• Nenhum resultado encontrado

Moçambique: purificação e punição dos desmobilizados

Independências e Desmobilização dos Combatentes Africanos

3. Moçambique: purificação e punição dos desmobilizados

A desmobilização dos combatentes africanos das FAP em Moçambique não parece ter envolvido muitos problemas a não ser a necessidade de a fazer rapidamente, como se pode constatar em alguns artigos do Acordo de Lusaca. Há, contudo indícios que revelam certos receios em relação ao futuro dos combatentes das FAP de origem moçambicana.

Um desses indícios, que revela alguma apreensão quanto a eventuais retaliações que os antigos soldados moçambicanos das FAP poderiam vir a sofrer, é manifestado por Joana Simeão - líder do Grupo Unido de Moçambique (GUMO)169, antiga militante da FRELIMO e do Comité Revolucionário de Moçambique (COREMO)170, e de outros movimentos formados posteriormente. Durante os encontros de preparação para a negociação do cessar-fogo e dos Acordos de Lusaca, em Junho de 1974, Joana Simeão declarou, publicamente, que poderia haver um genocídio no território contra os milhares de soldados de origem africana que lutaram nas forças portuguesas contra as guerrilhas. Simeão defendia a necessidade de salvaguardar o futuro desses homens no decorrer dos processos de negociação da independência de Moçambique (AHDMNE, 1309, Vol.I, 941.1.D). Suspeita que, segundo os dados disponíveis, não chegou a acontecer, o que não parece, contudo, ter ficado a dever-se a qualquer acordo pré-estabelecido.

Do lado português também há indícios que denotam que o futuro dos combatentes africanos das FAP em Moçambique é motivo de preocupação. Vítor Crespo, Alto-Comissário e Comandante das Forças Armadas Portuguesas em Moçambique no período de transição para a independência, disse ter notado muito interesse em relação aos soldados recrutados localmente por parte das forças moçambicanas171. Após ter verificado que a confidencialidade de certos registos não estava garantida172, sentiu-se,

169

Sobre a origem e características deste grupo, consulte-se MacQueen (1998: 139) e Pinto (2003: 24). 170

Joana Simeão, entre outros dissidentes da FRELIMO, foi detida depois da independência de Moçambique e posteriormente executada (Cabrita, 2000:81-82; Bernardo, 2003: 268-269).

171

No final do Colóquio Vozes da Revolução, Guerra Colonial e Descolonização (15 e 16 de Abril 2010, Lisboa, ISCTE) onde o Sr. Contra-Almirante Vitor Crespo apresentou o seu testemunho, questionamo-lo acerca do número muito reduzido de processos individuais dos antigos combatentes de origem moçambicana no Arquivo Geral do Exército.

172

O Contra-Almirante Vítor Crespo disse-nos que enviou alguns dados para Portugal, para locais considerados seguros, para verificar a sua confidencialidade e que, pouco depois, verificou que estes eram revelados à FRELIMO.

então, obrigado a destruir milhares de processos da PIDE/DGS173 em Moçambique, de modo a salvaguardar eventuais retaliações. Muitos combatentes das FAP tinham processos abertos na PIDE/DGS e, por isso, esses dados foram destruídos174.

No que respeita as negociações, segundo Coelho e Macaringue, Portugal queria que parte dos soldados de origem moçambicana desmobilizada das suas forças fosse integrada no Exército moçambicano, o que a FRELIMO recusou, "[...] alegando que elas faziam parte da máquina colonial que tinha de ser desmantelada"(apud Coelho, 2003:190). O número muito elevado de efectivos locais que, na época, pertenciam às forças coloniais175, representava mais do dobro dos homens das Forças Populares de Libertação de Moçambique (FPLM) as quais não teriam mais de dez mil combatentes, situação que poderá, também, ter contribuído para que a FRELIMO considerasse imprudente integrá-los no seu exército (Coelho,2003:190).

