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O mundo como ‘resto’ de si mesmo: releituras pós-coloniais

Do colonial, do pós-colonial e dos sujeitos (pós)coloniais

3. O mundo como ‘resto’ de si mesmo: releituras pós-coloniais

Nas últimas décadas vários autores, provenientes de diversas áreas de saber, têm demonstrado que os conhecimentos produzidos pelas Ciências Sociais, em geral, e pela

Sociologia, em particular, têm produzido e reproduzido a dicotomia que Stuart Hall denominou cabalmente The West and The Rest (1992). Dicotomia que representa a forma como o Ocidente, nomeadamente a Europa, tem construído o conhecimento sobre o ‘resto’ do mundo reproduzindo a perspectiva colonial.

A identificação dessa dicotomia e as diversas formas da sua desconstrução constituem um denominador comum dos estudos identificados como pós-coloniais. Começamos por convocar esta dicotomia sobretudo por considerar que a sua crítica constitui um mecanismo fundamental para melhor compreender o passado, particularmente a forma como ao longo da história colonial se tem definido o Outro, e para revelar como este tipo de concepções eurocêntricas do mundo serviram interesses da dominação colonial. Mas não é só uma releitura do passado que a desconstrução desta dicotomia permite. Ela é fundamental para interpretar realidades e sujeitos que, apesar de se terem libertado do colonialismo enquanto sistema de dominação político, carregam em si resquícios da colonização.

Foi Edward Said, com a sua obra Orientalismo publicada em 1978, quem denunciou o etnocentrismo do discurso da modernidade ocidental quanto à forma como a dicotomia que estabelece entre Ocidente/Oriente traz em si a definição de um Oriente como Outro.

A originalidade da obra de Said não reside propriamente nessa denúncia às narrativas logocêntricas do discurso da modernidade, nem tão pouco na recusa de binarismos como o de centro/margem, nós/outros, na medida em que estas já tinham sido reveladas pelos questionamentos ao estruturalismo (Sanches, 2005:11, 13-14) e pela crítica do pós-modernismo (Hall, 2006: 114- 115; Ashcroft et al, 1995: 117). A sua originalidade encontra-se, sobretudo, na crítica que dirige à construção da história moderna a qual, segundo argumenta, partiu da bipolaridade que estabeleceu entre Ocidente e Oriente, e à forma como esta, por sua vez, serviu os objectivos da dominação colonial europeia.

Com base numa análise a uma vasta produção teórica e cultural europeia centrada no Oriente, fundamentalmente de origem inglesa e francesa, Said identificou essa forma de interpretar o mundo que denominou de Orientalismo. Nas palavras do autor, esta percepção significa uma interpretação que, durante séculos, foi considerada “uma fissura intransponível a separar o Oriente e o Ocidente” (2004: 416). A construção dessa fronteira permitiu o estabelecimento da distinção entre o Nós, eurocêntrico e hegemónico, e um Outro, baseada sobretudo em estereótipos e produzida em diversos meios, tais como no seio da ciência e das artes. Esta distinção, segundo Said, não foi

apenas construída para que o Ocidente ‘conhecesse’ o Outro, o Oriente, ela também contribuiu para que o próprio Ocidente se auto-representasse.

Deste modo, a tese central de Said é que este Oriente, inventado pelo Ocidente, corresponde a uma espécie de imagem invertida deste, para sustentar e legitimar uma identidade discriminatória e eurocêntrica. De um lado, um Oriente aberrante, subdesenvolvido e inferior. Do lado oposto, o seu reverso, o Ocidente racional, desenvolvido e superior. De um lado, o Outro temido, perigoso, misterioso, corrupto e sensual, e do outro, o seu oposto, o Ocidente. Neste jogo de contrários, a invenção do Oriente não influenciou apenas o Ocidente, implicou que o próprio Oriente tenha interiorizado estereótipos que sobre ele se foram disseminando. O Orientalismo é “um estilo de pensamento baseado numa diferenciação ontológica e epistemológica entre «o Oriente» e (na maioria dos casos) «o Ocidente»” (Said, 2004: 2-3) e constitui lugares identitários que permitem a definição do nós, europeus, em contraposição a todos aqueles que não o são.

