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2.2 A LINGUÍSTICA TEXTUAL E A ARGUMENTAÇÃO

2.2.2 Argumentação e referenciação

O processo de referenciação é uma atividade discursiva (escrita e fala) e apresenta os seguintes aspectos:

 a referência diz respeito a algo, alguém, fatos, eventos, sentimentos;

 a manutenção em foco dos referentes introduzidos por meio da operação de retomada;

a desfocalização dos referentes introduzidos para deixá-los em standby, para que outros referentes sejam introduzidos no discurso.

É interessante observar a progressão referencial nos textos de opinião porque esse processo apresenta-se de várias formas e com diferentes intenções por parte do produtor. Os referentes são retomados mais adiante ou servem para a introdução de novos referentes, ou como afirmam Koch e Elias (2006, p. 164): A progressão referencial consiste na construção e reconstrução dos objetos de discurso, ou seja, os referentes não espelham diretamente o mundo real, mas atuam no interior do próprio discurso de acordo com nossos óculos sociais.

Considerar que os objetos de discurso não estabelecem uma relação de correspondência com a realidade e que a referência não seria apenas uma questão de

24 PERELMAN, Chaim. Le champ de l argumentation. Bruxelas: Presses Universitaires de

convencionalidade linguística possibilita tratar o léxico como um conjunto de recursos para o processo de referenciação, e não como um conjunto de etiquetas sempre prontas, fixas e estanques. Por essa razão, Apothéloz e Reichler-Béguelin entendem que seu emprego está submetido a um conjunto de dispositivos extremamente maleáveis e contextualmente trabalhados no e pelo discurso, sendo esta seleção uma operação necessariamente contextualizada.

Para Mondada e Dubois, a instabilidade das formas de referência, ou dos próprios objetos de discurso, pela recategorização, depende muito mais da multiplicidade de pontos de vista que os sujeitos exercem sobre o mundo, do que de um contrato pela materialidade do mundo. Aquilo que é dito estável sobre um objeto pode ser descategorizado, recategorizado sob efeito de uma mudança de contexto ou de ponto de vista, como postulam Mondada e Dubois:

Uma categoria lexical impõe um ponto de vista, um domínio semântico de referência, que concorre com outras sugeridas, produzindo sentido pelo contraste que estabelece com as anteriores. O discurso marca explicitamente a não correspondência entre palavras e coisas, e a referenciação emerge dessa distância da demonstração de inadequação de categorias lexicais disponíveis – a melhor adequação é construída no seio da transformação discursiva. (MONDADA; DUBOIS, 1995, p. 286).

Se a ideia de lidar com o léxico no processo de referenciação implica numa atividade seletiva que tem como motivador um projeto de sentido, revelador de um ponto de vista, então é possível relacionar referenciação e argumentação.

Assim, o processamento da argumentação, orientado por uma vontade de dizer e fazer sentido, pode ser arquitetado pelo encadeamento referencial. A construção, o desenvolvimento e o modo de apresentação dos referentes evidenciam um trabalho sobre o conteúdo do discurso, inserindo o sujeito produtor de texto nessa prática discursiva. Ainda que a inserção do sujeito no processo de referenciação não seja uma preocupação de Apothéloz e Reichler-Béguelin, os autores apontam para tal questão, ao afirmarem que as designações não podem ser feitas independentemente da instância que as toma sob sua responsabilidade (que assume posição).

Nessa medida, entendo que relacionar referenciação e argumentação é preocupar- se com a instância que toma responsabilidade sobre o modo de apresentação do objeto de discurso e que testemunha vozes diferentes com as quais dialoga para o processamento de argumentação. Assim, a preocupação não é apenas com a introdução,

articulação do objeto de discurso para coesão e condução tópica, mas também com o modo de apresentação do objeto pelas expressões nominais, que é indicador de um centro de perspectivas, de um ponto de vista orientador da interpretação, a partir do qual se constroem os argumentos, como foi demonstrado em algumas análises de textos do corpus.

Tratar da argumentação como atividade fundamental no uso da língua permite abordá-la não apenas pela ênfase nos recursos linguísticos, mas também nas relações estabelecidas entre os objetos de discurso, pelo modo como o produtor do texto seleciona e organiza esses objetos para a construção de um ponto de vista e orientação interpretativa. Essa orientação escapa ao próprio produtor, uma vez que a argumentação é esboçada num quadro não solitário de orientações interpretativas, que evidenciam o caráter interlocutivo dessa atividade.

De acordo com Koch,

[...] a realidade é construída, mantida e alterada não somente pela forma como nomeamos o mundo, mas acima de tudo pela forma como sócio- cognitivamente, interagimos com ele: interpretamos e construímos nossos mundos através da interação com o entorno físico, social e cultural. (KOCH, 2002, p. 79).

Segundo a mesma autora, a progressão textual não se dá numa continuidade linear, como se o texto fosse processado numa soma progressiva de partes, mas numa oscilação entre dois movimentos: um para frente e outro para trás, que em parte são representados pela catáfora e anáfora.

O encadeamento dos referentes para o processamento textual, como mostram os trabalhos de Marcuschi e Koch (1998), é feito por diferentes estratégias de referenciação, nominais e pronominais, que variam de acordo com a relação estabelecida entre o que é referido e o referente. As expressões nominais operam uma seleção dentre as diversas propriedades do referente, que é importante para viabilizar o projeto de sentido do produtor do texto. É que essa estratégia desempenha um papel importante para a construção do ponto de vista num texto argumentativo, testemunhando, através da seleção lexical, uma instância discursiva, ou centro de perspectiva, a partir do qual os fatos vão fazer sentido, por serem arquitetados pelo encadeamento referencial. A construção, o desenvolvimento e o modo de apresentação dos referentes evidenciam um trabalho sobre o conteúdo do discurso, inserindo o sujeito produtor do texto nessa prática discursiva.

Dessa forma, entendo que relacionar referenciação e argumentação é preocupar-se com a instância que toma responsabilidade sobre o modo de apresentação dos objetos do discurso, e que testemunha vozes diferentes com as quais dialoga para o processamento da argumentação.