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CAPÍTULO III AS TROCAS E OS ENCONTROS NO ESPAÇO DA RUA

3.2 A teatralidade e o espaço da rua

O século XX pode ser considerado como um marco, no teatro ocidental, pela retomada das ruas como espaço para a representação. Este retorno pode ser visto sob três perspectivas: a simbólica, que passa pela negação da relação sedentária entre os participantes do evento teatral; a estética, no sentido da busca de um amadurecimento e reflexão do pensamento artístico; e na perspectiva política, que se refere à fuga da privatização burguesa da arte teatral. Estes três aspectos estão interligados com o conceito de teatralidade, que será explorado neste subitem deste capítulo.

O teatro de rua é uma arte que abarca um grande campo de possibilidades. A da rua como espaço de representação, remonta a história do próprio teatro, o que sublinha o fato de quê o edifício teatral como único lugar apropriado para o teatro é algo datado, século IV a.C. para o teatro ocidental, e desviante da própria essência da prática cênica.

Neste item vou trabalhar, mais especificamente, com o conceito de teatralidade, e procurar imbricar este conceito com o espetáculo do teatro de rua. Colocar a questão da produção da teatralidade. Se não é algo dado, se as coisas não são naturalmente teatrais, se elas se fazem teatrais, então quem é o responsável por isso? (FÉRAL, 2003:15). Este questionamento trazido por Josétte Feral38 constitui a base teórica fundamental, utilizada nesta parte do

trabalho. A autora explora o termo teatralidade, procurando abrir a discussão sobre a conceituação do mesmo. De sua obra Acerca de La teatralidad, foram pinçados alguns elementos que denomino como focalizadores de teatralidade. A partir de tais elementos, que são considerados pela autora possíveis elementos geradores de teatralidade, desenvolvo uma análise da teatralidade na prática dos grupos aqui estudados.

Os elementos utilizados para embasar esta reflexão são: 1. Metamorfose;

2. Identificação com o público; 3. Jogo direto com a platéia; 4. Teatralidade dos objetos.

Tanto no trabalho do grupo Gralha Azul quanto na prática do Menestrel Faze-dô é possível identificar estes quatro elementos, encontrar tais focalizadores de teatralidade. Vou apresentá-los, conceitualmente e no empírico, na ordem acima colocada. De acordo com Féral:

Seria interessante ver se os elementos sobre os quais nos concentramos quando estamos analisando a teatralidade no teatro são os mesmo que observamos quando analisamos a teatralidade na vida cotidiana. Quando designamos algo como teatral, é um juízo, é o resultado de um processo interior, pelo qual reconhecemos certas características que nos são ditas

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Josette Fèral é professora do Departamento de Teatro na Universidade de Québec, em Montreal. Pesquisa o conceito de teatralidade. É autora de diversos livros e artigos sobre teoria teatral e teatralidade. O livro Acerca de La teatralidad, utilizado aqui é resultado de um seminário proferido pela autora na Universidade de Buenos Aires, em agosto de 2001. O seminário destinou-se a tratar especificamente do conceito de teatralidade, procurando delimitar uma definição para o termo.

teatrais. É a maneira em que nossa própria categoria de teatralidade funciona. (2003: 14)

Parto então, destes quatro pontos focalizadores, que elegi como pontos presentes na prática dos grupos e que permitem a discussão sobre teatralidade neste contexto. Inicio pela metamorfose. A metamorfose pode ser identificada em ambos os coletivos. E é, a meu ver, uma característica geradora de teatralidade, tanto no teatro como na vida cotidiana. Mas, o que vem a ser metamorfose? E como ela ocorre? Pode-se pontuar que ocorrem algumas transformações – metamorfoses – que viabilizam a realização do ato teatral, aqui destaco quatro pontos centrais:

1. Metamorfose de pessoas comuns em atores;

2. Metamorfose de transeuntes em espectadores/participantes;

3. Metamorfose do espaço, de rua/praça/esquina em local da ação cênica; 4. Metamorfose do tempo que se transporta para o tempo cênico.

A primeira metamorfose se dá no momento em que o grupo formado por “pessoas”, chega numa determinada rua/praça/esquina etc., para a apresentação de seu espetáculo. Estas pessoas vão se transformando em atores, em público, se destacando ou se distinguindo do ato cotidiano de estar num local público, seja pela colocação de adereços, seja pela organização do espaço, seja pela musicalidade que vai surgindo, e uma série de outros indícios que apontam para os transeuntes, mostrando que aquelas pessoas estão se transformando, deixando de ser transeunte/pessoas para ser transformar em um coletivo que tem algo a mostrar a dizer, a trocar.

A chegada do grupo ao espaço representacional é o momento de sua metamorfose para os transeuntes. No teatro de rua este momento quase sempre constitui a convocação para que os transeuntes também se transformem, em público/participante deste ato teatral. Pede-se, neste momento, a metamorfose dos transeuntes, pede-se que ele deixe de ser um ser anônimo e se transforme num participante de um ato coletivo. Realizadas estas duas metamorfoses centrais para que o ato teatral possa ser produzido, o desenvolvimento da ação fará com que as duas outras metamorfoses se

procedam e sejam aceitas como parte da realidade criada para o imaginário da cena.