O trabalho de Said não se limita, contudo, a denunciar e a desconstruir a forma como o Orientalismo representa uma capacidade de produzir estereótipos sobre o Outro. O autor acrescenta que se trata, ao mesmo tempo, de “um estilo ocidental para dominar, reestruturar e exercer autoridade sobre o Oriente”(Said, 2004: 3). Estilos de pensamento e de dominação que, na óptica do autor, se formaram fundamentalmente na época do desenvolvimento do confronto europeu contra o Oriente, ao longo da sua expansão militar e económica, mas com repercussões que a ultrapassaram e acabaram por constituir uma dimensão da cultura intelectual e política modernas.

Assim, a construção de um discurso sobre o Oriente, em contraposição a um

Ocidente que se constitui, estaria na origem de um discurso que mediaria ou organizaria a própria relação entre ambos. A diferenciação entre o Ocidente e o Oriente através de “um conjunto congelado e reificado de essências opostas” (Said, 2004: 416), permitiu ao primeiro conhecer-se e elevar-se de modo a legitimar os seus interesses colonialistas. Por isso, esta obra não se limita a tratar os modos de ver e de interpretar o mundo, ela estabelece uma estreita relação entre poder e conhecimento que Said, inclusive, identifica como um dos elementos que sustenta o aparelho colonial.

Esta análise, considerada fundadora do pensamento pós-colonial, não é, contudo, isenta de críticas. Críticas que se aproximam das que são geralmente apontadas ao estruturalismo e pós-estruturalismo onde Said encontrou fontes de inspiração, sobretudo

nos trabalhos de Foucault centrados nas análises do discurso, na construção da episteme ocidental, nos dispositivos de controlo e nos mecanismos de poder ocidentais6.

O principal alvo de críticas é o próprio conceito de Orientalismo, nomeadamente por tornar quase impossível pensar a diferença no seu seio e por não ser capaz de “discriminar os distintos imperialismos” (Hall, 2006: 105). Além disso, o Orientalismo

é também interpretado criticamente por ser concebido como uma incompreensão ontológica do Ocidente em relação ao Oriente7. Esta crítica denuncia o seu determinismo estrutural por criar uma imagem unitária do Oriente ao serviço de um

Ocidente hegemónico e dominador, estabelecendo uma relação precisa entre o Orientalismo acadêmico e a instrumentalidade imperial8.

Apesar destas e de outras críticas, reconhece-se que, nessa obra, Said desenhou uma abordagem anti-eurocêntrica e anti-colonial. Embora esta abordagem já tivesse sido enunciada por pensadores da negritude e anti-coloniais, como por exemplo Fanon, Aimé Césaire ou Amilcar Cabral nas leituras que apresentaram do mundo moderno descritas na óptica do colonizado, é a leitura apresentada por Said que é considerada a principal referência da fundação dos estudos pós-coloniais9. Said representa a primeira fase do pós-colonialismo por ter revelado como o imperialismo/colonialismo correspondem a uma atitude epistemológica e cultural que acompanha e sustenta a dominação de territórios, por desmascarar os propósitos ideológicos do colonialismo e, desta forma, estabelecer uma relação íntima entre o conhecimento e o poder coloniais (Ghandi, 1998: 67).

As leituras inspiradas no Orientalismo, denominadas habitualmente pós-coloniais, são imensas. O carácter seminal desta obra é bem evidente nas deslocações que esta tese empreendeu. Deslocou-se do mundo árabe, esse Oriente desorientalizado por Said, para outras geografias10, e dos estudos literários para diversas áreas disciplinares11.

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Sobre estes conceitos, veja-se Foucault (1997; 2007). 7

Em trabalhos posteriores, tais como Cultura e Imperialismo, Said (1995) procura responder a algumas críticas dirigidas à sua tese e propõe uma interpretação mais flexível dos fenómenos tratados em Orientalismo.

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Análises críticas pormenorizadas ao Orientalismo de Said podem encontrar-se em Clifford (1988) e MacKenzie (1995).

