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CAPÍTULO II – A CONSTRUÇÃO ATORAL NO TEATRO DE RUA

2.2 EXPERIÊNCIAS DE DRAMATURGIA E ATUAÇÃO NA RUA

2.2.1 Histórias de Amor

Retomando a trajetória do grupo Menestrel Faze - dô, após a experiência inaugural deste coletivo com a performance sobre o mito de Lilith e o recebimento da verba para a construção das pernas-de-pau inicia-se um processo de pesquisa e treinamento do ator. Histórias de Amor foi a primeira experiência do grupo na rua, estreou em maio de 1997 e soma mais de 200 apresentações. Seu tema foi desenvolvido na busca da linguagem mais pura e

simples do povo da região serrana catarinense, contando uma história universal.

Em cima das pernas-de-pau os atores desenvolveram um roteiro que surgiu das improvisações experimentadas com o Jogo Dramático – prática desenvolvida por Joana Lopes, e descrita no livro Pega Teatro, que foi uma grande referência para os atores do Menestrel. O jogo dramático é uma forma de teatro aqui - agora: teatro de revelação e invenção. As atividades são realizadas em grupo. O atuante é a fonte de expressão fazendo o jogo do autor - ator. As idéias para a montagem que estavam iniciando foram orientadas pelo tema: Amor. O grupo então atuando, criou enredo, roteiro, ações, conflitos, falas e todo o texto.

Buscando uma dramaturgia de teatro voltada para a Rua, num exercício constante de construção que funcionasse para este espaço. O processo culminou na tragicomédia em três atos: Histórias de Amor. A montagem deste trabalho foi criada pelo grupo, com qualidade artesanal, por assim dizer, pois a cena traduzindo um trabalho artístico que busca dimensões lúdicas, exageradas com expressão e estética voltadas para o Teatro de Rua. Onde tudo se propõe a ser comunicante principalmente o contato entre o ator e o espectador.

Mas, vamos retroceder um pouco para observar como surgiu este primeiro espetáculo. Voltamos para o ano 1995 os integrantes do grupo iniciavam a experiência de utilização das pernas-de-pau, e este jogo lúdico gerou um importante elo para as relações dos integrantes e o fortalecimento do coletivo. Os integrantes reuniam-se diariamente para treinar, porém, como não tinham um espaço próprio para realizar os encontros, vestiam as pernas-de- pau, na casa de Márcio Machado e Guiguí Fernandes, e o treinamento era feito no mato, nos arredores de sua residência no alto do morro Petrópolis na cidade de Lages. Este fato gerou também as primeiras relações do grupo com a comunidade onde exercitavam seu treinamento, como podemos perceber no relato de Márcio:

Andávamos aqui dentro do bairro, porque a gente vestia as pernas aqui dentro de casa, nós estávamos sem espaço para ensaiar então, treinava, ensaiava aqui em casa. Então essa coisa de ensaiar, construir as pernas aqui acabava criando um

envolvimento com a comunidade. As pessoas passavam por aqui e paravam. Teve um dia que nós embuchamos umas madeiras dentro dos alumínios, depois ficou muito pesado e nós tivemos que tirar tudo que fizemos, nós ficávamos lá na frente, tentando tirar, parava gente. Teve um dia que tinha umas cinco ou seis pessoas que não tinham nada a ver lá, todo mundo ajudando. Mesmo o material cênico que nós íamos fazendo, as pessoas paravam para ver, perguntavam. E se criou uma coisa no bairro, todo mundo que passava, passava de olho nessa casa para saber o que se estava produzindo.26

O treinamento com as pernas-de-pau acontecia de modo intenso. Passavam tardes inteiras sobre elas, trabalhavam intensamente o corpo, e questões como vetorização, equilíbrio, desequilíbrio e outros princípios de trabalho prático de atuação que foram descobrindo e passaram a ser determinantes em seu trabalho.

Então no ano de 1995, o grupo participou com as pernas-de-pau, de um desfile de carnaval em uma escola de samba da cidade. Até este momento o treinamento com as pernas-de-pau ainda não estava vinculado diretamente com um espetáculo, pois o grupo estava aos poucos descobrindo além de suas potencialidades físicas, quê tema iriam tratar. Este desfile de carnaval serviu como uma vitrine do trabalho que o grupo vinha realizando e não demorou a surgir o primeiro convite oficial, por meio da Fundação Cultural de Lages e da Secretaria de Turismo para uma apresentação do grupo na Festa do Pinhão (evento que envolve grande parte da população local, e que traz para a cidade uma boa quantidade de turistas). Ao receber o convite, o grupo ainda não tinha um espetáculo estruturado, a não ser a performance de Lilith, mas não era mais o que o que gostariam de mostrar. Neste ínterim iniciou-se o processo de busca de temas que fossem pertinentes aos anseios do grupo, de trabalhar com algo que fosse próximo da realidade do próprio grupo e da comunidade que estavam inseridos, no caso a população da cidade de Lages, as lendas, os costumes e as crenças desta cidade.

