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Percurso e reflexões metodológicos

3. Relatos de vida

A importância atribuída aos relatos biográficos nesta pesquisa decorre do seu próprio objecto de estudo. Saber como os próprios antigos combatentes interpretam os seus

percursos de vida obrigava a uma recolha de dados centrada privilegiadamente nas histórias de vida dos sujeitos. Através da aplicação de entrevistas narrativas foi isso que procurámos, ou seja, que o sujeito oferecesse o relato da sua vida.

O lugar de destaque que reservamos para reflectir sobre este método prende-se ao facto de ser absolutamente necessário entender que tipo de dados nos oferecem essas narrativas.

Embora as perspectivas divirjam quanto à utilização e utilidade metodológica e epistemológica dos relatos de vida, é consensual considerar-se que ao contar-se, o sujeito atribui sentido à sua vida. E, também é frequente reconhecer-se que é através da organização da narrativa, ou seja do "modo de (se) contar"19 (Conde,1994) que o sujeito procura encontrar esse sentido. Segundo Claude Dubar, é na trama da história de si que o sujeito selecciona e encadeia episódios e personagens da vida, e estabelece a influência que cada um assumirá ao longo da narrativa. Para o mesmo autor, dar sentido à vida através da narrativa assume, ainda, uma dupla acepção: aponta uma direcção e atribui uma significação à história de modo a que esta se torne compreensível para si e para o outro (2000:225). Este é um dos principais motivos que nos levou a recolher relatos de vida, porque ao atribuir sentido à sua história, acreditamos que o sujeito procura tornar compreensíveis, para si e para os outros, as relações entre os diversos acontecimentos e experiências, e entre os vários lugares e momentos que compõem a sua narrativa.

Embora essas narrativas possam ser apresentadas, por vezes, de modo acidentado, fragmentado20 e obedecer a diferentes esquemas narrativos21 conforme a conjuntura em que se oferecem, os resultados dos vários trabalhos de Michael Pollak indicam que qualquer narrativa biográfica apresenta "[...] um núcleo resistente, um fio condutor" (1989: 13), que, no seio da sua tessitura particular, concede algum tipo de inteligibilidade e de credibilidade à história contada22. É isto que nos interessa muito particularmente nas histórias de vida, ou seja essa possibilidade de encontrar uma vida

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Ou self-telling, conceito explorado por Bruner no seu ensaio Life as Narrative (2004). 20

Um dos exemplos que Jean-Claude Kaufmann utiliza para ilustrar esse fenómeno é o da forma como se conta uma história de vida com base na construção e leituras de um álbum de fotografias (2004: 135).

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Segundo Idalina Conde as narrativas biográficas podem utilizar o “[…] modelo causo-linear e fechado do conto, a propostas abertas, bifurcadas, seleccionadamente circulares, fragmentárias”, entre outras (1994: 46).

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No seu texto Memória e Identidade Social observa também que nos relatos de vida quando a ordem cronológica não está a ser seguida pelo narrador, acontece que os entrevistados voltam várias vezes aos mesmos acontecimentos ou períodos de vida como se neles houvesse sempre algo de invariante (1992: 201).

contada que reúna e concilie etapas e elementos dispersos encadeando-os num esquema conjunto que procura produzir uma expressão coerente e total de uma trajectória de vida em curso.

Deste modo, os relatos de vida, enquanto interpretações subjectivas de si, dão-nos acesso a uma parte da identidade dos sujeitos, a qual, segundo Paul Ricoeur, corresponde à sua identidade narrativa (1991: 73). Ricoeur defende que é precisamente na compreensão da identidade narrativa que se encontra a solução para desvendar a relação entre continuidade e permanência da identidade ao longo do tempo, face às mudanças às quais a vida se sujeita no seu decorrer. Porque, segundo o mesmo autor, é na narrativa que o sujeito constrói o carácter durável de si através da produção de uma espécie de identidade dinâmica, que concilia identidade e diversidade. A trama do relato, ou intrigue, desempenha um lugar central nessa construção: é ela que fornece a mediação entre permanência e mudanças no que respeita a identidade (1991:77). Ou seja a trama cria uma dialéctica entre a mesmidade - continuidade de si-mesmo através das diferentes etapas da vida -, e a ipseidade - unidade de si através das diferentes esferas da existência (Ricoeur, 1990:137-150). A coerência fundadora do sujeito situa-se no âmbito desta dimensão temporal e encontra-situa-se na ligação e inteligibilidade que estabelece entre a sequência de acontecimentos que compõem uma narrativa biográfica. E é na relação entre o si e o si-mesmo23, as duas componentes que Ricoeur atribui à identidade pessoal, que, num dado momento, o sujeito liga as diversas identificações de si, bem como os momentos sucessivos da sua existência. Esta dupla transacção pode efectuar-se de várias formas, originando, assim, várias configurações identitárias.