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Embora para alguns autores seja necessário reconhecer referências anteriores como as de Foucault ou Derrida, ligadas ao pós-estruturalismo e ao pós-modernismo. Ver os argumentos apresentados por Leela Ghandi (1998: 25-32; 64-73)

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Da Índia emergiram vários trabalhos inspirados nesta tese. Por exemplo Imagining India de Ronald Inden (1990), que procurou desconstruir discursos essencialistas e eurocêntricos sobre a mesma, ou a obra de Dilip K. Chakrabarti, Colonial Indology: Sociopolitics of the Ancient Indian Past (1997), centrado na concepção racista da Europa sobre o passadoindiano, entre outros.

Por isso concordamos com Manuela Ribeiro Sanches quando observa que falar de um ponto de vista pós-colonial partindo da mudança de perspectiva proposta por Said corresponde, sobretudo, a sublinhar “um outro modo de ler o passado e o presente” (2005: 8).

É sobretudo desde a década de 80 do século XX que o pós-colonialismo, acompanhado por outras perspectivas críticas como os estudos culturais, os estudos de género, os gay e queer studies, entre outros, denunciam como saberes outros foram excluídos, marginalizados e silenciados do sistema de conhecimento canónico (Ghandi, 1998: 42). Estas perspectivas críticas manifestam, antes de mais, uma necessidade de revelar os conhecimentos subalternos, conhecimentos desqualificados face ao conhecimento ocidental hegemónico.

Assim, o pós-colonialismo, como já se tornou claro no Orientalismo de Said, dirige a sua crítica à hegemonia dos conhecimentos europeus na tentativa de situar o valor epistemológico dos conhecimentos não-europeus. No fundo visa ‘provincializar’ o conhecimento europeu, como realçou Chakrabarty (2000), conhecimento que o nacionalismo e o imperialismo modernos tornaram violentamente universais. Partindo de abordagens como as de Foucault, Deleuze e Guattari, Heidegger entre outros, os estudos pós-coloniais procuram denunciar os interesses que sustêm o conhecimento e, ao mesmo tempo, revelar o carácter emancipatório de conhecimentos subalternos. Em termos gerais, para as perspectivas pós-coloniais o poder ocidental é um sintoma da epistemologia e da pedagogia ocidentais, tal como o anunciara Said (Ghandi, 1998: 44-55).

Desta forma, o poder ocidental, como sintoma dessa epistemologia e pedagogia, é, para a perspectiva pós-colonial, indissociável da constituição das Ciências Sociais e Humanas na medida em que elas foram alimentando o discurso dicotómico com base no qual a hegemonia ocidental foi construindo a sua cartografia do mundo, caracterizando e avaliando sociedades, com base em parâmetros ocidentais universalizantes que permitiram encarar a diferença como ausência ou incompletude, hierarquizar e explorar o Outro racializado e justificar a necessidade da intervenção colonial para oferecer a esses Outros o que, nessa óptica, não lhes era possível alcançar. Assim, embora não se

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Entre as diversas áreas disciplinares inspiradas pelo Orientalismo destacam-se os estudos culturais, por exemplo com o texto The West and the Rest (1992) de Stuart Hall e a história como o Provicializing Europe: Postcolonial Thought and Historical Difference de Dipesh Chakrabarty (2000), ambos empenhados em desconstruir dicotomias que consideram inerentes à construção da história hegemónica da modernidade.

trate de atribuir às Ciências Sociais e Humanas a responsabilidade pelo colonialismo, o que as perspectivas pós-coloniais denunciam é como a formação dessas áreas de saber são sintomáticas da perspectiva colonial, na medida em que nutriram e legitimaram o modelo de representação sobre o qual se construíram as relações entre o ‘Ocidente’ e o ‘Resto’ do mundo12

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Seguindo esta linha de análise, e em termos gerais, as críticas dos estudos pós-coloniais tendem, ainda, a contrapor-se a qualquer meta-narrativa, muito particularmente às narrativas da modernidade, sobretudo por considerarem que foram construídas, reproduziram e legitimaram essencialismos.

