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O império biológico fundamentou as questões de gênero e de sexualidade, dado que acreditavam estar na genitália a descrição dos papéis sociais e sexuais para explicitar a ordem moral. Conseguinte, como aponta Michel Foucault (1988), há uma propagação de saberes médicos com finalidade de ratificar que os comportamentos humanos, principalmente sexuais, têm sua origem na biologia dos corpos. Em busca de um sexo “verdadeiro”, o dispositivo da sexualidade inicia o controle de corpos abjetos, dissidentes, corpos que falharam em viver de forma plena a condição do seu gênero.

Os discursos científicos sobre as diferenças biológicas entre homens e mulheres, construídos como verdades

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irrefutáveis ao longo dos séculos XVIII e XIX, foram antecedidas pela rediscussão do novo estatuto social da mulher. Por volta da segunda metade do século XVIII, as diferenças anatômicas e fisiológicas visíveis entre sexo não eram consideradas, até que se tornou politicamente importante diferenciar do ponto de vista biológico, homens e mulheres mediante o uso do discurso científico (BENTO, 2006, p. 115).

Destarte, mediante as distinções, implicava a “solução” das diferenças. A dicotomização dos órgãos nomeados como pênis e vagina, como vimos, propunha significados “reais”, uma vez que, o primeiro se inscreve como produtor e o segundo como reprodutor de vidas. A condição que mudasse essas representações poderia ser penalizada, sob acusação de monstruosidade. Há então, uma negação constante ao corpo ambíguo e ao desejo homossexual.

A organização das subjetividades em um mundo marcado pela polarização naturalizada dos gêneros acaba por criar um conjunto de subjetividades e sexualidades diver- gentes do modelo estabelecido pelas normas de gênero, mas que serão recuperados por essas mesmas normas a medida que se estrutura explicações patologizantes para essas subjetividades e sexualidades divergentes, operando-se uma inversão: o problema está no indivíduo, e não nas normas de gênero (BENTO, 2006, p. 131-132). Os sujeitos dissidentes nascem sob a égide de uma iden- tidade que tem, no seu corpo, as marcas traçadas socialmente, já que o gênero é significado socialmente e estruturado pela

diferença sexual, havendo assim, a produção de uma anor- malidade fundamentada na inteligibilidade de gênero, que é produto da heterossexualidade compulsória5. Conforme Butler (2003), é a marca do gênero que atribui existência significável para os sujeitos, qualificando-os para a vida no interior da inteligibilidade cultural.

Com a impossibilidade de vigiar os sujeitos e colocá-los em um domínio inteligível, esquadrinham-se novas maneiras de inserir os atores sociais em classificações que os identificam como monstro ou anormal, assim como explica Foucault (2001). Há muito tempo, se tem essas percepções acerca de sujeitos que se encontram, por vezes, à beira da heteronormatividade6,

a qual atribui uma inteligibilidade ao sexo/gênero e ao desejo de acordo com características que os indivíduos impregnam em seus corpos.

Assim sendo, na produção dos gêneros inteligíveis, não existe lugar para relativização, só pode ter masculinidade em corpos-pênis e feminilidade nos corpos-vagina. Como afirma Bento (2006), nascemos e somos apresentados a uma única possibilidade de construirmos sentidos identitários para nossas sexualidades e gêneros.

5 De acordo com Miskolci (2007), a heterossexualidade compulsória tem por objetivo “formar a todos para serem heterossexuais ou organizarem suas vidas a partir do modelo supostamente coerente, superior e ‘natural’ da heterossexualidade”.

6 De acordo com Bento (2006), compreende-se a heteronormatividade “a força que heterossexualidade tem de apresentar-se como a única forma dos sujeitos viverem suas sexualidades e sua capacidade de normatizar inclusive as relações não heterossexuais. O binômio ativo/passivo seria uma das formas dessa norma se apresentar, sendo o ativo vinculado ao masculino e a passividade identificada como um atributo sexual e subjetivo feminino. Este binômio opera e atravessa as relações de gênero e sexuais, inclusive sendo um marcador classificatório fundamental entre gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais.”.

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Essas regras só demonstram o quanto às relações humanas são construídos de acordo como o tempo e espaço que os sujeitos sociais se encontram imersos. Os processos de transformação, sejam subjetivos (ou da ordem do sociologicamente invisível) ou nas relações sociais macro, caracterizam-se por disputas mais ou menos intensas, derivando daí a necessidade de se pensar os limites mesmo da ideia de liberdade. Os meios de liberdade que os sujeitos deveriam se deleitar são castrados desde a infância, através dos meios socia- lizadores7 como a família, escola, religião dentre outros mecanismos, os quais inculcam maneiras de ser que são encaradas como normais e naturais, impossibilitando uma agência subversiva. Todavia não se pode delegar essa ideia a todos os atores sociais, haja vista que as ações dos sujeitos estão amparadas por normas que deixam em suas bases fissuras, onde se podem elaborar formas de ser e de agir diante do que é exposto como verdade (GOMES; ALMEIDA; BENTO, 2001, p. 134). Diante das ideias apresentadas acima, compreende-se que há instituições e agências que regulam os corpos na tenta- tiva de padronizar e, sobretudo, normatizar os indivíduos para que eles correspondam as normas impostas socialmente. No caso dos homossexuais, o primeiro passo foi conferir o caráter de doença, nesse sentido oferecendo o controle dos “corpos doentios” a “cura” do discurso e regulação do saber médico e

7 Por socialização entende-se o “processo pelo qual todo indivíduo passa após o nascimento, com o objetivo de inculcar ou interiorizar nele as regras, leis e normas que a sociedade em que ele está inserido mantém.” (BERGER; LUCKMAN, 2012).

psiquiátrico. Destacando que na figura de um corpo sexuado se cristalizou as características fundantes da sexualidade.

Portanto, se antes era a genitália que dizia quem você se tornaria, é na construção do gênero como social que a sociedade imprime características fixas para o feminino e masculino. Logo, é no corpo que se representa o “Outro” na primícia de um modelo masculino e feminino homogêneo. Desse modo, um corpo construído como homem/macho qualquer traço de feminilidade é visto como desvio de viver sua masculinidade. É ele o “efeminado”, gay, a bicha. Por outro lado, se a mulher expressa atributos da masculinidade, passa a ser reconhecida como mulher macho, sapatão, caminhoneira – lésbica. Destarte, é no corpo que se instaura o terror de viver e conviver com um padrão absoluto do masculino e do femi- nino. O fato de gostar de futebol, arte marcial, encher a cara com os amigos não diz que sexualidade o sujeito experimenta. Quem garante que, por inscrever no meu corpo performance do feminino, meus desejos sexuais se deem na heteronorma- tividade? As performances de gênero que os corpos revelam não são traduções imediatas da sexualidade.