Reflectindo, também, sobre a problemática da continuidade do sujeito, Anthony Giddens (1997) sugere que a interpretação reflexiva dessa continuidade biográfica, operada pelo sujeito, corresponde à sua auto-identidade24. Trata-se, nesta óptica, de um

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Ricoeur discute a identidade pessoal, à qual atribui essas duas instâncias – o si e o si-mesmo - através do confronto que estabelece entre mesmidade e ipseidade. A identidade como mesmidade é o idem, conceito relacional que só pode ser avaliado no e em relação ao tempo. A identidade como ipseidade é individual e única. Considera que a permanência no tempo coloca o problema da ipseidade e da mesmidade. Observa que as mudanças e o tempo não desfazem o ipse do sujeito. O que permanece, contudo, são fragmentos de relações entre ocorrências a respeito de um mesmo sujeito. Tais fragmentos são o si, isto é, o ipse, como um outro. O si e a sua história de vida são desiguais mas ao mesmo tempo revelam cumplicidade e implicabilidade, já que ambos pressupõem alteridade não podendo contudo ser pensados separadamente, tanto que o si pode ser considerado o mesmo, sendo outro. No âmbito desta relação as identidades narrativas, são, então, desdobramentos de um "eu" que ao voltar-se para si-mesmo constrói a sua história de vida como um outro (Ricoeur,1990: 140-150;1991).

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Observe-se que Giddens aborda este conceito no âmbito da leitura que apresenta do impacto produzido pelas transformações da modernidade na experiência individual (1997).

projecto identitário organizado em função da forma como o sujeito se define, contínua e reflexivamente, através de uma conjugação que estabelece entre o exame do seu passado, as circunstâncias presentes e uma antecipação do seu futuro25.

Esta qualidade dinâmica atribuída à biografia auto-reflexiva é, para Giddens, responsável pelo seu carácter, simultânea e paradoxalmente, sólido e frágil: sólido porque assegura o trânsito entre as mais diversas situações sociais que frequentemente envolvem tensões e contradições, e porque confere segurança ontológica ao indivíduo perante contextos de risco e sensações de insegurança que caracterizam o mundo actual; frágil por tratar-se sempre de uma história narrada entre muitas outras histórias possíveis, as quais constituiriam, por seu lado, outras tantas identidades (1997).

Para Pollak, a coerência estabelecida através de uma lógica entre acontecimentos-chave e a continuidade resultante de uma ordenação cronológica, produzidas nos relatos biográficos parecem ser admitidos pelos indivíduos como sinais de um sentido de identidade assegurada26 (1985: 37). Porque ao ordenar a história da sua vida, o indivíduo baliza uma existência e por isso, para Pollak, essas narrativas "[...] devem ser consideradas como instrumentos de reconstrução da identidade" através dos quais "[...] o indivíduo tende a definir o seu lugar social e as suas relações com os outros"(1989:13).

