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O dever fundamental de pagar tributos

3.4 O Estado fiscal e o dever fundamental de pagar tributos

3.4.2 O dever fundamental de pagar tributos

Tratando-se, pois, o Estado moderno de um Estado fiscal, conceito aplicável tanto ao Estado português como ao brasileiro, há que se discutir a existência ou não de um dever

fundamental de pagar tributos, ou, dito de outra maneira, se os cidadãos estão obrigados a

contribuir financeiramente para a consecução das obrigações impostas ao Estado nas normas constitucionais.

Pois bem, ao apontar o tema dos deveres fundamentais como “um dos mais esquecidos da doutrina constitucional contemporânea”, Nabais (2012b, 15-16) elenca, dentre as razões para tanto, a “primazia lógica, ontológica, ética e política” que a liberdade individual possui em relação à responsabilidade comunitária.

Outra razão prende-se ao fato de boa parte das Constituições da Europa ocidental terem sido adotadas na sequência de períodos totalitários ou autoritários, em que prevalecia o status

passivus ou status subjectionis do cidadão - como é o caso da Constituição Italiana, de 1947, e

da Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, de 1949, posteriores à Segunda Guerra Mundial, e das Constituições portuguesa, de 1976, e espanhola, de 1978, que vieram após longos períodos ditatoriais164 -, períodos esses sucedidos por outros em que a preocupação preponderante passou a ser “com os direitos fundamentais ou com os limites ao(s) poder(es) em que estes se traduzem”, de maneira que os deveres fundamentais restaram na sombra, levando ao esquecimento da “responsabilidade comunitária que faz dos indivíduos seres simultaneamente livres e responsáveis, ou seja, pessoas” (NABAIS, 2012b, p. 17-18).

Nesse mesmo sentido, Canotilho (2003, p. 531) atribui às experiências históricas do ideário nazi e do comunismo a desconfiança e indiferença demonstradas pelos textos constitucionais em relação aos deveres fundamentais, entendendo, porém, estarem os tempos

164 Também a Constituição brasileira, de 1988, veio em seguida a um período de praticamente 21 anos de ditadura militar, que perdurou de 31 de março de 1964 a 15 de março de 1985.

atualmente mais maduros “para uma reproblematização desta importante categoria jurídica e política”, em cujo cerne reside a ideia de “responsabilidade comunitária dos indivíduos, conceito instrumental que tende não a valorização do Estado, mas do próprio ser enquanto ente de relação, detentor de direitos e deveres perante seus pares” (FELDENS, 2005, p. 205), levando à rejeição tanto dos “extremismos de um liberalismo que só conhece direitos e esquece a responsabilidade comunitária dos indivíduos” como do “comunitarismo que dissolve a liberdade individual numa teia de deveres” (NABAIS, 2012b, p. 673).

Segundo Nabais (2012b, p. 64), os deveres fundamentais são “posições jurídicas passivas, autónomas, subjectivas, individuais, universais e permanentes e essenciais”: posições jurídicas passivas por exprimirem uma “situação de dependência dos indivíduos face ao Estado”; autônomas, por constituírem uma “categoria constitucional própria colocada ao lado dos direitos fundamentais”; subjetivas, por serem “subjectivamente imputadas ao indivíduo pela própria constituição”; individuais, por serem posições “referidas aos indivíduos ou pessoas humanas”; universais, por serem pautadas “pelo princípio da generalidade ou da universalidade, não sendo admissíveis discriminações com base neles”; permanentes, dado serem irrenunciáveis tanto pelo legislador ordinário como pelo revisor constitucional; e essenciais, pois devem ser de grande importância tanto “para a existência, subsistência e funcionamento da comunidade organizada num determinado tipo constitucional de estado”, como “para a realização de outros valores comunitários com forte sedimentação na consciência geral da comunidade”, traduzindo a “quota parte constitucionalmente exigida a cada um e, consequentemente, ao conjunto dos cidadãos para o bem comum” (NABAIS, 2012b, p. 36 e 65-73).

O dever de pagar impostos, como dever econômico, é inserido, então, dentre aqueles deveres fundamentais que dizem respeito direta e primariamente à “existência da comunidade globalmente considerada” (NABAIS, 2012b, p. 73).

Vale registrar que os deveres fundamentais obedecem ao princípio da tipicidade ou

numerus clausus, sendo assim considerados, portanto, apenas aqueles previstos expressa ou

implicitamente na Constituição165, devendo os demais deveres ser considerados meramente legais, pois sua disciplina é resultante da lei ordinária (NABAIS, 2012b, p. 87).

De se anotar ainda que os deveres fundamentais são dirigidos ao legislador, o qual está vinculado “quanto ao se e quanto ao conteúdo definido ou concretizado na constituição”

165

Ainda com Nabais (2012b, p. 93), os deveres fundamentais podem ter uma expressão implícita na Constituição, por nela não estarem formulados como tais, resultando, porém, “de normas constitucionais que, embora primordial ou mesmo totalmente movidas por preocupações de outra índole, mormente preocupações de organização política ou de organização económica, os têm como pressuposto ou como consequência”.

