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4.2 Argumentos contrários aos delitos fiscais como antecedentes da lavagem

4.2.3 Argumento político-criminal

Antes de passar à discussão do principal argumento contrário à inclusão dos delitos fiscais dentre as infrações penais subjacentes à lavagem de dinheiro, cabe ainda apreciar o que Blanco Cordero (2012, p. 410-411) denomina de “argumento político-criminal”.

Esse tema é tratado de maneira mais aprofundada por Gómez Benítez (2007, p. 15-18, tradução nossa), que assim expõe o seu entendimento:

A voracidade fiscal dos estados desenvolvidos, especialmente dos europeus, impôs um deslizamento paulatino e perverso do delito de branqueamento desde seu sentido originário estrito, quer dizer, desde a pretensão de perseguir penalmente a legitimação de bens procedentes de determinadas atividades delitivas – o narcotráfico, a corrupção e o crime organizado, sobretudo – até a de servir como instrumento de controle e arrecadação fiscal. Ao amparo da paulatina ampliação dos delitos base – os que originam os bens objeto das condutas de blanqueo – na legislação internacional, chegou-se ao ponto de admitir que basta para cometer o delito de lavagem de dinheiro que os bens procedam de qualquer delito – que não tem que ser sequer grave -, tal como prevê o vigente artigo 301 do Código penal espanhol, e, ademais, que não é necessário que os bens procedam de uma atividade delitiva prévia que se comporte como a causa ou fonte de sua obtenção, mas que basta que estes não tenham sido objeto da tributação correspondente para poder já submetê-los ao regime penal da lavagem de dinheiro.

Esta forma de entender o delito é político-criminalmente incoerente e tecnicamente inconsistente, pois, como veremos, não apenas ignora a razão político-criminal de ser destes delitos e criminaliza uma grande parte da população, confirmando, assim, por certo, a ineficácia preventiva destes tipos penais, mas que, ademais, baseia-se em uma interpretação contra legem da exigência típica de que os bens objeto da lavagem tenham uma origem delitiva.

Quanto à razão político-criminal de ser da lavagem de dinheiro, Gómez Benítez (2007, p. 5-8, tradução nossa, grifo do autor) destaca dois aspectos principais: o primeiro consistiria na sua utilidade para o combate e a prevenção da prática dos delitos prévios, dos quais se originam os bens objeto da lavagem; já o segundo, na “proteção das ‘bases econômicas,

culturais e políticas da sociedade’, tal como consta na Convenção de Viena contra o

narcotráfico de 1988”.

A respeito do primeiro aspecto, entende o autor que tal orientação leva a uma excessiva simplificação do problema da lavagem de dinheiro, que, assim, cumpriria apenas “a função de assegurar ou aperfeiçoar as técnicas para a aplicação e execução das penas, consequências civis e acessórias correspondentes aos delitos de que se originam os bens”, o que seria insuficiente para explicar a autonomia do delito em relação ao que lhe é antecedente, e, ainda, a punição da lavagem por quem houver participado da infração penal subjacente (GÓMEZ BENÍTEZ, 2007, p. 6-7, tradução nossa).

Já o outro aspecto político-criminal destacado por Gómez Benítez (2007, p. 7-8) teria em conta que a lavagem de dinheiro é uma forma de enriquecimento ilícito e de acessar o poder político que deve ser evitada, não importando se o seu autor é o mesmo do delito prévio ou um terceiro, pondo, assim, a distância necessária entre os tipos de lavagem e as infrações penais antecedentes.

Todavia, essa segunda orientação político-criminal, prossegue Gómez Benítez (2007, p. 8, tradução nossa), mesmo tendo um ponto de partida correto, é a causa do que ele chama de “perversões legais e interpretativas, que não apenas conduziram a uma aplicação abusiva dos tipos de lavagem, mas que, ademais e paradoxalmente, subtraíram eficácia aos tipos penais em relação ao seu autêntico e originário interesse político-criminal”.

A ampliação dos delitos base para qualquer delito, mesmo que não seja grave, até alcançar a fraude fiscal é considerada “[a] primeira perversão desta ideia político-criminal” (GÓMEZ BENÍTEZ, 2007, p. 8, tradução nossa)233.

Também Dopico Gómez-Aller (2010, tradução nossa, grifo do autor) chama a atenção para o que identifica como uma “crassa confusão entre as funções político-criminais da

figura da lavagem e do confisco de bens”, que teriam significado e mecânica radicalmente

distintos, e, ainda, para a desnaturação e tendência à inutilidade do delito de lavagem, dada a

233 A “segunda perversão”, que não é objeto deste trabalho, diz respeito à “perda dos contornos seguros do elemento típico consistente em que o autor atue com conhecimento de que os bens objeto da lavagem têm sua origem em um delito” (GÓMEZ BENÍTEZ, 2007, p. 8, tradução nossa).