Todas as idéias que vinham sendo debatidas dentro do grupo, sobre relação com o público, criação coletiva, utilização de pernas-de-pau, interação, somaram-se ao fato de todos os integrantes do grupo serem da cidade de

Lages, o que resultou no desejo de montar um espetáculo que tratasse destas raízes. Como coloca Márcio:

Nós éramos aqui de Lages, essa questão da cultura popular, da tradição oral era algo muito presente, era algo que todos gostávamos muito e achávamos que poderíamos pesquisar e que seria muito interessante pesquisar isto. Porque trabalharíamos com a raiz. Porque a impressão que você tinha quando ia para festivais fora daqui era voltar com vontade de montar um espetáculo, sabe, com sotaque nordestino, falando assim, fazendo repente. E aí a gente pensou que fazer isso era ridículo. Daí que tivemos a idéia de trabalhar com a nossa cultura popular. Mas o quê nós tínhamos? Lá está tudo tão à mão, os versos, os cantos, a dança... Mas o que é nosso? Tivemos que nos voltar pra cá, para ver o quê nós temos aqui. Por que de repente é diferente, é outro povo. Dentro do mesmo país, falando a mesma língua... Aí começou a coisa andar e foi se criando, foi se construindo e montamos Histórias de Amor.27

27 Márcio Machado entrevista Op. Cit.

Imagem no 9 – Cena do espetáculo Histórias de Amor. Na cena estão Guguí Fernandes, Márcio Machado e Robson Andrade. Jaraguá do Sul, 1999. Acervo do grupo.

Imagem no 10 – Cena de Histórias de Amor. Gilson Máximo de Oliveira e Márcio. Tubarão / SC 2002. Acervo do grupo.

Imagem no11 – Cena do espetáculo Histórias de Amor. Na imagem percebe-se o momento inicial da apresentação, quando os atores sobem nas pernas – de – pau com o auxílio do público. Em cena: Guiguí Fernandes, Márcio Machado e Robson Andrade. Concórdia/ SC, 1999.Acervo do grupo.

As imagens acima, do espetáculo Histórias de Amor, demonstram pontos interessantes em relação à atuação do grupo no espaço da rua. Primeiramente podemos analisar a relação com o público. Na primeira imagem, onde vemos três personagens em cena, o público está extremamente próximo à cena, o círculo é quase fechado, com muitas pessoas em pé. Já na 2° e 3° imagens, podemos observar o desenho do círculo bem mais definido, mais aberto, com pessoas de pé ou sentadas em torno da cena.

No livro Pedagogia do Teatro e o Teatro de Rua (2008), de Narciso Teles é citado a tese de Doutoramento de Lídia Kosovski, onde esta autora investiga possíveis relações entre cena teatral e espaço urbano. São destacadas três formas de ação com o lugar, de acordo com Kosovski, que são: praticar, encontrar e consagrar. O lugar consagrado, segundo a autora, é aquele que pela presença de uma ação, identifica-o como “forte” ou se “tornado forte” por códigos de conduta e tradições que determinam as ações sobre o lugar. O ato de organizar uma roda para uma apresentação gera no espaço uma função de consagração, por exemplo. (2008:14). Com base nesta colocação, podemos concluir que o Menestrel executa uma ação de consagração com o lugar, com o espetáculo Histórias de Amor. Podemos

refletir também, através das imagens, a respeito da interpretação dos atores do Menestrel. Na primeira imagem os atores desenham ações com gestos amplos no espaço, o que demonstra um grande domínio corporal, visto que os atores estão sobre altas pernas de pau e em meio a um circulo tão fechado de espectadores.

Na segunda imagem, mais uma vez é possível perceber o jogo direto com a platéia, quando pessoas do público auxiliam o ator a erguer- se sobre a perna de pau. E na terceira imagem, constatamos a presença de movimentos grandes e vigorosos sobre as pernas de pau. O gestual observado nesta imagem sugere quase uma dança – mostrando grande domínio corporal e do instrumento da perna de pau. O que demonstra que o treinamento criado e executado pelos próprios atores do grupo é eficaz no sentido de que produz resultados interessantes no que diz respeito à pesquisa sobre a relação ator e público no espaço da rua.

As pernas de pau utilizadas são muito altas e os movimentos corporais muito explorados. A força deste espetáculo está centrada no trabalho físico dos atores e nas inúmeras possibilidades de interação com a platéia. É possível perceber também, uma evolução no instrumento perna de pau, que inicialmente foi construída de madeira, o que a deixava demasiadamente pesada. Nas imagens podemos ver o emprego do alumínio nas pernas de pau, descoberta que resulta também da pesquisa realizada pelo grupo focada no aprimoramento da linguagem de rua e dos materiais cênicos utilizados.

