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2.7 Análise crítica da tendência de ampliação do elenco de infrações penais antecedentes

2.7.1 Argumentos contrários

Comentando a resposta italiana à reciclagem de capitais, em momento ainda anterior à disciplina atualmente vigente na Itália111, Flick (1992, p. 1292-1293), embora observando que o raio de ação da criminalidade organizada supera largamente o âmbito do tráfico de entorpecentes, apontava que a ampliação dos delitos antecedentes à lavagem a quaisquer tipos penais corria o risco de dilatar excessivamente o alcance da norma e de paralisar a sua aplicação.

Interessante notar que o autor destacou, como hipótese extrema de ampliação dos delitos a montante da reciclagem, aqueles de caráter fiscal (FLICK, 1992, p. 1292-1293).

Na Espanha, por ocasião da entrada em vigor do Código Penal em 1995, cujo artigo 301 estabelecia como infrações prévias ao blanqueo de capitales os delitos de caráter grave, Gomez Iniesta (1996, p. 45-47), ao mesmo tempo em que defendeu a extensão da proibição de operações de lavagem a todo tipo de atividades da criminalidade organizada que vão mais além do tráfico de entorpecentes, alcançando condutas muito perigosas e idôneas à obtenção de grandes quantidades de dinheiro, realçou a imperfeição da norma então recente, entendendo que, junto à categoria genérica de delitos graves, deveria ter sido introduzido um catálogo não meramente exemplificativo de fatos, como tráfico de armas, prostituição e terrorismo, dentre outros, suficientemente indicativos da gravidade e que apresentassem periculosidade e frequência, como maneira de propiciar ao aplicador da norma parâmetros de valor e que orientassem o trabalho de investigação.

Mais recentemente, comentando as alterações relativas ao blanqueo de capitales introduzidas no Código Penal espanhol pela Lei Orgânica n° 5/2010112, especialmente aquela pela qual o requisito relativo ao conhecimento de que os bens tenham sua origem “en un

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Art. 18, alínea “d”. 110

Art. 28, alínea “d”.

111 Introduzida pela Lei n° 328, de 9 de agosto de 1993. 112

delito” foi modificado pelo emprego da expressão “en una actividad delictiva”113

, Abel Souto (2011, p. 70-71) adjetivou de aberrante, demasiada, desmesurada, radical e incompreensível a modificação introduzida pela reforma anterior do CPe, de 25 de novembro de 2003, que expandiu as condutas prévias, antes limitadas à delinquência grave, para qualquer delito, uma vez que a lei modificadora (Lei Orgânica n° 15/93) teria ido bem mais além dos termos, por ele considerados já amplos, da Decisão Marco 2001/500, da Diretiva 2001/97/CE da Ação Comum 98/699/JAI e da versão de 2003 das 40 Recomendações do GAFI114.

Também comentando a Lei Orgânica n° 5/2010, de reforma do Código Penal espanhol, a qual entrou em vigor em 23 de dezembro de 2010, Silva Sánchez (2011a, p. 131, tradução nossa), em um primeiro momento, aborda o fenômeno global da expansão do direito penal, cujas características principais seriam a aparição de novos tipos delitivos e ampliação dos já existentes, a antecipação da intervenção do direito penal, bem como a diminuição das garantias e o incremento das penas, no que o autor definiu como “uma cessão ao direito penal de amplas funções de proteção e prevenção que este, contudo, não pode cumprir”, pois o direito penal material fracassaria quando obrigado a “afrontar macroproblemas que desbordam de sua estrutura concebida para fenômenos individuais ou, em todo caso, individualizáveis”.

Dentre as causas para tal fenômeno, são elencadas a globalização da criminalidade, que geraria a pretensão de evitar “paraísos penais”, e a desconfiança no direito administrativo como mecanismo de gestão de riscos (SILVA SÁNCHEZ, 2011a, p. 131).

