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Percurso e reflexões metodológicos

2. Reflexões metodológicas

A metodologia qualitativa adoptada neste trabalho decorreu, em grande parte, do seu próprio objecto de estudo. Desde o desenho do projecto que se pretendia utilizar uma abordagem que não fechasse, à partida, as possibilidades de interpretação. Ao contrário das metodologias quantitativas que produzem um conhecimento “[…] claramente mais sistemático, comprovável, mensurável, replicável e generalizável […]” (Pais, 2007: 153), cujas vantagens também reconhecemos relativamente aos trabalhos deste pendor, o que procurávamos, na realidade, era a diversidade de opções que as metodologias qualitativas oferecem, bem como o tipo de realidade e de fenómenos que as mesmas permitem alcançar e que se distinguem claramente das abordagens mais positivistas. Segundo Machado Pais, as abordagens qualitativas assentam, fundamentalmente, na análise dos critérios de significação subjectiva que dirigem as maneiras de pensar, de agir e de ser dos sujeitos e permitem “[…] analisar as práticas e os modos como os indivíduos constroem a estabilidade do mundo social, ao mesmo tempo que o fazem descritível, observável, objecto de informe” (2007: 100). Para Isabel Guerra, trata-se de metodologias que encontram nos processos sociais “[…] a lógica social dos fenómenos, o que só poderá ser realizado a partir do centramento das análises nas racionalidades dos sujeitos” (Guerra, 2006: 15). Quando centrada num sujeito histórico em acção, segundo a mesma autora, “[…] esta metodologia observa, no mesmo movimento, o sujeito e a

sociedade em interacção, mas também, e simultaneamente, os factos e as emoções que os acompanham” (Guerra, 2006: 19).

Era a esse mundo do social dos antigos combatentes africanos das FAP ao qual queríamos ter acesso. E a intenção primeira era fazê-lo munidos de um mínimo de referências conceptuais, de modo a partir para o trabalho empírico com uma atitude aberta, numa lógica de descoberta. Lógica que não corresponde, de todo, às abordagens mais cartesianas, que obrigam à construção prévia de um quadro teórico e ao cumprimento de uma sequência rígida de etapas de pesquisa que, ao enquadrar excessivamente a investigação, comprometem a priori a possibilidade de estudar lugares inesperados do social com que eventualmente possamos ser surpreendidos ao longo da pesquisa. Ao optar por uma abordagem interpretativa, poderíamos também ir orientando e reorientando as nossas opções metodológicas e epistemológicas em articulação com a pesquisa de terreno.

Isto não significa que tenhamos enveredado por uma abordagem indutiva, como a que é seguida pelas “teorias ancoradas” (Grounded Theories) cujo objectivo é produzir teorias gerais a partir da análise dos dados empíricos. Estas propostas excluem a função de comando da teoria na produção do conhecimento. O que procuram é produzir conceitos e categorias que vão construindo e comparando com os dados ao longo do trabalho empírico, dando assim origem à teorização (Guerra, 2006: 22-26). Adoptámos uma abordagem que garantisse um certo compromisso entre a indução e a dedução.

Assim, não partimos para o trabalho de campo munidos de qualquer tipo de categorias analíticas ou de grelhas de observação previamente definidos. Deste modo, deixava-se em aberto um amplo campo de possibilidades analíticas. Isto não significa, contudo, que não tivéssemos formulado previamente um enquadramento teórico e hipotético decorrentes dos objectivos da investigação que tínhamos desenhado. Mas este foi construído, sobretudo, com o objectivo de orientar as primeiras experiências empíricas, sem, contudo, ser adoptado como um modelo estático, nem constituir a base a partir da qual se partiria para um trabalho de carácter dedutivo. No fundo, o que se esperava era estabelecer um diálogo constante entre o trabalho empírico e o trabalho teórico.

Optámos, então, pelo estudo de caso por ser um método que é particularmente útil para as pesquisas que têm como intenção estudar, de modo aprofundado, uma amostra seleccionada de acordo com um determinado objectivo de investigação. A flexibilidade deste método, que se traduz na possibilidade de utilização mais livre e ampla de

diversas técnicas, adequa-se às investigações que pretendem analisar uma grande quantidade de material. Assim, trata-se de um método que permite aceder a uma multiplicidade de factores e acontecimentos interaccionantes em curso, e que garante o acesso a diversos níveis de análise (Bell, 1997: 23-24; Almeida e Pinto, 1982: 87).

Para a interpretação dos dados recolhidos, e exclusivamente no que diz respeito àqueles respeitantes aos percursos de vida dos antigos combatentes que foram recolhidos através da observação e de entrevistas narrativas, contámos com os métodos comparativo e tipológico. Com a conjugação destes métodos pode proceder-se a um trabalho de abstracção que, partindo da comparação dos aspectos essenciais dos fenómenos, selecciona similitudes e divergências, encontra elementos constantes e gerais a partir dos quais se podem construir tipologias ou ideais-tipo (Lakatos, 1991: 107-112; Guerra, 2006: 13-26). Foi o que fizemos em relação à análise dos percursos dos antigos combatentes africanos das FAP. Com base na comparação de vários factores relativos aos seus percursos de vida concretos e aos significados que lhes atribuíam, foi possível construir uma tipologia que permitiu distribuí-los por diversos tipos de percursos de acordo com as semelhanças e divergências identificadas entre eles.

Apesar de ter cumprido todos os pressupostos metodológicos apresentados, este trabalho coloca alguns problemas particulares no que respeita a objectividade do conhecimento científico. Esses problemas correspondem, antes de mais, àqueles que se prendem a qualquer investigação que utilize metodologias qualitativas, mas também, em particular, àqueles que decorrem da aplicação de técnicas de recolha de dados que obriguem a uma relação mais intimista entre o investigador e os sujeitos estudados.