Histórias de Amor veio ao público pela primeira vez em 1997 na Festa Nacional do Pinhão. A experiência de levar para o público tudo que vinham experimentando no treinamento foi bastante rica. Os atores puderam experimentar na prática o que até então fazia parte apenas de uma esfera de discussão e reflexão interna. A relação com o público foi testada pela primeira vez,

[...] tudo que a gente fez no treinamento, toda a relação com as pessoas, porque você andava na festa, impossível não ser percebido, as pessoas te paravam ou tentavam te ignorar. Então, esse contato de conversar com as pessoas lá de cima da perna... Começamos a estabelecer essa relação com o

público, de olhar no olhar, de ser uma conversa a três pessoas, você, o outro personagem e a outra pessoa é o público.28

Com este trabalho o grupo conquistou diversos prêmios já no primeiro festival do qual participou, o V Festival Nacional de Teatro Isnard Azevedo, em Florianópolis, 1997: melhor espetáculo na categoria teatro de rua, melhor direção – Marcio Machado, melhor atriz – Guigui Fernandes e melhor ator – Sérgio Gregório. Além de outros prêmios como melhor figurino e melhor conjunto de atores no XXV FETEL – Festival Nacional de Teatro de Lages, Lages/SC, 1999, no XVI Festival Universitário de Teatro de Blumenau – melhor espetáculo da Mostra Paschoal Carlos Magno, Júri Popular, Blumenau/SC, 2002.

Com a montagem de Histórias de Amor o grupo definiu sua linha temática, utilizando-se da linguagem mais pura e simples do povo da região serrana catarinense, contando uma história universal. O Menestrel faz, portanto, um caminho similar ao do grupo Gralha Azul na década de 1970.

Algumas semelhanças entre as práticas do Gralha Azul e do Menestrel Faze-dô são notórias no fazer teatral destes dois coletivos, como podemos ver em depoimento de Márcio Machado, quando perguntado sobre a influência do Gralha Azul no trabalho do Menestrel:

Foi pela relação que eles mantiveram com a cidade, pela qualidade artística, pela reunião de artistas, de pessoas valorosas, que depois quando nós as encontramos... Nós não conseguimos assistir espetáculos, mas nós as encontramos e elas puderam nos dizer como que acontecia, de que forma era o processo criativo deles e de relação com a comunidade. A primeira vez que nós fomos para a rua, as pessoas mais velhas, que ficam ali no calçadão, perguntavam se nós éramos do Gralha Azul. O Gralha Azul já tinha acabado fazia mais de dez anos. No Estado mesmo, várias cidades que nós fomos apresentar, as pessoas vêem o espetáculo e vem perguntar se nós conhecemos...que tal pessoa, onde é que está...porque eles estiveram lá, eles desenvolveram trabalhos em várias cidades doestado.29

28 Márcio Machado, entrevista Op. Cit. 29 Márcio Machado, entrevista Op. Cit.

É bastante interessante o que Márcio ressalta em seu depoimento, a memória do público ocasional/acidental com relação ao coletivo anterior, ou seja, o grupo Gralha Azul marcou a região serrana com seu trabalho estético e sua prática de teatro de animação, tanto que um trabalho similar – utilização de bonecos gigantes – despertou na memória local do público daquele grupo uma revisitação àqueles espetáculos apresentados. Com isso podemos pensar que um espetáculo só vai deixar de existir potencialmente quando o público que o vivenciou também deixar de existir. Depois disso só teremos registros e vestígios passíveis de serem recuperados em outras vias, tais como periódicos, gravações, etc.

Porém as diferenças entre os dois grupos também se tornam bastante claras, quando Márcio coloca que:

Existem referências boas e referências ruins. Referências a não serem seguidas e outras a serem seguidas. Por exemplo, a questão com o poder público, de ter sido um grupo atrelado ao poder público, eu acho que é uma referência a não ser seguida. A gente pensou que teria até que tentar procurar formas de ser, mais independente possível, tanto para você ter liberdade de expressão e para você ter visão de onde você vai chegar. Porque se você se atrela ao poder público, ele funciona de quatro em quatro anos e sempre tem interesses. Sempre existe toda uma burocracia, uma demora. E todas as vezes que a gente trabalhou com o poder público, sempre foi assim, muito entruncado.

Nosso trabalho vai, além disso, na verdade, vai até quando nós morrermos. Nós não temos um plano, nós temos planos assim, de em dez em dez anos estar reavaliando como é que está caminhando. Mas isso é algo que está se construindo. Não vai parar daqui a pouco. E o poder público, ele dá um fim, ele dá uma pausa. Muitas coisas que nós pensamos em 1993, ainda são nossas metas até agora. E vão continuar sendo.30

À parte a relação com o poder público, que é a diferença mais marcante na atuação destes dois coletivos, a semelhança na abordagem temática, na questão popular, na utilização de recursos como o boneco para potencializar o trabalho do ator na rua, são pontos comuns que podemos identificar na trajetória destes grupos em relação à atuação do ator no teatro de rua.

30 Idem