Admite-se, de acordo com estas perspectivas, que cada sujeito possa assumir várias versões da sua vida e, corolariamente, revelar diversas identidades narrativas. O debate contemporâneo, sobre o conceito de identidade, que explorámos no capítulo anterior, tem insistido na análise deste problema, que, opondo-se a representações mais fixistas e substancialistas da identidade, tem realçado o seu carácter mais dinâmico, múltiplo e aberto. Torna-se necessário realçar que, tal como hoje se entende que a identidade pessoal é variável e plural, também a narrativa de uma vida, não é considerada fixa. Por um lado, desde que a situação do sujeito mude, desde que o seu lugar de enunciação se altere, também a forma de dizer-se pode modificar-se e, por isso, as histórias de uma vida são construções simultaneamente temporais e temporárias de si. Por outro lado,

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A propósito da autobiografia considera que se trata de um meio de correcção do passado realizado pelo agente. Assim, é que planeia e, de certa forma, projecta o futuro. O exercício de escrever e narrar a sua história faz com que reconstrua, reveja e refaça a sua história como desejava que ela fosse introduzindo-lhe novos diálogos, sentimentos e atitudes (Giddens, 1997).

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Pollak não atribui essa continuidade e coerência apenas à narrativa biográfica, mas também à memória individual e colectiva (1985).

sabendo que é possível compor várias tramas, ou intrigues, acerca dos mesmos acontecimentos, então, também é possível construir tramas diferentes e mesmo opostas sobre a sua própria vida. Reconhece-se, mais uma vez, a dimensão subjectiva e plural da narrativa de uma vida e, ao mesmo tempo, assume-se o seu carácter dinâmico, pois esta não cessa de reconfigurar-se na relação indissociável que estabelece entre experiências vividas e a sua reelaboração. Essa reconfiguração é, por sua vez, um processo sempre aberto e inacabado que Dubar descreve como "uma subjectividade sempre à procura dela própria, enigma sempre a decifrar" (2000: 211). Michael Pollak também reconhece este carácter variável das apresentações do sujeito conforme os seus contextos e motivos mobilizadores, mas acrescenta que, as diferentes e múltiplas versões de si não são ilimitadas porque a identidade expressa-se através de um conjunto de acontecimentos-chave que a compõem em torno de um núcleo duro organizado narrativamente (1986: 52).

Por isso, e de acordo com estas abordagens, admitimos que o sujeito possa criar diversas versões discursivas de si, mas ao mesmo tempo não partilhamos da opinião segundo a qual os relatos de vida remetam exclusivamente para o domínio da pura “ilusão biográfica”, como as classificou Bourdieu (1986). Por um lado, e tal como sugere Jean-Claude Kaufmann, considera-se que "inventar-se a si mesmo", o sujeito "não se inventa; os mecanismos da criação identitária não têm nada de aleatório. Se bem que os instrumentos da invenção (imagens e emoções) sejam dos mais voláteis, eles inscrevem-se em processos socialmente definidos e precisos. O ego não se sonha de qualquer maneira" (2004: 253). Por outro lado, e recorrendo novamente a Ricoeur, considera-se que a narrativa de si-mesmo não é uma pura invenção do sujeito, mas sim uma forma particular de transpor, em relato, a realidade através de um ordenamento de acontecimentos que permite torná-los legíveis e dar sentido à acção (1991).

Por isso, acreditamos que a organização narrativa de uma vida não independe, a não ser analiticamente, da trajectória objectiva da vida dos sujeitos. Reflectir sobre uma vida significa reexaminá-la. Nesse exercício, o relato de uma vida denunciará posicionamentos adoptados pelo sujeito face aos mundos vividos. Por outro lado, por não poder ser imune aos múltiplos contextos sociais, culturais e institucionais atravessados pelos sujeitos ao longo da sua vida, o relato biográfico não pode deixar, também, de algum modo, de os representar, ao interpretá-los. E é no âmbito destas potencialidades que as narrativas biográficas interessam a esta pesquisa: na medida em que através delas é possível aceder aos significados que os sujeitos - histórica, social e

culturalmente situados -, atribuem aos seus percursos de vida tecidos, ao longo do tempo, em múltiplos contextos.

É a possibilidade de acedermos a estas dimensões histórica, social e cultural, que, também, justifica o facto de termos privilegiado os relatos de vida nesta pesquisa. O trabalho contemporâneo centrado na subjectividade tem insistido que qualquer relato de si é sempre uma construção culturalmente ancorada e histórica e localmente situada. As narrativas de si, como construções temporais, assentam em culturas institucionais locais e nas suas práticas interpretativas, e é na interacção entre condições materiais, sociais, discursivas e narrativas que o self e as suas múltiplas identidades se formam (Denzin, 2009). Por serem desenhadas por imperativos sociais, culturais e talvez inconscientes que ao mesmo tempo revelam, as narrativas em geral, e as biográficas em particular, desafiam o dualismo estabelecido, com frequência, entre indivíduo e sociedade (Andrews e Sclater et al, 2009: 8).

