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Foucault e as leituras do corpo na historiografia brasileira dos anos

Durante a sua trajetória intelectual, Michel Foucault (2003) não se manteve isolado das perspectivas que o conhe- cimento histórico tomava na França daquele período. Desde a década de 1960, os historiadores dos Annales citados nos nomes de Marc Bloch, Fernand Braudel e Emmanuel Le Roy Ladurie, representavam, para o filósofo, um rompimento da negação histórica de temas como a sexualidade, o corpo, o espaço, as doenças ou as instituições.

Mesmo tendo estado por cinco vezes no Brasil, entre 1965 e 1976, período no qual se encontrava no auge de sua produção, a repercussão de suas obras entre os historiadores ocorreu com maior intensidade no decorrer de 1980. A partir da obra que descreveu os corpos feridos, despedaçados nos suplícios, disciplinados e docilizados pelo poder, Michel Foucault adentrou na historiografia brasileira. Como afirma Margareth Rago (1995, p. 67):

“Foi assim que, partindo de uma irrecusável apreciação de Vigiar e punir, trabalho histórico por excelência, publicado em 1976, caminhamos, nós historiadores, em busca da produção anterior de Foucault [...]”.

Ao mergulharem nas diferentes produções do filósofo francês, teria sido possível para aqueles intelectuais percor- rerem os textos de Foucault sem pensarem em uma história do corpo? A resposta negativa surge diante do atravessamento foucaultiano delineado em múltiplas superfícies corporais.

Foi na chamada fase arqueológica que entre diferentes discursos o corpo do louco, suas gesticulações e movimentos, tornaram-se sinônimo do patológico; corpo este que se fragmentou por classificações características da Psiquiatria emergente no século XIX (FOUCAULT, 1978). Atentando-se para a ruptura ocorrida no discurso médico nesse mesmo período histórico, Foucault (1977) observou os corpos esquadrinhados em autópsias e espacializados em seus signos e sintomas. A partir do cadáver investigado na mesa de dissecação, a clínica moderna construiu a vida como objeto de poder e de saber.

Afirmando a genealogia enquanto ponto de articulação entre a história e o corpo, Foucault (1979) enfatizou um modo diferente de se fazer história, aquilo que nomeou como “história efetiva”. Apoiada em Nietzsche, esta perspectiva não teria por objetivo as origens, a centralidade e o contínuo, mas sim, a dimensão conflituosa das relações humanas, a descontinuidade e a dispersão. A historicidade das coisas perpassaria a todos e a tudo, não havendo uma essência dos seres humanos e sua vida, pois como ressaltou Foucault (1979, p. 27) “[...] nem mesmo seu próprio corpo é bastante fixo para compreender os outros homens e se reconhecer neles”.

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Impactante entre os historiadores brasileiros, a “novi- dade foucaultiana” adentrou com intensidade em um campo marcado por uma perspectiva na qual somente considera- vam-se históricos os acontecimentos políticos e os fatores econômicos. A historiografia influenciada pelo Marxismo apresentava-se como uma abordagem totalizante que em seus métodos e leituras ignorava a historicidade do corpo, suas sensações e desejos.

Como percebeu Rago (1955, p. 67), em um sistema que havia organizado a temporalidade, os sujeitos e o próprio sentido da história, os historiadores brasileiros, desde 1960, compreendiam sua prática a partir da localização das classes, da compreensão dos modos de produção e da análise da formação social. Privilegiando a ideologia e a consciência, a historiografia brasileira, entranhada na figura do proleta- riado, esquecia-se de que o trabalhador possuía um corpo com sensibilidades, prazeres e vivências.

Tornando-se uma instigante alternativa, o pensamento de Michel Foucault (1979) distinguia-se tanto das abordagens marxistas como das para-marxistas. Segundo o filósofo, para além das análises marxistas que privilegiavam a ideologia, fazia-se necessário estudar o corpo, os efeitos que sobre ele incidiam e ressoavam. Nesse sentido, Foucault (1979) também apresentou sua diferença em relação aos para-marxistas que pautavam suas interpretações a partir da noção de repressão. A distinção dessas compreensões esteve pautada no caráter produtivo do poder; longe de impedir, recalcar, excluir e reprimir os corpos, o poder os produz.

Para além dessas “inversões”, Foucault também instigou um novo papel ao intelectual, neste caso ao historiador. Não seria ele o arauto dos conselhos ou aquele que afirmaria

uma verdade sobre a sociedade a partir da reprodução cons- tante de modelos universais de explicação. Assim sendo, “o que o intelectual pode fazer é fornecer os instrumentos de análise, e é este hoje, essencialmente, o papel do historiador” (FOUCAULT, 1979, p. 151).

