lugares de ódio e de mortandade. Elas são também, no entanto, lugares onde moram o desejo utópico, a reconciliação e a paz” (2001: 9).

Convém realçar que falar de fronteiras significa também falar de fronteiras metafóricas ou simbólicas como as de género, de classe, de orientação sexual, de raça etc.. Fronteiras normalmente binárias construídas pelo pensamento ocidental e que delimitam esferas consideradas intransponíveis. Segundo Anzaldúa, uma autora chicana cujos contributos na problematização das fronteiras são hoje reconhecidos no seio das teorias pós-coloniais e nas teorias feministas e queer, essas fronteiras não são mais do que "unnatural boundaries". No seu livro Borderlands/la frontera: the new mestiza, a fronteira é esse lugar onde coexistem culturas, raças, classes; um território outro que deixa de ser aquilo para o qual foi criado. Ou seja, a fronteira estabelecida como lugar de delimitação de diferenças e pertenças, é um lugar outro, um lugar vago, indeterminado e transitório. A fronteira da mestiça é esse sítio onde tudo o que é suposto ela distinguir e separar, coexiste. Coexistência que não é pacífica. Bem pelo contrário, é um lugar de conflito, e é nesse conflito entre as diferenças que colidem entre si na fronteira que reside a mestiça. Resultado desses diferenciados e diferenciadores lugares aos quais pertence, não pertence ou deixou de pertencer, a

mestiza representa um ser entrecruzado, um ser a entrecruzar-se nesse ponto de união fluído e efémero que é a fronteira. Ponto de união que não significa uma junção de referências díspares onde os contrastes entrariam em equilíbrio. É um lugar de tradução numa coisa outra, um entre-lugar, um lugar do meio que ultrapassa a soma e articulação das diferenças e onde se forma o que a autora denomina a nova consciência mestiça

(1997: 765-767).

Para Anzaldúa a nova consciência mestiça é uma consciência livre da violência gerada pelo binarismo positivista do pensamento Ocidental mas é, ao mesmo tempo, um lugar de inquietude gerado pelas dificuldades em lidar com o embate entre as referências múltiplas e contraditórias que nela se entrecruzam.

A consciência mestiça é a consciência das fronteiras, como o assume Anzaldúa

Because I, a mestiza

continually walk out from one culture and into another,

because I am in all cultures at the same time,

alma entre dos mundos, tres, quatro me zumba la cabeza con lo contradictorio.

estoy norteada por todas las vocês que me hablan