A crítica às meta-narrativas modernas sofreu um impulso muito particular a partir da Índia por um conjunto de historiadores do Grupo dos Estudos Subalternos. Recorrendo predominantemente a narrativas daqueles que foram ignorados pela História clássica, em particular daqueles que tiveram um papel significativo na resistência colonial, este grupo procurou, sobretudo, contestar a historiografia nacionalista (Sanches, 2005: 17; Ghandi, 1998: 23-25).

Reinterpretar a História moderna torna-se, então, um dos propósitos centrais da abordagem pós-colonial, não apenas nas suas tentativas de inscrever o colonizado na modernidade, mas fazendo-o de modo a que o Outro deixe de ser o Outro em relação ao Ocidente, o Outro “ainda não civilizado” ou seja um Outro incompleto, atrasado, subdesenvolvido ou primitivo (Chakrabarty, 2000: 8). Isso significa opor-se à ideia do Europeu como sujeito universal, ideia que compõe tanto as narrativas orientalistas, quanto a historiografia nacionalista. Perante estes pressupostos, os estudos pós-coloniais denunciam qualquer narrativa que implique a projecção de si sobre o Outro, e tendem a demonstrar quão insuficientes se revelam as epistemologias hegemónicas para pensar e analisar construções sociais, culturais e políticas articuladas noutros espaços-tempo.

Neste esforço de desconstrução da história dominante da modernidade é de realçar o ponto de vista de Dipesh Chakrabarty que procura demonstrar como as relações simbólicas e materiais construídas pelo Ocidente, na sua relação discursiva com os Outros, são produtos imaginados que não correspondem a realidades concretas (2000).

Chakrabarty defende que a Europa constitui o sujeito teórico soberano de todas as histórias, e que as histórias dos Outros, dos não-ocidentais, além de serem produtos da

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imaginação eurocêntrica, são histórias construídas com base nos referentes europeus, tornando-se, assim, meras derivações ou variações daquela narrativa histórica-mestra (2000).

Contudo, o projecto de Chakrabarty de Provincializar a Europa não consiste em rejeitar a modernidade, o racionalismo ou a ciência, nem em defender o relativismo cultural ou o retorno a um nativismo. Trata-se, essencialmente, de mostrar como a condição de lugar primeiro da modernidade atribuído à Europa resulta da dialéctica entre os impérios ocidentais e a ilustração europeia, e da combinação de energias e de recursos oriundos dos projectos ocidentais e do mundo não ocidental. Provincializar a Europa significa, também, denunciar ambivalências e contradições da história da modernidade, mas implica, acima de tudo, deslocar a Europa do centro da imaginação epistémica, política e histórica revelando a existência de imaginações heterogéneas do mundo (2000).

Esta forma de repensar a História, que aponta essencialmente para a existência de diversas histórias e para as interdependências entre elas, tem sido desenvolvida por outros autores, nomeadamente no âmbito da Sociologia, como é o caso da socióloga indiana Shalini Randeria. Esta defende que as sociedades contemporâneas e a modernidade são fruto de ‘histórias e de modernidades entrelaçadas’. Além de revelar este impacto mútuo entre civilizações, sem contudo ignorar as assimetrias de poder nem as diferenças que caracterizam as relações entre elas, a autora analisa, também, como elas se dividem e se distinguem pela forma como são representadas e apresentadas (Costa, 2006: 121; Werner e Zimmermann, 2003).

À luz do que foi dito reconhece-se que, desde o Orientalismo, os estudos pós-coloniais têm privilegiado a crítica às narrativas ocidentais, revelando as suas insuficiências, as suas incompletudes, os estereótipos em que se basearam e que reproduziram, os essencialismos que construíram, as subjectividades que ignoraram ou que converteram numa variação ou derivação de si. Nessa crítica, a identificação e a desconstrução de oposições binárias, tais como Oriente/Ocidente, colonizado/colonizador, atacadas por serem consideradas formas colonialistas de interpretar o mundo, têm constituído um dos terrenos mais férteis do pensamento pós-colonial nas suas tentativas de descolonizar o conhecimento.