Jacinto Veloso, que participou como membro da delegação da FRELIMO nos Acordos de Lusaca, não recorda nenhum acordo escrito que garantisse que o Estado português zelaria pelo futuro dos seus antigos combatentes moçambicanos desmobilizados, mas confirmou que a FRELIMO exigiu que Portugal devia tomar conta daqueles que fizeram o serviço militar português, em particular os Deficientes das FAP (Jossias, 2007:46). A responsabilidade de assumir o pagamento de pensões e reformas foi estabelecida, não no Acordo de Lusaca, mas noutro acordo que se lhe seguiu, o Acordo de Lourenço Marques de 7 de Maio de 1975, cujo artigo 16º dispunha:

o Estado português assume a responsabilidade pelo pagamento das reformas e pensões já concedidas, à data da independência de Moçambique, aos militares e ex-militares, seus familiares que a elas tenham direito, que prestaram ou prestam serviço nas Forças Armadas Portuguesas, independentemente da nacionalidade ou do local de residência dos respectivos beneficiários e devidas ao cumprimento daquele serviço (ADN: 765.1).

173

Segundo as normas de Segurança Militar – Defesa e Salvaguarda de matérias classificadas (SEGMIL-1), prevê-se a destruição total de documentos prevê-sem registo dos documentos ou certificados de destruição. Segundo o Contra-Almirante Vítor Crespo, a PIDE/DGS em Moçambique teria à volta de 30 000 processos.

174

Os registos do Exército não foram destruídos mas, segundo Aniceto Afonso, Director do Arquivo Histórico-Militar entre 1993 e 2008, com quem falámos a este propósito no Colóquio Vozes da Revolução, Guerra Colonial e Descolonização (15 e 16 de Abril 2010, Lisboa, ISCTE), esses processos individuais ficaram espalhados pelos quartéis um pouco por todo o Moçambique. Por isso, no Arquivo Geral do Exército em relação aos processos de Moçambique só existe um livro de recenseamento dos homens nascidos entre 1906 e 1956 e nem todos os processos individuais, nele registados, constam no Arquivo. Segundo José Andréz, Director desse Arquivo em 2009, a maioria dos processos individuais relativos aos antigos combatentes oriundos de Moçambique nunca foram transferidos para Portugal (entrevista: Novembro, 2008).

175

Em 1973, os efectivos locais equivaliam a 53,6% do total dos militares das FAP em Moçambique, ou seja 27 572 homens, num total de 51 463 homens, como já foi indicado no capítulo anterior.

Nos Acordos de Lusaca, que decorreram entre os dias 5 e 7 de Setembro de 1974 entre as Delegações da FRELIMO e do Estado Português176, onde se estabeleceu que a independência de Moçambique seria proclamada no dia 25 de Junho de 1975177 e que o cessar-fogo se iniciaria às zero horas do dia seguinte à assinatura dos Acordos, o que ficou determinado, em relação aos antigos combatentes de origem moçambicana das Forças Armadas Portuguesas, foi, essencialmente, a sua desmobilização e o compromisso, por parte da FRELIMO, de proceder à sua reintegração na sociedade moçambicana (Art.13.º)178.

Enquanto em relação às forças regulares o acordo não determinava o prazo da sua desmobilização, o mesmo não acontecia em relação às tropas especiais - os GE, os GEP e os Comandos (Art. 13.º) -, e às forças irregulares - os corpos de milícias, OPVDC, milícias privadas, Flechas179 e similares (Art. 9.º). Em relação a estas, o Estado português comprometeu-se a desarmá-las e a desmobilizá-las imediatamente. A urgência desta desmobilização prende-se, muito provavelmente, ao facto de serem consideradas, organizações que poderiam ser perturbadoras da ordem pública, como aliás é assumido no próprio Acordo180.

Apesar deste tipo de receios, a desmobilização das tropas de origem moçambicana fez-se sem se terem verificado incidentes que merecessem qualquer tipo de registo por parte das autoridades envolvidas no processo de transferência de poderes181.

Em contrapartida, um dos episódios que poderá ter afectado a desmobilização dos combatentes africanos das FAP e que marcou o processo de transferência de poderes em Moçambique foram os violentos confrontos registados no próprio dia da assinatura dos

176

A FRELIMO não era o único protagonista com pretensões a ser objecto da transferência de poderes. A par da COREMO, rival da FRELIMO desde os anos 60, e que, com o 25 de Abril passa a concorrer-lhe com um conjunto de organizações que cria para esse efeito, surgem desde movimentos defensores da tendência federalista, defendida por Spínola, até movimentos mais radicais ligados a colonos brancos e ao modelo político-ideológico rodesiano. Esta explosão de organizações dificulta o processo negocial. Portugal reconhece a FRELIMO como o único órgão de transferência de poderes (Pinto, 1999:93-94; Garcia, 2003: 127-144). Segundo Vítor Crespo a FRELIMO foi a única escolhida para a negociação porque foi a "[...] que manteve a luta armada pela independência durante dez anos e tem o apoio popular generalizado" (in Bernardo, 2003: 272).