O conhecimento produzido nestas condições é objecto de questionamentos, e frequentemente de dúvidas, sobretudo entre os apologistas de epistemologias de pendor positivista, no que diz respeito à verdade e à validade dos resultados obtidos nestas investigações. Para estas epistemologias, em termos gerais, a verdade e a validade advêm da supressão de quaisquer interpretações e argumentos subjectivos na produção do conhecimento. Mas, na realidade, o que os investigadores interessados em conhecer as experiências, opiniões, expectativas, valores e percepções pretendem não é uma verdade. Como esclarecem Michelle Lessard-Hébert, Goyette e Boutin, o interesse das pesquisas qualitativas está antes no “significado conferido pelos «actores» às acções nas quais se empenharam. Este significado é o produto de um processo de interpretação que desempenha um papel-chave na vida social” (1990: 32).

No mesmo sentido, pensamos que mais do que a verdade, o resultado que o investigador, que recorre a metodologias qualitativas, espera é ter acesso a esses múltiplos significados atribuídos pelos sujeitos ao seu mundo social, compreender as realidades tal como são entendidas pelos mesmos e encontrar os sentidos com que estes significados estão associados a outros fenómenos que com eles interagem.

As críticas dirigidas ao problema da subjectividade das investigações qualitativas não se reduzem ao tipo de dados utilizados e aos resultados destas pesquisas. Estas críticas prendem-se à forma como se concebe a objectividade do conhecimento. Objectividade que para as abordagens de cariz mais positivista significa, em termos muito genéricos, a neutralidade do conhecimento, ou seja um conhecimento isento de qualquer interferência subjectiva. Um conhecimento neutro que, segundo estas abordagens, depende fundamentalmente da forma como se produz o conhecimento sobre a realidade. Neste sentido, o relacionamento de proximidade entre o investigador e os sujeitos estudados, as relações de confiança que entre eles se estabelecem, e os sentimentos, as expectativas e os perfis dos sujeitos que se envolvem nessas relações, e que atravessam a produção de conhecimento desenvolvido no âmbito das metodologias qualitativas, são apontados como obstáculos à neutralidade do conhecimento. Sem essa neutralidade, segundo estas concepções, não há objectividade e consequentemente também o conhecimento produzido nestas condições carece de validade científica.

Não é essa a perspectiva que se assume neste trabalho. Seguimos epistemologias que entendem que o conhecimento não é neutro, mas que consideram, ao mesmo tempo, que não é da neutralidade que depende a objectividade da produção científica. Parte-se então do pressuposto construtivista segundo o qual o conhecimento é socialmente construído, ou seja, que o conhecimento é um produto da subjectividade, um produto da relação entre sujeito e objecto de conhecimento, relação essa histórica, social e subjectivamente situada (Chafetz, 2006: 27-39).

Alinhamos, especialmente, com as perspectivas feministas, segundo as quais o conhecimento é situado e parcial. Segundo esta abordagem, defendida pelas feministas da standpoint theory, o conhecimento é produto do tempo e do lugar de onde é produzido (Harding, 2004). Pressuposto que tem implicações várias quanto à forma como se concebe o conhecimento em geral, e a problemática da objectividade do mesmo, em particular. Este ponto de vista transforma o sujeito e o objecto numa relação epistemológica. O sujeito do conhecimento é colectivo, produto das diversas experiências envolvidas nessa relação epistemológica. Não se trata de um conhecimento

que considera que o ponto de vista privilegiado é o das mulheres, ao contrário de outras perspectivas feministas mais radicais, porque entre as mulheres existem também múltiplos e por vezes conflituosos pontos de vista de acordo com cada posicionamento, isto é com o lugar e o tempo de onde partem (Chafetz, 2006: 38-39).

Para Sandra Harding, defensora desta epistemologia feminista, nenhum conhecimento se constrói sem conter as marcas que revelam o seu processo de produção, quer dizer, os interesses e posicionamentos pessoais, sociais e políticos do investigador. E que, as condições que condicionam o conhecimento, condicionam igualmente os investigadores e os seus projectos. A mesma autora defende, inclusivamente, que adoptar este ponto de vista não permite apenas revelar como a situação social condiciona qualquer projecto científico. Mais importante para ela é o facto de transformar esse conhecimento situado num recurso científico disponível, visível. Ao fazê-lo, segundo Harding, estas perspectivas aprendem a usar o posicionamento social dos seus objectos de conhecimento como recursos para maximizar a sua objectividade (Harding, 2004: 128-133).

Neste trabalho, adoptamos a solução avançada por Sandra Harding para maximizar a objectividade de um conhecimento que se assume como parcial e situado. Trata-se de um programa assente numa forte reflexividade. Harding parte do pressuposto que a objectividade é mistificada, sobretudo entre as abordagens que não têm em consideração os vários condicionalismos que afectam qualquer produção e produto científicos. Pelo contrário, defende que este ponto de vista feminista persegue uma forte objectividade já que coloca o sujeito do conhecimento no mesmo plano crítico e causal dos objectos de conhecimento. Criticar o conhecimento, bem como o sujeito que o produz, obriga, então, a uma forte reflexividade que percorre todo o desenho da pesquisa, desde a selecção do problema, passando por todas as fases de recolha, análise e interpretação dos dados. Apesar deste programa de reflexividade constituir um exercício para maximizar a objectividade, Harding conclui que não existe uma forma única de a conceptualizar. Diz a autora: "a noção de objectividade é útil em proporcionar uma forma de pensar acerca do hiato que pode existir entre como um determinado indivíduo ou grupo quer que o mundo seja e como ele é de facto" (Harding, 2004: 137-138).