Estranhamento, perplexidade e espanto; com essas pala- vras Margareth Rago ressaltou o impacto de Foucault entre os historiadores, no Brasil. Desconcerto que aumentou quando naquele período o filósofo Roberto Machado e o psiquiatra Jurandir Freire Costa publicavam obras com temas que, segundo a historiadora, eram pouco comuns naquele contexto (RAGO, 1995). Essas produções diferenciadas apresentavam, notadamente, a influência foucaultiana em seus métodos, abordagens e conceitos. Para além das observações de Rago, podemos ressaltar que ambas as obras foram assinaladas direta ou indiretamente pelo corpo.

Em Danação da norma (1978), Roberto Machado buscou afirmar a mudança no poder da ciência médica, no Rio de Janeiro, do século XIX. Partindo da perspectiva de que o saber médico não estaria restrito ao indivíduo no Brasil, o filósofo perscrutou os modos com os quais a medicina entranhou-se nas relações humanas. Ao estar articulada com os diferentes poderes, a visibilidade advinda do médico atuaria na produção de novas vivências e condutas. Neste regime, o corpo seria o espaço privilegiado, seja nos estudos anatômicos, no temor das contaminações com os cadáveres, na higiene que caracterizaria a arquitetura ou no estilo de vida vigente nas escolas, ruas, quartéis e prisões cariocas.

Tomando como objeto as transformações ocorridas nas famílias do Brasil entre o período colonial e o final do século XIX, Jurandir Freire Costa (1983) problematizou, em Ordem

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médica e norma familiar (1979), a família brasileira marcada

pelo sanitarismo e por técnicas de controle demográfico. Adentrando com intensidade no século XIX, a emergência da família higiênica atuou diretamente sobre os corpos dos indivíduos, seja no combate e no tratamento dos indivíduos considerados doentes, como também na produção de corpos saudáveis e limpos. A proliferação dos discursos médicos não só configurou novas dinâmicas familiares mas também atuou na vigilância da sexualidade, nos modelos de roupas e no cuidado com os alimentos. Ressalta-se também a atenção de Costa para práticas regulatórias do corpo, entre elas a masturbação (COSTA, 1983).

Nota-se tanto nas discussões de terminologias como saúde, integridade física, cuidado com os fluídos, ou no espaço do cemitério e do hospital, características que denotam a corporeidade. Outro ponto de convergência foucaultiana dos dois autores foi questão da medicina social, saber que buscou produzir corpos marcados pela ação de dispositivos, disciplinas e mecanismos de poder (MACHADO et al., 1978; COSTA, 1983). Vale ressaltar que quatro anos antes da publicação de Danação

da norma, precisamente em 1974, Michel Foucault, em uma de

suas vindas ao Brasil, proferiu a conferência intitulada O nasci-

mento da medicina social realizada no Instituto de medicina

social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Para o filósofo francês, com a consolidação do capi- talismo no século XVIII, a medicina não foi marcada pela passagem do espaço coletivo para o espaço privado, pelo contrário, concebida pelo pensador como uma tecnologia, o saber médico foi adentrando em todas as formas de vida. Como afirmou Foucault (1979, p. 80), “foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade

capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica. A medicina é uma estratégia biopolítica”. Das ressonâncias e desdobra- mentos dessas perspectivas, Machado e Costa, diferente de muitos historiadores de seu contexto, elaboraram suas tramas, imprimindo nos corpos os seus objetos de suas análises.

Se a perplexidade predominou no período anterior, a década de 1980 indicava, do ponto de vista metodológico e temático, uma expansão dos horizontes no saber historiográ- fico. Os estudos desenvolvidos por Carlos Fico e Ronaldo Polito nos permitem perceber a mudança para novas temáticas. Segundo os autores:

Ao todo não representam 5,0% do número total de traba- lhos, não chegando, portanto, a atingir 40 pesquisas. Estas novas preocupações temáticas e metodológicas afetam, contudo, um número bem maior de trabalhos afetando estudos sobre o escravismo ou sobre o movi- mento operário (FICO; POLITO, 1992, p. 56).