177

Dia do aniversário da FRELIMO. 178

E no Artigo 14.º "o Estado português compromete-se a desmobilizar os moçambicanos das Forças Armadas fora do território de Moçambique que assim o requeiram e deste facto notificará a Frente de Libertação de Moçambique (Acordo de Lusaca).

179

Segundo Manuel Bernardo, parece que a maioria dos Flechas se terá refugiado na Rodésia, após "[...] a ordem de prisão de todos os elementos da DGS, em 8-6-1974" (2003:115).

180

Designadamente no Título IV relativo à "neutralização de organizações e actividades perturbadoras da ordem pública", que compreende o Art. 9.º, e o Art. 13.º, que estabelece que "[...] A fim de evitar perturbações da ordem pública, as forças especiais como os GE, GEP e Comandos, serão imediatamente desarmadas (Acordo de Lusaca).

181

Acordos de Lusaca. Originados por grupos da ‘comunidade branca’, "[...] com o apoio de alguns partidos opositores da FRELIMO", estes confrontos compreenderam, entre outras acções, a libertação de agentes da DGS e a ocupação do Aeroporto e da Rádio Clube de Moçambique182. Estes incidentes, que assumiram um carácter racial, não foram os únicos que se registaram em Moçambique nessa época183, sendo os responsáveis pelo início do êxodo da população de origem portuguesa de Moçambique.

Estes confrontos poderão ter afectado o processo de desmobilização das forças africanas das FAP, por um lado porque se receava que algumas poderiam interferir no desenrolar da situação relativa às independências de países vizinhos184, por outro lado porque parecem ter contribuído para debilitar o grau de confiança que se depositava nessas forças 185.

Com a independência, forma-se, em Moçambique, um Exército nacional com base nas estruturas da FRELIMO, do qual foram excluídos os antigos combatentes das FAP. Esta situação não constituiu a única forma de exclusão a que os antigos combatentes foram sujeitos a partir da independência de Moçambique.

Muitos destes antigos combatentes, assim como outros sujeitos considerados comprometidos com o regime colonial, foram excluídos de certos cargos das novas instituições criadas pela FRELIMO e da maioria das actividades políticas e administrativas, bem como dos cargos de chefia existentes no novo Estado independente (Jossias, 2007: 38).

A situação mais excludente foi, contudo, o internamento em campos de reeducação. Este internamento não foi, porém, uma prática exclusivamente dirigida aos antigos

182

Estes incidentes não obtiveram reacção imediata por parte de algumas unidades militares da capital "[...] por aparente ausência de ordem de Spínola [...]", vindo a ser controlados, dias depois, por unidades provenientes do Norte, por ordem do General Costa Gomes (Pinto, 1999:94). Sobre várias personalidades e movimentos envolvidos nestes episódios, entre os quais a Frente Integracionista de Continuidade Ocidental (FICO) e o Comité Revolucionário de Moçambique (COREMO) que, junto com outros dissidentes da FRELIMO, formavam o Partido da Convenção Nacional (PCN), veja-se Bernardo (2003: 243-260).

183

Os registos de alguns destes distúrbios são identificados e descritos em Bernardo (2003: 251, 252, 255-256). 184

Com base no testemunho de Van Uden, Coelho afirma que certos comandantes GE fizeram ofertas no sentido de transferir milhares de homens para a Rodésia, proposta que Ian Smith rejeitou por temer o agravamento da posição da Rodésia na cena internacional (2003: 190; 2002: 150). Nos Acordos de Lusaca, o Art. 11.º do Acordo de cessar-fogo expressa que Portugal e Moçambique, "[...] se comprometiam em impedir que os seus nacionais se envolvessem em actividades de colaboração militar com a Rodésia e a África do Sul" (AHDMNE, PAA 1218).

