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A Colocação do sexo em discurso e a incitação dos discursos sobre o sexo

A proposta de Foucault de que houve, desde o fim do século XVI, uma colocação do sexo em discurso e fortes inves- timentos em se fazer falar sobre ele, surge como alternativa para a hipótese que até então vigorava para explicar a história das sexualidades e que ele nomeia de hipótese repressiva. Essa hipótese afirmava ter havido, desde a época clássica, uma forte repressão sobre as questões ligadas às práticas sexuais, tendo o sexo sido reduzido, segundo ela, unicamente à função reprodu- tora, trancafiado no quarto do casal “modelo”, encerrado dentro da casa. Segundo essa hipótese “a repressão foi, desde a época clássica, o modo fundamental de ligação entre poder, saber e sexualidade” (FOUCAULT, 1997, p. 11).

Foucault rejeita fortemente tal hipótese e não acredita que ela seja suficiente para explicar a história da sexualidade a partir da idade moderna, entretanto, com isso, ele não considera ou propõe que não tenha havido proibições relacionadas ao sexo desde a época clássica, inclusive o autor até afirma que obvia- mente houve muitas proibições referentes ao sexo, no entanto é, no mínimo, uma ilusão pensar a interdição como o “elemento fundamental e constituinte a partir do qual se poderia escrever a história do que foi dito do sexo a partir da idade moderna” (FOUCAULT, 1997, p. 17).

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É por esse motivo que, para mostrar os movimentos da história da sexualidade a partir da idade moderna, ele precisa, em certa medida, passar por cima da hipótese repressiva e o primeiro volume d’A história da sexualidade é uma introdução ou primeira abordagem de uma série de análises históricas que refutam essa hipótese, bem como é também onde ele apresenta a sua hipótese para a compreensão da formação da história da sexualidade, que consiste na ideia da colocação do sexo em discurso. Segundo ele,

a partir do fim do século XVI, a ‘colocação do sexo em discurso’, em vez de sofrer um processo de restrição, foi, ao contrário, submetida a um mecanismo de crescente incitação (FOUCAULT, 1997, p. 17).

O que aconteceu nos três últimos séculos, segundo Foucault, foi algo bem diferente do que aponta a hipótese repressiva. Ao invés de repressão em torno do sexo há “uma verdadeira explosão discursiva” (FOUCAULT, 1997, p. 21); uma proliferação dos discursos sobre o sexo. O poder se empenhou em fazer falar, ocasionando assim uma espécie de “incitação institucional a falar do sexo e a falar dele cada vez mais” (FOUCAULT, 1997, p. 22).

Para que seja possível melhor compreender como se deu esse empenho por parte do poder em fazer falar sobre o sexo, é estruturante conhecer a concepção de Foucault acerca do conceito. O poder, na perspectiva desse autor, aparece como algo que não está localizado em uma determinada instância, emanando de um único ponto; tampouco é um objeto detido por alguém, trata-se na realidade de um exercício, de práticas que funcionam em rede, algo que circula. O poder funciona

através de um conjunto de dispositivos de sujeição, responsável por produzir os sujeitos, operando na sujeição, controlando, domesticando e fabricando. Em Vigiar e punir, vemos como ele elabora o conceito de poder enquanto prática de sujeição, que se concretiza através da disciplina e se manifesta no corpo. Esse corpo é fabricado por técnicas e dispositivos de assujeita- mento, tais como a pedagogia, por exemplo, e tem como objetivo o adestramento do corpo, visando, com isso, que ele se torne (econo- micamente) útil e (politicamente) dócil. As disciplinas, enquanto “fórmulas gerais de dominação” (FOUCAULT, 2011, p. 133),

permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõe uma relação de docilidade – utili- dade, são o que podemos chamar as <<disciplinas>> (FOUCAULT, 2011, p. 133).

Notamos, observando a historicidade da sexualidade, que no campo de exercício do poder, o que houve, ao invés de uma repressão, foi uma multiplicação dos discursos sobre o sexo que teve início com a evolução da pastoral católica e do sacramento da confissão. Inclusive, segundo Foucault, a história de uma sexualidade moderna já se forma em grande parte com a pastoral Cristã. Houve, com a Contrarreforma, uma dedicação de todos os países de predominância católica a acelerar o ritmo anual da confissão. Houve, com isso, um alto crescimento incessante da confissão dos chamados “pecados da carne”. Com relação a esses pecados, também conhecidos como pecados contra a pureza, o que ocorreu foi que “atribui-se cada vez mais importância, na sua penitência – em detrimento, talvez, de alguns outros pecados” (FOUCAULT, 1997, p. 23).