Nesse contexto, a Lei Orgânica n° 5/2010 constituiria uma clara expressão dos tempos atuais, em que o termo “reforma” da legislação penal significa “expansão” do direito penal, sendo a “manifestação do sentimento de insegurança e de reivindicação que surge como consequência dos delitos sexuais, financeiros, da corrupção, assim como da criminalidade organizada e terrorista” (SILVA SÁNCHEZ, 2011a, p. 132, tradução nossa).

Especificamente sobre os delitos subjacentes à lavagem, Silva Sánchez (2011a, p. 134, tradução nossa) destaca que vem ganhando força a ideia de que a tipificação do “blanqueo” é um mecanismo pelo qual se pretende tirar o incentivo à prática de quaisquer delitos, pois, ao

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Quanto a esse ponto específico, o autor expressa o temor de que a utilização da expressão “actividad delicitva” possa “abrir a caixa de Pandora da qual sairiam todos os males da expansão da lavagem”, com o alcance, também, das faltas (ABEL SOUTO, 2011, p. 71), que são infrações penais punidas com penas leves (CPe, art. 13, n° 3), basicamente, restritivas de direitos ou multa (CPe, art. 32, n° 4).

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Por tais documentos, delitos graves seriam aqueles sancionados com marcos penais cujo limite mínimo se integrasse por pena de prisão ou medida de segurança acima de seis meses ou aqueles em que o máximo de privação de liberdade superasse um ano, “contudo, nem os prognósticos mais pessimistas permitiam prever a decisão tomada pelo legislador penal espanhol de 2003 de considerar branqueáveis os bens procedentes de infrações sancionadas com três meses de prisão” (ABEL SOUTO, 2011, p. 71).

centrar seu objeto nos proveitos da atividade delitiva, “a sanção do branqueamento incrementa os custos esperados na hora de tomar a decisão de delinquir, pois facilita a obtenção de provas encaminhadas à detecção e castigo do fato prévio”.

Alerta, porém, o autor que, ao agir deste modo, o legislador constrói um supradelito, cujas penas são superiores às dos delitos-base e cuja legitimidade é discutível, pois, na verdade, “a ideia reitora parece ser a de sancionar o ‘branqueador’ por razões instrumentais dirigidas a incrementar a dissuasão do autor do fato-base; o que em princípio entra em colisão com posições político-criminais muito sedimentadas” (SILVA SÁNCHEZ, 2011a, p. 134, tradução nossa).

A doutrina portuguesa é também contrária à ampliação dos delitos subjacentes ao branqueamento de capitais, mesmo considerando que Portugal adota um “método misto

catálogo/cláusula geral” (CANAS, 2004, p. 42) que não engloba todas as infrações penais.

Assim, referindo-se ao conceito de criminalidade grave contido na Diretiva 2001/97/CE, Canas (2004, p. 42) apontava que a sua utilização de forma demasiado generosa levaria a que fosse esbatida “a sua capacidade legitimadora dos mecanismos preventivos e repressivos concebidos para combater o branqueamento”, o que poderia levantar a dúvida “sobre se no próprio contexto do combate ao branqueamento não se deveria distinguir entre vários tipos de crimes subjacentes, uns a exigirem (e a legitimarem) uma intervenção mais vigorosa, outros menos exigentes”.

Crítica também é a posição de Brandão (2002), que, embora entendendo pela procedência das considerações que vinham fundamentando o abandono da definição fragmentada e dispersa dos delitos prévios ao branqueamento, calcadas no entendimento de que esse delito é, por si só, idôneo a ameaçar de lesar um conjunto significativo de bens jurídico-penais, bem assim de que há uma tendência das organizações criminosas para a diversificação de suas atividades em busca do que possa gerar lucros, aponta para a desconsideração de “um ponto essencial no discurso da criminalização, que é o da necessidade da intervenção penal, perspectivada sob o perfil da eficácia dessa intervenção” (BRANDÃO, 2002, p. 71).