Neste sentido, estes espaços de interpretação, não são meras recuperações de dados biográficos de carácter individualista e psicológico, mas antes, reconstruções reflexivas da trajectória histórica, social e cultural dos sujeitos e dos grupos que representam. Uma narrativa biográfica não fala só por si e, por isso, não se limita ao âmbito da subjectividade individual. As narrativas biográficas são experiências sociais de uma subjectividade sociocentrada, um discurso pessoal que se confunde com a reflexividade, memória e a discursividade sociais (Conde, 1994: 48). Segundo Jerome Bruner, as narrativas biográficas são de tal forma susceptíveis a convenções culturais, a influências interpessoais e até mesmo a modelos linguísticos que "[...] reflectem teorias prévias acerca de «vidas possíveis» que são parte de uma cultura"(2004: 694)27.

Franco Ferrarotti é um dos principais defensores desse carácter social das narrativas biográficas. Ao propor que é possível ler a sociedade através de uma biografia28, Ferrarotti argumenta que os documentos biográficos não são independentes das relações materiais extra-subjectivas, nem do conjunto das relações estruturais, formalizadas em instituições ou simplesmente expressas em comportamentos e costumes. Para este autor,

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Embora não se partilhe da perspectiva deste autor segundo a qual "a narrativa imita a vida, [e] a vida imita a narrativa", já que não se acredita, ao contrário de Bruner, que a narrativa e a vida façam "[...] parte do mesmo tipo de construção da imaginação humana"(2004: 692), trata-se, contudo, de uma proposta particularmente útil no que diz respeito à dimensão cultural que atribui às narrativas biográficas.

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Embora defenda "a autonomia do método biográfico" este autor é apologista da construção de histórias de vida centradas em grupos primários. Consulte-se Ferrarotti (1991).

um sistema social revela-se em cada um dos actos do indivíduo, e a história social daquele encontra-se, toda ela, na história individual de qualquer sujeito (Ferrarotti, 1991; Iniesta e Feixa, 2006: 11).

Estas sugestões teóricas indicam, então, que o modo de se construir na narrativa não independe dos contextos materiais, sociais e culturais que os sujeitos percorrem ao longo da sua vida. Assim, as narrativas de vida são contadas através de modelos culturais que estão à disposição dos sujeitos, ao mesmo tempo que revelam as estruturas sociais que as suas vidas percorreram. Deste modo, as narrativas biográficas são lugares de intersecção entre sujeito e sociedade.

Mas, ao mesmo tempo, pensa-se que estas narrativas são também lugares de racionalização que conferem sentido ao vivido e, por isso, não podem ser concebidas como meras construções passivas e neutras, que se limitam a reproduzir os modelos que representam e nos quais ancoram. Através das narrativas biográficas, os sujeitos também denunciam posicionamentos, reivindicações ou resistências face às múltiplas circunstâncias e à diversidade de contextos constrangedores que matizam as suas trajectórias. É, pelo menos, para este sentido que a problematização do agenciamento do sujeito tem apontado ao interpelar teorias que tendem a considerar o sujeito como um mero repositório passivo e reprodutor das ideologias dominantes. A perspectiva de Judith Butler, que apresentámos no capítulo anterior, situa-se neste debate ao propor o conceito de subjectividade performativa que revela as possibilidades de reconfigurações identitárias (2002). Partilha-se, então, das perspectivas segundo as quais as narrativas biográficas são lugares de produção de sentido que permitem ao sujeito situar-se perante os mundos que constrói na narrativa. Recorrendo à óptica de Bruner e Weisser, defende-se que, contar a sua vida é, então, uma actividade de posicionamento, de auto-localização que permite ao sujeito racionalizar e avaliar o passado e projectá-lo até um presente (1995). Ao examinar as experiências contadas, o relato de vida posiciona um sujeito situado. Posiciona-o, por um lado, retrospectivamente, face a experiências que viveu, a papéis que ocupou, a contextos que atravessou e, por outro lado, prospectivamente, face a um futuro que projecta em função do passado narrado (Bruner e Weisser, 1995).