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Foi posto pela igreja que

todas as insinuações da carne: pensamentos, desejos, imaginações voluptuosas, deleites mov imentos simultâneos da alma e do corpo, tudo isso deve entrar, agora, e em detalhe, no jogo da confissão e da direção espiritual”(FOUCAULT, 1997, p. 23).

Tudo o que tivesse a ver com o sexo deveria entrar no jogo da confissão, tudo deveria ser dito. E foi dessa maneira que se fez da carne a origem de todos os pecados. A partir desse momento os indivíduos passam a ser incitados a se policiarem em tudo que envolva o sexo e, em seguida, confessarem-se, até mesmo os seus sonhos devem ser observados com atenção e confessados. Com isso “a pastoral Cristã procurava produzir efeitos específicos sobre o desejo, pelo simples fato de colocá-lo integral e aplicadamente em discurso” (FOUCAULT, 1997, p. 26).

A confissão e as investidas na sua intensificação têm início na Pastoral Cristã, entretanto não se restringiu unica- mente a esse campo, logo ela foi apoiada e relançada por outros mecanismos, essencialmente por um “interesse público”, no século XVIII nasceu uma espécie de “incitação política, econô- mica e técnica a falar do sexo” (FOUCAULT, 1997, p. 26). O sexo passou a ser visto não como algo que se deve unicamente

condenar ou tolerar, mas gerir, inserir em sistemas de utilidade, regular para o bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão ótimo. O sexo não se julga apenas, administra- se. Sobreleva-se ao poder público; exige procedimentos de gestão; deve ser assumido por discursos analíticos (FOUCAULT, 1997, p. 27).

Além desses mecanismos de interesse público, já a partir final do século XVIII, mas ganhando mais força no início do século XIX, houve outros focos que entraram também em ativi- dade no que se refere a esse interesse em suscitar discursos sobre o sexo, tais como a medicina, a psiquiatria e a justiça penal, isto é, saberes científicos considerados a partir dessa época como as instancias legítimas de produção dos discursos de verdade. Dessa maneira o poder criou em toda parte

dispositivos para ouvir e registrar, procedimentos para observar, interrogar e formular [...] O sexo se tornou, de todo modo, algo que se deve dizer, e dizer exausti- vamente, segundo dispositivos discursivos diversos, mas todos constrangedores, cada um à sua maneira (FOUCAULT, 1997, p. 34).

A obrigatoriedade de discursar sobre o sexo é algo que foi institucionalizado, o poder colocou sobre os sujeitos, muito além do fomento às confissões, a obrigatoriedade de que eles fizessem da sua sexualidade um discurso permanente, desse modo fez-se do próprio desejo um discurso. O sexo foi “açambarcado e como que encurralado por um discurso que pretende não lhe permitir obscuridade nem sossego” (FOUCAULT, 1997, p. 24) e isso foi responsável por uma pecu- liaridade do Ocidente moderno que consiste em uma “tarefa de se dizer a si mesmo e de dizer a outrem tudo que possa se relacionar com o jogo dos prazeres” (FOUCAULT, 1997, p. 24).

Em síntese, nessa perspectiva e, contrapondo-se à ideia de uma hipótese repressiva como central na definição da história da sexualidade, o que houve foi

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Em vez da preocupação uniforme em esconder o sexo, em lugar do recato geral da linguagem, a característica de nossos três últimos séculos é a variedade, a larga dispersão dos aparelhos inventados para dele falar, para fazê-lo falar, para obter que fale de si mesmo, para escutar, registrar, transcrever e redistribuir o que dele se diz [...] o que é próprio das sociedades modernas não é o terem condenado o sexo a permanecer na obscuridade, mas sim o terem-se devotado a falar dele sempre, valo- rizando-o como segredo (FOUCAULT, 1997, p. 35-36). E ainda é importante também atentar para o fato de que:

É preciso, portanto, abandonar a hipótese de que as sociedades industriais modernas inauguram um período de repressão mais intensa do sexo. Não somente assistimos a uma explosão visível das sexualidades heré- ticas, mas, sobretudo, a um dispositivo bem diferente da lei: mesmo que se apoie localmente em procedimentos de interdição, ele assegura, através de uma rede de mecanismos entrecruzados, a proliferação de prazeres específicos e a multiplicação de sexualidades dispa- radas (FOUCAULT, 1997, p. 48).

Em suma, podemos observar que esse processo histórico de fomento dos discursos sobre as práticas sexuais as colocou em evidência fazendo delas um elemento considerado de grande importância na vida social. O sexo, ao ser colocado em discurso, legitimou-se socialmente como algo que necessita ser falado. No entanto, apesar de inicialmente a incitação à confissão ser igual para todos, é chegado o momento em que

essa obrigatoriedade passa a ser apenas dos dissidentes da sexualidade eleita como legítima.

Com a eleição do casal legítimo quem