Para Féral (2003), se o espaço potencial do ator e o do espectador não é encontrado, se não se reconhecem, não há teatro. Esta colocação nos leva ao segundo elemento focalizador de teatralidade, que também pode ser percebido no trabalho dos dois coletivos estudados nesta dissertação, que é a identificação com o público.

A identificação com o público foi explicitado nos depoimentos dos espectadores da apresentação de Bulhas dos Assombros, nas falas anteriormente citadas. A questão da identificação com o público pode também ser percebida, no caso dos grupos aqui estudados, como sendo um dos estímulos utilizados por estes coletivos na construção dramatúrgica dos espetáculos. Por se inspirarem na cultura da região, e utilizarem o próprio imaginário serrano na construção dos trabalhos, possibilitam a existência de uma recepção que se identifica como integrante da mesma região, ou identificados pelos demais como sendo um grupo daquela região.

Portanto, este mergulhar dramatúrgico nos mitos serranos, possibilita a criação de uma identidade com o coletivo, o público da região serrana, e/ou ainda a identificação pela qual o grupo se torna reconhecido ou conhecido. Mas, o trabalho cênico não fica restrito apenas a uma identificação regional ou de seus mitos fundantes. Estes mesmos elementos podem ser vistos por outros públicos/participantes e “baterem” em outros registros identitários, inclusive o de pertencer a um coletivo humano e social. Só assim, o trabalho teatral pode ser realizado para diferentes públicos, e em diferentes tempos e espaços.

Desejo ressaltar que o teatro de rua é uma experiência teatral, que por si, já estimula este processo de identificação com o público. Uma vez que o ato ocorre em um espaço que é por natureza um espaço democrático, público e propício ao jogo.

Imagem n° 18 - Apresentação do espetáculo Bulha dos Assombros na cidade de Santo Amaro da Imperatriz, no ano de 2007. Na foto pode-se ver o boneco do velho coronel, manipulado pelo ator Gilmar Costa e a participação direta da platéia. Acervo do Grupo.

E é justamente este jogo com a platéia, o jogo direto com a platéia, que define o terceiro elemento focalizador de teatralidade. De acordo com Féral (2003), a teatralidade é um processo que tem a ver com o olhar, e o que faz o espectador é identificar, reconhecer, criar este espaço potencial no qual se encontra a teatralidade. O jogo direto com a platéia é um elemento que pode ser detectado na maioria das experiências teatrais que ocorrem no espaço da rua. Pois, como já citado, a rua é naturalmente o local do jogo, das interferências, dos fluxos e dos diálogos. Deste modo, o jogo direto com a platéia é algo de essencial para a conformação do espaço virtual onde da realidade expandida e compartilhada pode emergir em teatralidade.

Por fim, observo que o grupo Gralha Azul e o grupo Menestrel Faze - dô utilizaram bonecos, e construíram uma linguagem própria de bonecos para o

teatro de rua. Féral nos aponta a possibilidade de uma teatralidade dos objetos quando reflete:

Quando debatemos a questão da teatralidade, em que nos concentramos? Concentramos-nos basicamente nos corpos que portam essa teatralidade, nos concentramos na materialidade, na relação com o espaço, com o tempo. Concentramos-nos na decodificação de signos. (2003:14)

Imagem n° 19 - Grupo Menestrel Faze – dô, e uma de suas formações: Guguí Fernandes, Márcio Machado e Gilson Máximo e os bonecos do espetáculo Bulha dos Assombros. Acervo do G

A autora questiona ainda: a teatralidade trata somente dos seres humanos? Se pode falar na teatralidade dos objetos? (FÉRAL, 2003:14). A meu ver, a teatralidade dos objetos, como sugere Féral, é identificável como focalizador de teatralidade no trabalho destes dois coletivos, sendo que este é

um dos pontos fortes nas estéticas de ambos os coletivos. Os bonecos, na rua, imediatamente despertam o público receptor e delimitam o espaço para o ficcional. É do jogo de faz de conta, das fricções entre realidade e ficção que se estabelece o próprio evento do teatro e de onde emerge a teatralidade de um acontecimento.

Mas afinal, o que é exatamente teatralidade? Como defini-la? Como reconhecê-la? A primeira metade do século XX foi marcada pelos renovadores da cena teatral, período dos encenadores modernos onde o modelo europeu de espaço teatral (caracterizado pela relação frontal, com o desnível espacial entre atores e platéia) passou a ser questionado. O edifício teatral enquanto único suporte destinado para a realização teatral passa a ser algo discutível. Como coloca Féral (2003) o teatro, assim como as outras artes, foi levado no século XX, a reconsiderar suas certezas. Neste contexto, podemos dizer que ocorre uma retomada das ruas como espaço para a prática teatral.