Importa ainda observar que a narrativa biográfica relata fundamentalmente experiências. Experiências que são entendidas, pelos sujeitos que narram a sua história, como evidências a partir das quais legitimam a sua narrativa biográfica na medida em que remetem para factos e acontecimentos passíveis de comprovação e que, por isso, lhe

conferem credibilidade e autenticidade (Smith e Watson, 2001: 27-28; Scott, 1991; 1992). Contudo, por descreverem experiências subjectiva, discursiva e materialmente construídas, e por serem reconstruções retrospectivas sobre as experiências passadas, as narrativas biográficas são um exercício interpretativo sobre as mesmas. Ou seja, o que se transmite na narrativa biográfica serão significados que se atribuem a cada uma das experiências contadas. Sendo assim, pensa-se que, através deste processo, o sujeito denuncia posicionamentos, ao mesmo tempo que revela condicionalismos que interferem na sua narrativa de vida.

Com base na ponderação das perspectivas apresentadas, neste trabalho os relatos biográficos não são interpretados como descrições do que acontece em lugares e tempos determinados, nem como meras manifestações e reproduções de sistemas e estruturas sociais. Admite-se, isso sim, que, por serem expressões privilegiadas do encontro entre sociedade, indivíduo e historicidade, as narrativas biográficas permitem compreender como estas esferas se constituem mutuamente nos relatos do vivido. Por um lado, porque se considera que estas narrativas são discursos que testemunham e revelam condicionalismos sociais e culturais que influenciam os sujeitos ao longo das suas vidas. Por outro lado, porque se assume que estes mesmos discursos denunciam agenciamentos e que, por isso, não podem deixar de sugerir formas particulares de compreender as realidades sociais em relação às quais os sujeitos se posicionam. Trata-se, portanto, de reconhecer que estas narrativas revelam, simultaneamente, uma interdependência entre a subjectividade individual e as realidades objectivas que cada sujeito percorre e reconfigura na história que conta da sua vida. Isto significa, então, considerar que as narrativas biográficas são lugares de interpretação e de racionalização que conferem significados às experiências e aos mundos vividos e, ao mesmo tempo, defender que estes discursos não são construções passivas, nem neutras. Pelo contrário, são discursos constituídos por avaliações de experiências, de acontecimentos e de contextos, por interpretações de si e dos outros, e por diálogos entre narrativas que agenciam o narrador na história que conta da sua vida. Agenciamento que manifesta a possibilidade de expressar, intencionalmente, através da narrativa biográfica, uma certa compreensão das experiências sociais e pessoais vividas ,e dos mundos percorridos pelo sujeito.

Por serem lugares de interpretação de si é que as narrativas biográficas permitem, também, o acesso à identidade do sujeito. Mas é da sua identidade narrativa que se trata e esta só permite compreender como, no relato do vivido, o sujeito produz, num

determinado momento e em determinadas circunstâncias, uma maneira temporária de definir-se. Contudo, e seguindo a sugestão de Pina Cabral admite-se, também, que a narrativa biográfica, como forma de objectivação29 da identidade, é "[...] um elemento de continuidade, e por isso tende a ser menos evanescente [...] do que as identificações e diferenciações que deram azo ao sentido de identidade que as criou" (2003: 8). Desta forma, através do relato de si, o sujeito constrói a sua vida como um todo, ou seja, como uma interpretação de uma sequência de experiências e de acontecimentos que selecciona do seu percurso e que lhe permitem conferir um sentido ao presente, ao apresentá-lo como resultado de um conjunto de relações que envolvem o passado vivido e o futuro antecipado.

Em suma, as narrativas biográficas são entendidas, nesta pesquisa, como territórios de negociação que permitem ao sujeito dialogar com os condicionalismos, com os outros e com as outras narrativas que compõem o seu percurso, e que o sujeito revisita quando conta a história da sua vida.