185

Sobre o grau e confiança em relação aos combatentes africanos ver depoimento de Major Ribeiro Cardoso, que se encontrava no aeroporto na altura da sua ocupação e que aguardava uma companhia de comandos. Cardoso confessa que tinha algumas reservas em relação a essa companhia, que não chegou ao Aeroporto, por tratar-se, precisamente, de uma companhia de recrutamento local e por isso, segundo ele, passível de ser aliciada pelos revoltosos como, ao que parece, já acontecera com outra dessas companhias (in Bernardo, 2003: 257).

combatentes e àqueles que teriam colaborado com o antigo regime colonial186, nem foi, tão pouco, a única estratégia utilizada pela FRELIMO, após a independência, para promover o modelo do "homem novo" considerado o único capaz de romper com a ordem colonial herdada. Produto das experiências desenvolvidas nas zonas libertadas durante a guerra de libertação, os campos de reeducação procuraram recriar os seus princípios de organização interna, de trabalho, de treino militar e de educação, entre outros. Localizados no centro e no norte do país, esses campos foram considerados indispensáveis para a construção de uma sociedade também ela nova que sustentaria o projecto nacional e que começaria pela destruição das antigas estruturas e mentalidades coloniais. Poderiam passar por esses campos todos aqueles que a FRELIMO considerasse comprometidos e/ou colaboradores com o regime colonial, traidores ao movimento ou inimigos do povo (Coelho, 2003: 191; Jossias, 2007: 24-33). Após um período de internamento, que significava o seu afastamento da sociedade para evitar que a contaminasse com a sua ideologia colonialista e capitalista, e a sua privação de cidadania plena reservada aos membros da FRELIMO, os condenados saíam 'purificados' e aptos a integrar a nova sociedade. Para além do internamento nestes campos, esses ‘inimigos’ do novo regime eram sujeitos a rituais de exposição pública, tais como aqueles em que pessoas 'purificadas' eram apresentadas em comícios populares simbolizando a sua transformação em "homens novos" (Coelho, 2003:191; Jossias, 2007: 32). Além disso, a FRELIMO estabeleceu "[...] o prazo de 15 de Dezembro de 1978, para que todas as instituições do Estado, as empresas estatais e os bairros de residência, afixassem as fotografias e as biografias dos comprometidos" (Jossias, 2007: 37-38). Durante os primeiros anos de independência, o 'povo' e os grupos de vigilância populares187 eram motivados a detectar os inimigos e os comprometidos com o colonial-fascismo (Jossias, 2007: 33-37).

Foram estas as práticas de punição e de integração a que foram sujeitos, em Moçambique, alguns antigos combatentes e que, tudo indica, tenham perdurado, pelo menos, até 1982, ano da realização da "Reunião dos Comprometidos", presidida pelo

186

A FRELIMO criou campos de trabalho que ficaram conhecidos por campos de reeducação, que foram gerando críticas internacionais e descontentamentos internos. Neles eram internados indivíduos provenientes das mais diversas situações, como por exemplo médicos tradicionais como se pode ler em Paula Meneses (2004: 97, 114) e outras pessoas das mais diversas proveniências como indica, por exemplo, o depoimento de um grupo de portugueses, publicado no semanário Tempo (in Bernardo, 2003: 265-268).

187

Grupos criados a partir da realização do III Congresso da FRELIMO em Fevereiro de 1977, data que coincide com a conversão do movimento em partido político de orientação marxista- leninista (Jossias, 2007: 33-37).

próprio Samora Machel. Símbolo da conversão dos comprometidos em "homens novos" e da sua integração na sociedade moçambicana, nesta reunião, que decorreu durante vários dias de Maio e Junho, participaram suspeitos de serem membros de instituições coloniais tais como da PIDE/DGS, do Partido Acção Nacional Popular, do Movimento Nacional Feminino, entre outros. Segundo Jossias, os militares das FAP não foram chamados a apresentar-se excepto os que pertenceram às forças especiais, designadamente os antigos GE, os GEP e os Comandos que, tal como os outros, depuseram seus testemunhos publicamente. Além dos dados biográficos que os identificavam, dos seus depoimentos constava, também, a história do seu envolvimento no sistema colonial, única via, segundo Samora Machel, de se libertarem do seu passado e de poderem, então, transformar-se em compatriotas (2007: 39-40)188. Entre os rituais que compunham a cerimónia não é de ignorar o que Samora Machel ordenou que se entoasse em coro: não há ANPs, não há PIDEs! /Somos todos moçambicanos! / Não há Comandos, não há GEs! / Somos todos moçambicanos! / Não há Movimento Nacional Feminino! / Não há Madrinhas de Guerra! / Somos todos moçambicanos! (Jossias, 2007: 40-41).