Mesmo em números ainda reduzidos, objetos como a sexualidade, a loucura, o corpo, o imaginário ou a bruxaria foram verificados nos trabalhos daquela década, ainda que seu aspecto mais significativo pudesse ser observado na capa- cidade de dissolução desses temas em outros estudos. Mesmo moderada, a ampliação de temas, entre os quais o corpo, pode ser perceptível direta ou indiretamente nos trabalhos historiográficos, aspecto este também ligado ao contato com o pensamento de Foucault.

De modo gradual, os historiadores passaram a levar em conta a dimensão corporal das relações humanas. As vivências, o trabalho, as relações familiares ou as organizações sociais

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não se dariam apenas pela economia, pelas classes ou pelos modos de produção, pelo contrário, era das/nas corporeidades que elas irradiavam ou incidiam. Voltemos para as comunica- ções realizadas no colóquio de 1985, nelas podemos perceber algumas das recepções de Michel Foucault em obras que, direta ou indiretamente, atravessam a temática do corpo.

Apontando para a historicidade das doenças, Ítalo A. Tronca, em seu texto História e doença (1985), salientou a correspondência constante que existe entre a ordem bioló- gica e a social. Em cada modalidade de doença, o indivíduo é nomeado, seu corpo é descrito, seu espaço de circulação é delimitado. Como afirma Tronca (1985, p. 137), “o discurso do doente se elabora, portanto, no interior do próprio discurso das relações do indivíduo com o social. Esta é uma das descobertas que devemos a Michel Foucault”.

Partindo do discurso sobre os corpos doentes da cidade de São Paulo no Período Republicano, Tronca (1985) buscou compreender a proliferação de enunciados sobre a lepra. O historiador apresentou o caráter coletivo do discurso, desde o doente que descreve seu corpo, até a sociedade que designa nele o mal absoluto que desfigura os traços. Torna-se necessário enfatizar a influência foucaultiana na dinâmica desenvolvida por Tronca (1985), entre as diferentes modalidades enunciativas como o Estado, o saber médico, o doente ou os meios de comu- nicação, o historiador elaborou o caráter coletivo do discurso e a sua capacidade de produzir estéticas, formas e sentidos.

Assim como Tronca, Margareth Rago colocou em cena o discurso médico e o corpo da mulher. Seu trabalho De Eva a

Santa (1985) esteve ligado a sua pesquisa de mestrado que no

mesmo ano resultaria na obra Do cabaré ao lar (1985), ambas produções que caracterizaram um período de articulação entre o pensamento de Michel Foucault e a influência da História

Social com a publicação das obras de Edward Thompson (RAMOS, 2015).

Nos dois textos, a historiadora contrapõe os estereótipos do Período Republicano que produziam a prostituta como mulher marcada pelo vício, pela sexualidade insubmissa e pelo pecado com a figura da mãe de família, esposa, higiênica e discreta. A dimensão corporal deste texto é evidente desde a mãe com o seu corpo frágil, ingênuo e frígido e a prostituta vestida com roupas chamativas, cobrindo-se de perfumes e realizando atos provocadores.

Desenvolvendo o seu argumento a partir dos discursos médicos e jurídicos, Rago (1985) defendeu a visão de que ambos os corpos foram dessexualizados, seja pelo ideário de pureza imposto à mãe seja pela visão de que o trabalho da prosti- tuta deva ser realizado produtivamente, sem sentir prazer. Invadindo o submundo da prostituição, sanitaristas desenvol- veram classificações, catálogos e exames procurando controlar essas mulheres. Compreendendo o corpo como um espaço de disputas e estratégias, a historiadora destacou as articulações entre a medicina e a criminologia, visando criar uma tipologia corporal específica:

As prostitutas, assim como os criminosos e anarquistas, possuem uma configuração do cérebro diferente e alguns sinais orgânicos que as distinguem das mulheres normais [...] as prostitutas se caracterizam pela fraca capacidade craniana e por mandíbulas bem mais pesadas que as mulheres honestas (RAGO, 1985, p. 226-227).

Alvos da intervenção policial, as prostitutas e suas práticas foram isoladas em espaços fechados, o corpo e sua intimidade deveriam permanecer nos bordéis, lugar este que

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tinha por função “limpar” as ruas e centralizar as figuras transgressoras dispersas para melhor subjugá-las.

A historiadora brasileira afirmou os corpos, constante- mente vigiados no espaço da fábrica, na invasão do cotidiano, nos costumes e práticas culturais de mulheres, homens e crianças. A partir da criação de escolas para os filhos dos trabalhadores, da instalação de pontos comerciais próximos às residências e da vigilância nos espaços, Rago (1985) colocou em questão o diagrama do poder que buscava o adestramento físico e moral dos corpos.

