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CAPÍTULO III AS TROCAS E OS ENCONTROS NO ESPAÇO DA RUA

3.1 O IMAGINÁRIO URBANO E SUA INTERLOCUÇÃO COM O ESPETÁCULO DE RUA

3.1.1 Apontamentos para definição de conceitos

Se não houver coração, paixão, sonho, não haverá mais que a rotina da história (LE GOFF, 2007:27).

O imaginário é uma representação mental, consciente ou não, formada a partir de vivências, lembranças e percepções passadas e passíveis de serem modificadas por novas experiências. O termo:

[...] imaginário designa um conjunto interligado de imaginações que, por desvios ou compensações da realidade, procuram explicá-la ou justificá-la. Trata-se, portanto, de uma referencia construída socialmente, em que se misturam imaginações reprodutoras e fabuladoras, em grande parte irreais, mas cristalizadas. (CUNHA, 2003:344-345)

Ainda buscando uma melhor definição para este conceito, temos no dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, que traz a respeito do termo as seguintes definições:

1. Criado pela imaginação e que só nela tem existência; que não é real, fictício. 2. Que se imagina como tal – aquilo que pertence ao domínio da imaginação – reunião de elementos pertencentes ou característicos do folclore, da vida, etc. de um grupo de pessoas, um povo, uma nação, etc. (HOUAISS, 2001:1573)

Para Cunha (2003) o imaginário seria mais uma ferramenta explicativa e justificadora da realidade, enquanto que para Houaiss o termo se define pela oposição ao que seria “o” real. A percepção de Newton se apóia em

pensamentos da nova história, que tem no mundo sensível uma das formas de “tentar recriar a vida dessas pessoas do passado ignorando todos esses signos concretos é o mesmo que não conhecê-las”. (LE GOFF, 2007:20). Para compreender uma sociedade, segundo ainda Le Goff (2007) os estudiosos precisam adentrar em seu mundo sensível, realizar uma investigação do imaginário, pois os procedimentos culturais e sensíveis são mecanismos utilizados pelos agrupamentos sociais para dar sentido a seu mundo. A possibilidade de compreensão e leitura do mundo circundante através do estudo do sensível aparece como ponto fundante nos escritos de todos os historiadores culturais. E como afirma Kramer (2001:160): O artista moderno já mostrou que a exploração do desconhecido modifica nossa maneira de entender o mundo, e segundo White não há nenhuma razão (a não ser o medo ou a ideologia) para que os historiadores evitem os mesmos domínios. Com as palavras de Pesavento (2003:43) reafirmo e defino o termo central deste capítulo: “Entende-se por imaginário um sistema de idéias e imagens de representação coletiva que os homens, em todas as épocas, construíram para si, dando sentido ao mundo”. Portanto, o imaginário deve ser compreendido como histórico e datado, bem como circundado e circundante a uma dada estrutura e grupo social.

Na definição estabelecida por Houaiss aponta-se para outra diferenciação significativa da nova História Cultural, que é a questão do real e da ficção. Discussão já esboçada na fala acima de Khramer adquire os contornos defendidos na fala de Le Goff (2007) para quem a realidade é o próprio imaginário. Segundo Lucian Boia (apud Pesavento, 2003:46): o imaginário pressupõe imagens sensíveis, resgatáveis pelo historiador, e complementa:

Tanto as sociedades arcaicas quanto as modernas, contemporâneas, tecnologizadas possuem seus sistemas imaginários de representação, a construírem verdades, certezas, mitos e crenças. Todos os homens vivem [...] ao mesmo tempo, em um mundo prosaico, das coisas do cotidiano, e em um mundo do fabuloso, do desejo e do sonho. O que é certo [...] é que nenhuma sociedade vive fora do imaginário e que é uma falsa questão separar os dois mundos, o do real e o do imaginário. (BOIA apud Pesavento, 2003:46- 47)

Na fala de Boia percebe-se a importância atribuída ao imaginário; transforma-se em categoria que permite às sociedades entenderem seu estar no mundo, conseguir outras formas de decifrá-lo e com isso buscar um novo sentido para o seu estar neste mundo. Daí a importância e o sentido da arte e de seu estudo pelos historiadores da Nova História.

