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Conjugalidade e parentalidade: uma análise teórico-conceitual

do contexto homossexual

O modelo de família que outrora era comumente consti- tuído apenas por um homem, uma mulher e um filho ou mais, vem sendo desconstruído por meio de algumas transformações na própria sociedade. Isso pode ser visto em Rodriguez e Paiva (2009) quando apontam que, na sociedade atual, a família vem passando pelas mais variadas mudanças, apresentando-se de muitas formas, questionando, assim, o modelo tradicional: “família natural”.

Constituído por subsistemas como o conjugal e o parental (PIRES, 2008), o conceito de família sofreu um fenômeno de pluralização, não mais se identificando pela celebração do matrimônio (DIAS, 2009). No que se refere ao conjugal, Pires (2008, p. 10) compreende que a conjugalidade “refere-se à díade conjugal e constitui um espaço de apoio ao desenvolvimento familiar”. Nesse contexto, Uziel et al. (2006) comentam que o debate acerca da conjugalidade homosse- xual (ou homoconjugalidade) não está tão vivo nos âmbitos acadêmico e militante brasileiros comparados a instâncias de outros países, como é o caso da França. Contudo, as discussões em torno da temática têm vistas a conquistas patrimoniais, previdenciárias, entre outras.

Nesse sentido, Mello (2005 apud SILVA, 2014) defende a ideia de que o reconhecimento da conjugalidade homossexual como uma nova configuração de entidade familiar foi uma possibilidade vista para desconstruir a imagem “perversa” dos homossexuais como “sujeitos sexuais”, o que auxiliou na conquista do direito à constituição de grupos familiares,

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integrando, desse modo, a possibilidade de inclusão da filiação de crianças, biológicas ou adotivas, em suas relações afetivas.

Assim como a família, a filiação foi alvo de mudanças, levando a “repensar as relações paterno-filiais e os valores que os moldam” (ALMEIDA, 2003 apud DIAS, 2009, p. 50). A parentalidade homossexual (também conhecida como “homo- parentalidade”) é outra temática que vem sendo discutida no âmbito do debate sobre família e suas novas configurações, sendo esta forma de parentalidade uma maneira de aprofunda- mento sobre os significados da liberdade e justiça, visto que traz à tona a abordagem sobre família, bem como direitos sexuais e reprodutivos, permitindo interlaçar questões referentes aos gays e às lésbicas terem filho(s) (UZIEL, MELLO; GROSSI, 2006).

Rodriguez e Paiva (2009, p. 15) definem a homoparenta- lidade como uma situação em que pelo menos um indivíduo adulto homossexual (homem ou mulher) assume uma criança como seu parente, seja essa parentalidade efetivada por meio de afinidade, consanguinidade ou adoção. Portanto, de acordo com a bibliografia da área, as formas de filiação para os homos- sexuais são as quatro citadas a seguir:

1. Terem tido filhos em relações heterossexuais anteriores à “descoberta” ou antes de “assumir” a homossexualidade.

2. Adoção por um dos parceiros, pois apenas na Holanda é reconhecida a adoção por um casal homossexual. 3. Procriação com um terceiro indivíduo fora da relação

de conjugalidade, através das novas tecnologias reprodutivas (inseminação artificial por doador desconhecido para lésbicas ou barriga de aluguel para gays).

4. Co-parentalidade entre lésbicas e gays, que pode ser tanto de dois casais, como de um casal de lésbicas com um gay ou um casal de gays com uma lésbica (GROSSI, 2003, p. 270).

Em relação à segunda razão apontada por Grossi (2003), vale lembrar que, no Brasil, após o reconhecimento da união estável de casais homoafetivos, tornou-se possível, também, a adoção conjunta por ambos os membros do casal (GRANJA; MURAKAWA, 2012).

São três os meios que os homossexuais apresentam para ter acesso à homoparentalidade e eles seguem o modelo mencionado por Rodriguez e Paiva (2009, p. 20): “família recom- posta com filhos de relacionamento heterossexual anterior, adoção (legal ou não) ou o uso de tecnologias reprodutivas, como inseminação artificial ou fertilização assistida”.

A respeito do afeto como identificador das entidades familiares, Carbonera (1988), comentada em Dias (2009), aponta que é justamente ele o sentimento parâmetro para definir os vínculos parentais, fazendo com que surja a família eudemonista2. Do lado oposto, há a genética, que com seu grau

de confiabilidade, “desencadeou verdadeira corrida na busca da verdade real, atropelando a verdade jurídica, definida muitas vezes por meras presunções legais” (DIAS, 2009, p. 51). Tendo como base esse contraste de situações, no final, o afeto se sobrepõe à biologia, levando ao surgimento da filiação socioafetiva, uma nova figura jurídica.

2 A família eudemonista é compreendida por Carbonera (1988 apud DIAS, 2009, p. 51) como aquela que “aponta o direito à felicidade como núcleo formador do sujeito”.

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Considerações finais

A partir deste breve trabalho teórico, pôde-se concluir que há muitas controvérsias, ainda, em torno da garantia dos direitos tanto dos indivíduos pertencentes à comunidade LGBT, como também das famílias constituídas por esses indivíduos com seus pares amorosos: as famílias homoafetivas.

Por um lado, tem-se vivenciado, nas últimas décadas, conquistas importantes tanto em âmbito nacional como inter- nacional, tais como: o reconhecimento formal da Organização Mundial de Saúde (OMS) e do Conselho Federal de Psicologia (CFP) de que a homossexualidade não se trata de nenhuma doença ou distúrbio psiquiátrico ou neurológico; a conquista da união estável e do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo; e a possibilidade de adoção de crianças por casais homoafetivos.

Por outro lado, nota-se que, nacionalmente, ainda há muitos desafios, tanto no sentido de direitos que ainda não foram alcançados, tais como o fim (ou pelo menos uma significativa diminuição) da descriminação e da violência infringida contra a comunidade LGBT e a aprovação do projeto de lei que criminaliza a homofobia (PL 122); como também na vertente de resguardar os direitos recentemente adquiridos. Especificamente no caso do reconhecimento do casamento civil homoafetivo e das famílias homoparentais, tem-se, por exemplo, a ameaça do projeto de lei do Estatuto da Família, que se propondo a definir e regulamentar, juridicamente, o que pode ser considerado família no Brasil, pretende a exclusão das famílias homoafetivas.

A fim de resguardar os direitos já adquiridos e avançar em outras conquistas no sentido de combate à discriminação, à violência e reconhecimento da igualdade de todos os seres

humanos, tanto nacional como internacionalmente, a defesa dos direitos humanos se faz fundamental.

Nesse sentido, é interessante lembrar a concepção intercultural dos direitos humanos proposta por Boaventura de Souza Santos (2006), que afirma que, apenas a partir de uma concepção multicultural de direitos humanos, é que os direitos humanos poderão ser, de fato, emancipatórios. O autor enfatiza a importância de um diálogo cultural, ressaltando que as pessoas têm o direito de serem iguais quando a diferenças às inferioriza e de serem diferentes quando a igualdades as descaracteriza. A partir do diálogo intercultural há, portanto, o reconhecimento da incompletude do ser humano e a valori- zação tanto da diversidade quanto de certos princípios políticos de direito de igualdade.

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PROBLEMATIZANDO

A DESDIAGNOSTICAÇÃO