Um dos primeiros registros da palavra teatralidade data de 1842, localizada no dicionário francês Petit Robert. (MOSTAÇO, 2006). No contexto teatral, o termo teatralnost foi enunciado pelo encenador russo Nicolás Evreinov (1879-1953), em 1908. Evreinov foi um artista inquieto e ousado. Sua montagem mais experimental foi A Tomada do Palácio de Inverno, realizada em 1920, ao ar livre, representada por aproximadamente 15 mil intérpretes. Evreinov utilizou as fachadas arquitetônicas de monumentos históricos para um espetáculo monumental realizado em espaço aberto. O termo teatralnost para Evreinov estaria associado às diversas instâncias do espetáculo e definido como o jogo daqueles que participam da ação e instauram no espetáculo a teatralidade.

No início de século XX, outros estudiosos e fazedores de teatro abordaram o termo teatralidade. Porém para cada um deles o termo recebia diferentes conotações. Stanislavski, por exemplo, utilizava o termo para designar o desempenho dos atores em sentido pejorativo. Uma vez que acreditava ser a representação algo que devesse se aproximar do real, a teatralidade seria aqui entendida como falso, artificial ou sem controle. Já para Meyerhold, o termo é constituído de outro sentido, que dialoga com suas proposições de um “teatro teatral”, onde a teatralidade nada mais é, que o

próprio teatral, o construído. Neste caso a teatralidade significa uma virtude artística.

A utilização de espaços diferentes do edifício teatral e de toda sua convenção traz para o teatro questionamentos a respeito de qual é ou quais são as funções da existência do teatro na vida social da cidade e literalmente, quê espaço o teatro deve ou pode ocupar? Quais são suas especificidades? Qual a teatralidade ou as teatralidades do espetáculo de rua?

A prática cênica que assume a rua como espaço teatral pensa o teatro como uma experiência viva, dinâmica. Uma experiência que não conta com proteções, nem da quarta parede, nem da distância para com os espectadores. Ao contrário, o teatro de rua é uma experiência que trabalha com o risco, com o jogo direto entre o teatral e a vida “real” da cidade. Constitui um evento de interferência e de troca, através da comunicação direta entre a linguagem teatral (ficcional) e o público da cidade (espaço do real).

Na historiografia das artes cênicas, a partir dos reformadores teatrais do século XX, é possível destacar notáveis artistas que se ocuparam em refletir através de sua arte o espaço do teatro na vida cotidiana e a relação deste com o público. Artaud, por exemplo, sonhava transcender o caráter fixo da relação espacial entre público e atores. Grotowski, do mesmo modo, procurou renovar a relação cena-publico. Assim, podemos perceber que os esforços para delinear a noção de teatralidade, isto seja, definir as especificidades da linguagem teatral, surgem provocados por preocupações relativamente recentes. Tais reflexões e a busca da delimitação deste termo estão ligadas às diversas tentativas de pensar os fundamentos de uma teoria e de uma prática do teatro. Hoje, podemos perceber que o termo teatralidade abarca uma série de eventos, sejam teatrais ou cotidianos

Na medida em que surgem novas abordagens, o termo teatralidade também recebe novas concepções, passando a abarcar questões que excedem o texto dramático e dizem respeito ao que é teatral, no sentido da ação e da cena. Os textos teóricos que abordam a questão da teatralidade vão se separando da noção de texto para repousar sobre a representação em si. O conceito de teatralidade se amplia, o suficiente, para despertar o estudo em diferentes disciplinas, podendo também ser utilizado em vários campos artísticos e não artísticos. Portanto, a teatralidade pode ser detectada em

rituais religiosos, no carnaval, nos esportes, em um desfile de moda, em eventos políticos, etc.

Neste marco da dissertação, procuramos aplicar o termo teatralidade ao teatro de rua, através de uma análise dos pontos focalizadores de teatralidade no trabalho dos dois coletivos estudados. A exploração deste termo nos permite refletir tanto acerca da produção como da recepção do teatro. Uma vez que teatralidade é um conceito que se aplica tanto no produto final, o espetáculo em si, e sua relação com o espectador, quanto no processo de construção da obra. Portanto, trata-se de um conceito rico e que nos permite discutir o teatro em diferentes estágios.

No final do século XIX, quando o texto passa a perder seu status dentro da arte teatral o teatro procura definir sua própria especificidade, distanciando- se do território da literatura. A re-teatralização do teatro, no século XX, trazida especialmente por Brecht e Meyerhold, procurou identificar critérios claros, mediante os quais o teatro pudesse ser distinguido de outras formas de arte. O texto, que por muito tempo determinou a cena e a treatralidade, foi perdendo espaço, e neste processo a representação foi se convertendo em um processo de construção de sentido.

3.3 AS ESTÉTICAS DOS COLETIVOS LAGEANOS – AS TROCAS E OS