(NABAIS, 2012b, p. 677), de modo que eles se constituem em “mandados dirigidos ao

legislador” e dão origem a uma expectativa de atuação por parte dos poderes públicos, que

estarão legitimados para intervir em determinadas relações sociais e âmbitos da autonomia privada (FELDENS, 2005, p. 208).

No caso do tratamento dado pela CRP ao dever fundamental de pagar impostos, este exsurge implicitamente da “constituição fiscal” contida nos arts. 103° e 104°, bem assim de outras disposições constitucionais “que institucionalizam um estado fiscal (e não um estado proprietário ou dominial”, quais sejam, as reconhecedoras e garantidoras dos direitos fundamentais e as relativas à organização econômica, com destaque para as que se relacionam ao instituto da propriedade privada (NABAIS, 2012b, p. 93)166.

Quanto à Constituição brasileira, esta trata expressamente de deveres, ao inserir, no Título II (Dos Diretos e Garantias Fundamentais), o Capítulo I, denominado “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”, além prever expressamente diversos deveres, tais como: a) o dever de voto (art. 14, § 1°, I); b) o dever de prestar serviço militar (art. 143); c) o dever dos pais de assistir, criar e educar os filhos e destes em ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade (art. 239); d) o dever da família e da sociedade em amparar os idosos, defendendo sua dignidade e bem-estar, bem assim garantindo-lhes o direito à vida (art. 230) (FELDENS, 2005, p. 204-205).

De outra parte, como dever fundamental implícito, pode-se apontar o de pagar impostos, decorrente, segundo FELDENS (2005, p. 205-206), do disposto no Capítulo II (Dos Direitos Sociais) do Título II (Dos Direitos e Garantias Individuais) da Constituição Federal de 1988, eis que sua implementação material está ancorada “em ações interventivas do Estado fulcradas em deveres fundamentais implícitos acometidos aos cidadãos”167.

Porém, se nas Constituições portuguesa e brasileira o pagamento de impostos surge como um dever fundamental implícito, nas Constituições italiana e espanhola tem-se expresso o dever de contribuição para o sustento dos gastos públicos (FELDENS, 2005, p. 206).

166

Vieira de Andrade (1998, p. 151 e 216 apud FELDENS, 2005, p. 206-207) também extrai da CRP o dever fundamental autônomo de pagar impostos, fazendo referência aos arts. 106° e 107° (disposições atualmente encontradas nos art. 103° e 104°). Também vendo o pagamento de impostos como um dever fundamental autônomo em relação aos direitos fundamentais, tem-se Canotilho (2003, p. 533). Aderindo às concepções de Nabais relativas à caracterização do Estado português como um Estado fiscal, Germano Marques da Silva (2009, p. 48) extrai daí a conclusão sobre a existência do dever fundamental de pagar impostos. Ainda nesse sentido, Santos (2009, p. 115-116) afirma a existência de “um dever geral de pagar impostos, de contribuir”, fundamentado “na necessidade de financiar os gastos públicos de modo a que o Estado possa prosseguir as sua funções, as suas prestações sociais em sentido amplo, que abrangem quer as prestações sociais stricto

sensu, quer as restantes prestações destinadas a zelar pela subsistência da convivência em sociedade”.

167 Inserido no mencionado Capítulo II do Título II da CF/1988, o art. 6° elenca, como direitos sociais, “a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”, na forma disposta no texto constitucional.

Assim, o art. 2 da Constituição da República Italiana168, ao tempo em que estabelece o reconhecimento e a garantia dos direitos invioláveis do homem, seja como indivíduo seja na formação social onde se desenvolve a sua personalidade, exige “o cumprimento dos deveres inderrogáveis de solidariedade política, econômica e social”.

Dentre esses deveres, o art. 53, inserido no Título IV (Relações Políticas), determina que todos “são obrigados a concorrer para as despesas públicas na razão da sua capacidade contributiva”.

Tal dever constitucional possui, assim, um valor mais do que meramente declaratório, pois “autoriza o legislador a incidir no âmbito das relações individuais com uma aptidão à primeira vista desconhecida” (LOMBARDI, 1967, p. 36-37 apud FELDENS, 2005, p. 206).

No que diz respeito à Constituição espanhola, tem-se que o seu art. 31, n° 1, inserido na Seção 2 (Dos Direitos e Deveres dos Cidadãos) do Capítulo II (Direitos e Liberdades), determina que todos “contribuirão para o sustento dos gastos públicos com sua capacidade econômica mediante um sistema tributário justo inspirado nos princípios de igualdade e progressividade que, em nenhum caso, terá alcance confiscatório”.

O imposto apresenta-se, dessa forma, como um dever fundamental, no sentido de ser “um instituto jurídico que tem a sua disciplina traçada ao mais alto nível – ao nível constitucional -, onde integra a ‘constituição do indivíduo’”, não devendo, por conseguinte, ser encarado “nem como um mero poder para o estado, nem simplesmente como um mero

sacrifício para os cidadãos”, mas, na verdade, “como o contributo indispensável a uma vida

em comum e próspera de todos os membros da comunidade organizada em estado” (NABAIS, 2012b, p. 185).

Noutras palavras, a tributação não é um fim em si do Estado, mas o meio que possibilita que este cumpra os objetivos constitucionalmente programados (FELDENS, 2005, p. 208).

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