“mescla do menos grave com o mais grave”, o que o leva a concluir: “Se tudo é blanqueo, nada é blanqueo”.

Blanco Cordero (2012, p. 438, tradução nossa) igualmente concorda que o desprestígio da figura delitiva da lavagem de dinheiro pode acabar sendo uma consequência da “expansão sem precedentes de seu raio de ação”, a requerer a imposição de limites pelo Tribunal Constitucional. O mencionado autor chama a atenção especialmente para o fato de que tal expansão possui “uma clara intenção dirigida a proporcionar às autoridades um instrumento de luta contra o delito, facilitando enormemente a prova do mesmo”, permitindo, ademais, ao juiz de instrução que adote “medidas de investigação [...] e medidas cautelares desde o começo do processo penal, que vão limitar os direitos fundamentais de qualquer que tenha tido contato com possíveis bens de origem delitiva”, podendo, ainda, a lavagem ser utilizada “como uma qualificação alternativa a outros delitos que não possam ser comprovados em todos os seus elementos” (BLANCO CORDERO, 2012, p. 439, tradução nossa).

Como se pode perceber, o denominado “argumento político-criminal” tem muito a ver com a tendência de ampliação do rol de infrações penais prévias à lavagem, tendência essa que, em alguns ordenamentos jurídicos, tem chegado à própria eliminação de qualquer elenco de ilícitos subjacentes, como é o caso da legislação brasileira e da espanhola.

No entanto, tanto faz que se veja a lavagem sob o aspecto do combate e prevenção às infrações prévias ou o da proteção da ordem socioeconômica, ou, mesmo, da soma dessas orientações político-criminais, que, ao fim e ao cabo, definem os bens jurídicos tutelados pela reciclagem de capitais de origem delitiva, o certo é que não há porque limitar a sua aplicação a determinados delitos, como o tráfico de drogas, quando é sabido que muitos outros há que geram expressivos montantes de recursos a demandar sua “legalização” para que possam circular pelo sistema financeiro como se tivessem origem lícita.

Já se falou aqui do caso da contravenção de jogo do bicho no Brasil, atividade criminosa tradicional no país, cujos principais autores sempre puderam circular livremente, patrocinando escolas de samba e clubes de futebol com recursos oriundos de atividade delitiva, tida como menor, mas, capaz de gerar grandes lucros.

O próprio Blanco Cordero (2012, p. 279) acaba por se manifestar favorável à ampliação do círculo de infrações penais prévias a todos os delitos, entendendo ser correta a superação da limitação aos delitos de narcotráfico e aos graves, tendo em vista a existência de outros ilícitos penais que geram grandes benefícios.

Com isso, afirma o autor, evitam-se as brechas que podem resultar da remissão a determinados delitos, que poderia “reorientar a criminalidade organizada até outras atividades

delitivas geradoras de grandes lucros, porém não subsumíveis aos delitos de referência” (BLANCO CORDERO, 2012, p. 279, tradução nossa).

Prosseguindo com Blanco Cordero (2012, p. 279), para este ficariam abarcados como objeto do delito de lavagem todos os bens originados de um fato típico e antijurídico, independente do tipo, da quantidade e do valor dos delitos, bem assim do fato de a sanção do

blanqueo ser superior à correspondente à do ilícito de que procedem os bens.

Voltando aos delitos fiscais, é inegável que implicam a introdução no circuito econômico de cifras astronômicas decorrentes da economia subterrânea, mesmo que se limite o ganho considerado ilícito ao montante dos tributos não pagos, não alcançando a base de cálculo do imposto. Assim, tanto faz que esse lucro ilícito seja proveniente do tráfico de entorpecentes, de contravenções de jogos de azar ou de delitos fiscais, a necessidade de prevenir, investigar e reprimir as atividades delitivas que geram proveitos, bem assim a higidez da ordem econômica, especialmente nos seus aspectos de livre concorrência e tráfico lícito de bens, demandam a punição de condutas que visem a ocultar, dissimular, ou que, efetivamente, ocultem ou dissimulem a proveniência ilícita dos bens gerados por tais infrações penais.

Por outro lado, e especificamente quanto aos delitos fiscais, ao contrário de Gómez Benítez e Dopico Gómez-Aller, Blanco Cordero (2012, p. 439) expressamente os admite como infrações prévias à lavagem de dinheiro.

4.3 Argumento relacionado ao objeto material: o tributo não pago (cota tributária

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