Três anos antes desta reunião dos comprometidos, Samora Machel já ordenara a libertação de antigos militares portugueses. Uma carta endereçada ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, datada de 20 de Novembro de 1979, informava-o que Samora Machel, num discurso proferido em Demba, referiu a libertação de aproximadamente 600 indivíduos dos chamados campos de reeducação existentes naquela província:

[...] após manifestar claro optimismo quanto à recuperação e perspectivas de integração social dos elementos agora libertados (bem como asseverar que "os campos de reeducação continuam enquanto houver marginais"), o Presidente Machel distinguiu entre "ambiciosos político-económicos", que não foram soltos [...] e os "criminosos" objecto da medida de clemência. "Libertámos: assassinos, criminosos, ladrões, alguns PIDES, alguns Comandos, GE, GEP, OPV, Flechas, alguns Sipaios, drogados, marginais, violadores de menores, ambiciosos, [...]"(AHDMNE, PROV. 67, 945).

188

Durante a reunião, os comprometidos encontravam-se na plateia, situados e identificados conforme o grupo ao qual pertenciam. Durante as cerimónias, intercalando os depoimentos dos comprometidos e as interpelações de Samora Machel, davam-se vivas ao Partido e entoavam-se canções revolucionárias. No final da reunião estes comprometidos assinavam uma declaração de compromisso e de lealdade ao Partido e ao povo e saiam compatriotas e membros do Partido ou de outras instituições de suporte da nova sociedade. Por exemplo, as antigas madrinhas de guerra passavam a membros do Movimento Nacional Feminino e os antigos sipaios integravam grupos de vigilância e combate à criminalidade urbana (Jossias, 2007:41).

Este discurso é entendido, pelo seu relator, como uma resposta de Samora Machel às críticas internacionais dirigidas ao internamento nesses campos, já que, segundo acrescenta, esta prática continuava vigente e sem ser precedida por qualquer julgamento (AHDMNE, PROV. 67, 945).

Embora, segundo Coelho, alguns dos presentes na ‘Reunião dos Comprometidos’, tenham sido "[...] presos no local e enviados directamente para campos de reeducação; outros foram mandados em paz, para reassumir a sua vida civil" (2003: 191), esta reunião parece ter constituído um marco a partir do qual foi possível pensar-se na possibilidade do fim da discriminação dos que foram excluídos do projecto nacional.

Assim, em Moçambique, se num primeiro momento as formas de punição e de purificação aplicadas aos antigos combatentes, bem como a muitos outros homens e mulheres não necessariamente associados ao sistema colonial, tenham sido, sem dúvida, medidas excludentes e discriminatórias, poderão igualmente ter contribuído para a sua posterior integração na sociedade moçambicana independente por simbolizarem a ruptura com o sistema colonial e ritualizarem a entrada no novo projecto nacional. Segundo Jossias, a reunião dos comprometidos "[...] representou o culminar do processo de (re)integração e de reconciliação da sociedade moçambicana, entre “compatriotas” e “traidores”, num momento em que era preciso prestar maior atenção aos novos inimigos: a guerra civil [...] e a confrontação com a África do Sul" (Jossias, 2007: 34).

Esta guerra, que em 1976 assolou Moçambique, opondo o Exército Moçambicano à Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), com o apoio da Rodésia e do Exército Sul-africano, também não pode ser ignorada quando se trata a problemática da integração dos antigos combatentes das FAP. Isto porque, por um lado, muitos desses antigos combatentes, receosos pelas retaliações que poderiam sofrer com a independência, poderão ter fugido de Moçambique, os quais, segundo Coelho, terão integrado as forças que, durante dezasseis anos, combateram as novas autoridades moçambicanas (2003: 191). Por outro lado, essa nova guerra também poderá ter interferido nos percursos de vida de antigos combatentes africanos das FAP em Moçambique porque, após a “Reunião dos Comprometidos”, alguns deles nomeadamente, alguns antigos Comandos, terão sido seleccionados para integrarem

forças especiais das Forças Populares de Libertação de Moçambique (FPLM) no contexto de alastramento da guerra civil (Jossias, 2007: 41)189.