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Antropofagias do pensamento foucaultiano nos anos

Se a escrita da história demandaria um olhar constante para os corpos, os usos do pensamento foucaultiano, na década de 1990, indicavam a capacidade de “[...] utilizá-lo, deformá-lo,

fazê-lo ranger, gritar” (FOUCAULT, 1979, p. 143). Foi pelo entre- laçamento do corpo em múltiplos temas que a influência de Foucault seria utilizada pelos historiadores brasileiros para a desmontagem de muitas das “verdades nacionais”. Não se tratou de torná-lo um “gurú”, mas sim de promover um uso antropofágico do seu pensamento, devorando-o e promovendo outros usos e desdobramentos (ROLNIK, 1989, p. 67).

Afirmando o caráter temporal e inventivo que atra- vessou o nosso corpo, nosso contexto e história, Durval Muniz de Albuquerque Júnior e Denize Bernuzzi de Sant’Anna, ao suscitarem problemas específicos, consolidaram, a partir da década de 1990, a influência do pensamento foucaultiano na historiografia brasileira.

Com relação a Durval Muniz, os apontamentos iniciais dessas percepções podem ser analisados desde A invenção do

Nordeste e outras artes (1999), obra resultante de sua tese de

doutorado, defendida, em 1994, na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Nessa produção, Albuquerque Júnior (2009) voltou-se para a primeira metade do século XX, proble- matizando a emergência do Nordeste a partir de uma série de enunciados denominados como regionalismo.

Albuquerque Júnior (2009) chamou atenção para produção dos estereótipos e preconceitos resultantes de rela- ções de poderes e saberes que eram subjetivados nos corpos. Nos discursos da seca, da aversão pela modernidade, nos traços da geografia, do clima e da vegetação, o corpo afirmado a partir da região seria subjetivado nas formas de se vestir e de se alimentar, nas expressões artísticas como a música, a pintura e o cinema. O regionalismo seria pensado como um mecanismo de poder que conformaria os corpos e apagaria toda a sua multiplicidade em detrimento de uma imagem única, a do nordestino.

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Dos desdobramentos resultantes dessa obra, o corpo ganharia importantes dimensões em diferentes pesquisas reali- zadas pelo autor, ressaltarei aqui alguns de seus trabalhos sobre o gênero masculino. O primeiro, Nordestino: uma invenção do

falo (2003), fez uso do método arqueológico foucaultiano, para

analisar, em literaturas regionais e textos jornalísticos, as transformações que ocorreram entre o final do século XIX e a década de 1940. Para o historiador, a construção do Nordeste esteve atrelada com a invenção do macho nordestino, sinônimo da virilidade, rispidez e masculinidade.

Com a ascensão da República, o processo de moder- nização do país, o crescimento urbano e as “novas modas” eram vistos como sinal de uma feminização da sociedade tradicional. Esses aspectos estiveram diretamente articulados a certas transformações ocorridas nos corpos, fossem elas as barbas raspadas entre os homens ou os novos penteados femininos. Segundo a sociedade tradicional, tais caracterís- ticas indicavam que “os homens duros de antigamente agora amoleciam, perdiam a virilidade, a potência” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2003, p. 43).

O “homem nordestino” seria elaborado por saberes que relacionavam aspectos da aparência corporal com os compor- tamentos e a cultura. Essas literaturas o inventaram como forte, rústico, viril e corajoso; o homem nesta região seria o “cabra macho”, estaria afastado da modernidade e sua produção de sujeitos delicados, histéricos e artificiais (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2003, p. 43).

Foi problematizando o corpo que este historiador colocou em questão a máquina de fazer machos, o corpo masculino que não deve apresentar nenhum traço definido enquanto femi- nino, pelo contrário, o que deve sobressair é a sua capacidade de

violência, sua “fúria inata”. Como afirmou Albuquerque Júnior, este corpo deve ser:

Um corpo retesado, em permanente estado de tensão, corpo sempre com músculos definidos e em alerta, nenhum relaxamento, nenhuma lassidão. Nenhuma delicadeza, corpo rústico, rude, quase em estado de natureza, recendendo a suor e testosterona, viril, másculo. Corpo onde se ressaltem pelos, músculos, que transpareçam força e potência (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2010).

O corpo másculo deveria manter-se tensionado e ereto, nele não deveria haver brechas para questionamento. Subjetivando essas posturas, o gênero seria incorporado como uma verdade sobre si. É nesse corpo que a vida se desenvolveria, que os gostos seriam impostos, que a subjetividade seria orde- nada e conformada.

Assim como Albuquerque Júnior, a obra da historiadora Denise Bernuzzi de Sant’Anna intitulada História da beleza

no Brasil (2014) resultou de sua tese de doutorado defendida

na Universidade de Paris VII, em 1994. Entre suas diferentes pesquisas sobre a história do corpo, destacamos que Sant’Anna buscou compreender, neste trabalho, a beleza enquanto objeto de poder, perscrutando diferentes modos de produzir corpos, padrões e estéticas. Nesse sentido, o corpo belo, tal qual o corpo considerado feio, despertavam sensações, sentimentos e posições específicas (SANT’ANNA, 2014).

Ao compreender que as estéticas apresentam suas parti- cularidades, a historiadora apontou para as transformações ocorridas no Brasil, desde o início do Período Republicano e seus impactos atuais. Salientando as intervenções realizadas em

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espaços específicos do corpo, Sant’Anna (2014, p. 14) destacou que diferente da virada do século, no qual “o embelezamento tendia a se limitar à indumentária, ao uso e alguns produtos para o rosto e cabelos”, a partir da década de 1930 o ideário de beleza passou a atravessar o corpo em todas as suas fronteiras.

Implicando em novos comércios, estilos e padrões, os cortes das roupas deveriam favorecer as formas corporais idealizadas, as máscaras faciais, o disfarce das imperfeições do corpo. A idade, sinônimo do feio por estar atrelada a velhice, passou a ser escondida (SANT’ANNA, 2014, p. 45). Superfície demarcada por intervenções e mecanismos, a história da beleza no Brasil seria entrelaçada a partir de corpos que objetivavam as cinturas finas, sofriam em espartilhos e cintos, eram fascinados por músculos e cosméticos.

Incluindo Michel Foucault entre os historiadores do corpo como Georges Vigarello e Alain Corbin, Sant’Anna chamou atenção para a necessidade de questionar os “objetos naturais”. Para a historiadora, não se trata de descrever as transformações ocorridas com o corpo, no decorrer dos séculos, mas sim de elaborar questões, de investigar como as coisas tornaram-se naturalizadas, subjetivadas, acopladas nos corpos e suas práticas (SANT’ANNA, 1997, p. 275-284).

Em alguns dos trabalhos de Durval Muniz de Albuquerque Júnior e de Denise Bernuzzi de Sant’Anna, podemos perceber a influência do pensamento foucaultiano em problemas especí- ficos por eles levantados. Ao apresentarem mecanismos como o gênero, o regionalismo ou a beleza, esses autores enfatizaram o caráter histórico da produção e da subjetivação dos corpos.

Ressaltando a dimensão temporal e conflituosa que nos compôs, essas obras operaram não somente uma desmon- tagem, mas tornaram possível compreender que os sujeitos não estariam predeterminados. Neste sentido, as regras não

estariam eternamente estabelecidas, os corpos, os espaços onde estes habitam e seus modos de constituir a vida não estariam dados, mas sim apresentariam múltiplas possibilidades.