Assim, amparado no reconhecimento, pela Assembleia da República portuguesa, constante de Relatório da Comissão Eventual da Assembleia da República para o Acompanhamento e Avaliação da Situação da Toxicodependência do Consumo e do Tráfico de Droga, dos fracos resultados revelados pela investigação e penalização do branqueamento de capitais, com insignificante número de casos levados a julgamento, Brandão (2002, p. 72- 73) critica a incoerência do legislador português, que optou, com a Lei 10/2002, de 11 de

fevereiro, por alargar o âmbito de punição da lavagem, demonstrando “uma atitude de pura indiferença perante os critérios que têm vindo a ser laboriosamente decantados pela ciência penal europeia” para a racionalização e a limitação da intervenção penal e a sua adequação “aos princípios que devem enformar o Estado de Direito”.

Para o autor, as instituições europeias estavam pondo de lado a função de tutela subsidiária de bens jurídicos, “única que o direito penal pode legitimamente exercer num quadro de Estado de Direito”, acabando por impor a extensão do âmbito do crime de branqueamento para além do que seria razoável, “numa lógica puramente pragmática” (BRANDÃO, 2002, p. 73).

Já Mendes (2007, p. 348), tratando da extensão da lista de crimes do catálogo de delitos prévios ao branqueamento de capitais da lei portuguesa atual, verbera crítica à legislação anterior feita por Oliveira Ascensão, para quem o sistema repressivo perdia sentido quando se incluíam tipos como a “fraude na obtenção de subsídio”, que seria infração de todo alheia à problemática financeira que está na base da lavagem.

Desse modo, o alargamento do círculo,

de maneira a fazer abranger crimes que não têm já nada que ver com a preocupação que está na origem da incriminação é confundir tudo, admitir reações deproporcionadas e pôr afinal em causa os resultados que se pretendiam atingir (OLIVEIRA ASCENÇÃO, 1999, p. 343 apud MENDES, 2007, p. 348).

Outro crítico da expansão dos delitos prévios ao branqueamento de capitais é Pedro Caeiro (2003, p. 1087-1088), para quem a punição autônoma das “manobras tendentes a impedir a perda das vantagens de origem criminosa” somente pode ser justificada quando projetarem “a frustração da pretensão estadual para níveis intoleráveis de insatisfação comunitária – é dizer, quando suscitem especiais necessidades preventivas”.

No Brasil, em que, conforme já mencionado, houve recente modificação na Lei de Lavagem de Dinheiro, pela qual foi abandonado o rol de crimes antecedentes, passando-se a prever que qualquer infração penal pode ser subjacente à lavagem, abrangendo, pois, tanto crimes como contravenções, Badaró e Bottini (2012, p. 82) manifestaram-se claramente contrários à abdicação do sistema de rol taxativo e à atitude de deixar de lado o modelo de moldura penal, considerando a ampliação exagerada sob o ponto de vista político-criminal, embora admitam a coerência desse novo critério de fixação das infrações prévias com a ideia de que o bem jurídico protegido pelo crime de lavagem de dinheiro é a administração da justiça.

Aduzem os mencionados autores ter ido o legislador brasileiro além do razoável, por ter criado uma estrutura normativa por eles considerada pesada demais para os fins a que se propõe, pois, segundo argumentam, a partir da entrada em vigor da lei, qualquer processo penal que envolva crimes com proveitos patrimoniais atrairá a discussão sobre o destino dos bens e a possível lavagem de dinheiro, de maneira que até em casos de crimes como o de furto115 ou de contravenções simples, tal qual a de organização de rifa116, seria levantada a questão da caracterização da lavagem de dinheiro (BADARÓ; BOTTINI, 2012, p. 82)117.

Na opinião Badaró e Bottini (2012, p. 83), do ponto de vista político-criminal, o mais adequado seria atrelar a lavagem de dinheiro apenas aos crimes graves, sendo que a limitação da amplitude da norma evitaria efeitos concretos contraproducentes, “como a banalização da norma penal, a inviabilidade do funcionamento das unidades judiciais especializadas e a ampliação da crise do sistema carcerário nacional”.

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