Influenciados pelo Foucault do panoptismo, Ítalo Tronca e Margareth Rago problematizaram seus objetos no contexto republicano. Marcadas pelas transformações ocorridas no Brasil da primeira metade do século XX, a doença e a prosti- tuição eram atravessadas por processos disciplinadores, pelo desenvolvimento das instituições de sequestro, por complexas mudanças urbanas, médicas, familiares e escolares. Ao compre- enderem o poder de forma difusa, Tronca e Rago deslocaram seus olhares da centralidade do Estado e das relações econô- micas para os discursos, as instituições e os sujeitos.

Por outro lado, as ressonâncias foucaultianas entre os historiadores brasileiros estariam restritas ao contexto repu- blicano e a História Contemporânea? A terceira historiadora do colóquio de 1985 nos deu indícios de que não. Instigada por aquilo que chamou de “universo foucaultiano”, Silvia Hunold Lara (1985, p. 229) decifrou a gramática dos ferimentos nos corpos dos escravos do Período Colonial.

O texto O castigo exemplar dos escravos no Brasil Colonial (1985), desdobramento de sua pesquisa de doutorado, abordou as relações entre senhores e escravos, no Brasil Colônia. Atenta para as marcas da escravidão inscritas na carne ferida dos escravos, a historiadora apresentou os castigos físicos, práticas

consideradas pedagógicas que raramente eram questionadas naquele contexto.

Entre os documentos utilizados, o caso do juiz da Alfândega do Rio de Janeiro que solicitava, no século XVIII (LARA, 1985), a transferência do local dos castigos das praças centrais para os espaços de trabalho ganhou centralidade. Por meio dele, Lara (1985, p. 233) analisou o momento no qual “uma lei e um poder que deixavam de ser registrados apenas com papel e tinta, pelos senhores e para os senhores, para serem inscritos no corpo dos escravos”.

Na linguagem das cicatrizes das surras, das marcas e sinais apontava-se o pertencimento a um dono, quais eram os escravos fugitivos ou quais os crimes cometidos. Tal como o suplício de Vigiar e Punir (1976), o poder era inscrito e ostentado naqueles corpos desde o castigo físico, o controle da alimen- tação, as distinções nos vestuários, a exploração física e a violência sexual (LARA, 1985).

Silvia Hunold Lara observa também o corpo enquanto espaço de resistência ao poder. Na carne se indicava a luta e a transgressão, uma corporeidade que denotava um saber escravo que poderia por eles ser lido, “[...] podia dizer sobre a qualidade do senhor que o havia imprimido, podia identificar um aliado possível numa fuga, numa rebelião, etc.” (LARA, 1985, p. 237). Ao produzir uma história do corpo no Brasil Colonial, Lara proporcionou um olhar diferente do qual a historiografia havia realizado sobre o período. Desse modo, a autora apontava que a abordagem apresentada por Foucault não estaria restrita a um catálogo de temas, pelo contrário, desdobrando-o em diversos usos e problemas seria possível elaborar tramas, fazer recortes, produzir séries distintas, olhar para o passado como um espelho estilhaçado em infinitos reflexos e formas.

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Tomando, por exemplo, esses três trabalhos, podemos observar como os corpos, suas fronteiras, intervenções e desejos não resultaram de sucessões contínuas, amistosas ou pacíficas. A aproximação com o pensamento de Foucault (1999) também se fez presente ao ressaltarem o caráter conflituoso das rela- ções humanas. Leitor de Nietzsche, o filósofo francês reiterou constantemente, em sua obra, as batalhas e jogos discursivos, os poderes e saberes que nomearam e constituíram o corpo desta figura provisória e historicamente produzida chamada homem.

Foucault apresentou aos historiadores um corpo para além das naturalizações, o corpo como uma superfície instável e constantemente significada por poderes e saberes. Diferente de uma historiografia por vezes tímida, para falar sobre o corpo, o intelectual francês colocou a si próprio em uma conferência radiofônica no Círculo de Estudos Arquitetônicos, em 1967. Foi falando sobre seu próprio corpo que Foucault (2013) afirmou seu rosto magro, seus ombros arcados, seu olhar míope, sua ausência de cabelos, seu corpo como uma gaiola com a qual seria preciso se apresentar ao mundo. Era no corpo, ou a partir dele, que o cotidiano transcorreria, que os espaços seriam nomeados e que a dimensão histórica da vida poderia ser problematizada pelos historiadores.