Segundo Evelyne Patlagean36, o estudo do imaginário se debruça sobre

a atenção dada aos movimentos involuntários da alma, aos sonhos. Então, podemos pensar o teatro de rua como estimulador de tal movimento, uma vez que esta experiência artística, vivenciada pelos atores e pelo público, dialoga com sonhos, desejos, medos, angústias, alegria, etc. O imaginário pode ser compreendido como o que é vivificado pelos que se deixam envolver ou pertencer a um grupo, ser alguém, fazer parte de um todo através da festa, do encontro, que propõem o teatro, tal como o afirma Denis Guénoun,

O público dos teatros não é uma multidão. Nem uma aglomeração de indivíduos isolados. Este público quer ter o sentimento, concreto, de sua existência coletiva. O público quer se ver, se reconhecer como grupo. Quer perceber suas próprias reações, as emoções que o percorrem, o contágio do riso, da aflição, da expectativa. É uma reunião voluntária, fundada sobre uma divisão. É ao menos como esperança, como um sonho, uma comunidade. (GUÉNOUN, 2003:21)

As palavras de Guénoun adquirem mais força ao se analisar o teatro de rua, e com isso podemos perceber que esta forma de teatro encontra sua força em nossa ancestralidade tribal, em nossa necessidade de encontros, de trocas, de vivências com o outro e, principalmente, de vivências com e no grupo. Possibilita, ilusoriamente, e temporariamente, um retorno ao mito do coletivo, do unificado, da eliminação das fronteiras. Inclusive a forma preferencial, até mesmo de forma espontânea por quem a assiste, é o circulo; sendo que a forma circular reafirma e acentua as palavras acima colocadas por Guénoun.

Márcio Machado37 ressalta que no trabalho do Menestrel Faze - dô:

36 Evelyne Patlagean é autora de um dos ensaios do livro A História Nova, uma obra coletiva

que tem direção de Jacques Le Goff, Roger Chartier e Jacques Ravel.

O espetáculo depende muito do público. Tanto que, dependendo de alguns lugares que acontecem as apresentações, principalmente em centros maiores, em festivais, onde estão habituados a colocar as apresentações em frente a escadarias, para que o público fique mais acomodado, nunca funciona direito. Estamos sempre fugindo desses locais. Precisamos que o público esteja ali ao redor. A qualquer momento alguém vai entrar ou sair pelo meio do público. O público está se olhando. Você provoca uma pessoa e ela reage. Todo mundo lá está vendo a reação dela. Que seja sorrir, que seja fechar a cara e você está observando o público o tempo todo, então você está vendo como é que ele está reagindo. Então uma pessoa que está muito sisudo num canto, por exemplo, que está analisando muito, às vezes é aquela pessoa que você vai provocar com algum dos jogos para ver como ela vai reagir. De um jeito ou de outro, todo mundo está se observando. Todo mundo tem essa necessidade de se olhar, de se ver. Então às vezes a pessoa está olhando o espetáculo, mas está olhando como é que a pessoa do outro lado está reagindo.

Mas, para além deste desejo de encontro e retorno a um mito coletivo, existe uma percepção cristalizada com a modernidade do perigo que o outro pode representar. Esta análise está muito pertinentemente expressa nas seguintes palavras de Bauman:

“Não fale com estranhos” – outrora uma advertência de pais zelosos a seus pobres filhos - tornou-se um preceito estratégico da normalidade adulta. Este preceito reafirma como regra de prudência a realidade de uma vida em que os estranhos são pessoas com quem nos recusamos a falar. Os governos impotentes para atacar as raízes da insegurança e ansiedade estão bem dispostos e felizes com a situação. Uma frente de “imigrantes”, essa mais completa e tangível encarnação do “outro”, pode muito bem levar a unir o difuso amontoado de indivíduos atemorizados e desorientados em alguma coisa vagamente assemelhada a uma “comunidade nacional”; e essa é uma das poucas tarefas que os governos de nosso tempo são capazes de fazer e tem feito. (2001: 127)

Os seres humanos sempre buscaram formas de escapulir do que os amedronta e do que os faz sentir-se fora de seu contexto. Talvez resida no desejo e no sonho de superar os medos expostos por Bauman, a força do teatro de rua. Pois esta forma de teatro despertaria nos seus executantes – atores e público – um desejo, não necessariamente consciente, de encontrar outras formas de relacionamento humano, outras formas de contato, uma

vivencia do coletivo. Talvez ai resida à importância e o sentido vital, e diria mesmo a sua permanência, e o interesse que esta forma de teatro desperta onde é realizado, nas cidades, nas ruas, nas esquinas, etc.

Este teatro propõe romper as barreiras do medo de olhar, de se tocar, que têm as pessoas nos espaços de convivência comum, entre esses a rua – podemos dizer que o teatro de rua, bem como outras coisas similares, rompe, perfura esta indiferença e re-estabelece, mesmo que momentaneamente a comunidade, que se traduz por partilhar, vivenciar algo em conjunto, perceber e sentir as mesmas coisas. Como bem colocou acima o ator Márcio: “Todo mundo tem essa necessidade de se olhar, de se ver”. Portanto, o público observa não apenas o espetáculo, mas, e talvez tão importante quanto, o seu olhar se dirige aos seus demais companheiros de observação do espetáculo. Seu olhar se dirige aos que como ele comunga de algo em comum. Podemos dizer que o teatro de rua possibilita a festa, o encontro (a celebração do encontro) Num resgate de um sentimento perdido, mas incorporado ao nosso arquétipo, a comunidade tribal – o teatro, aqui entendido como o veículo deste vivificar.