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Regimes internacionais de proibição

2.4 Contexto histórico da tipificação da lavagem de dinheiro

2.4.3 A normativa internacional sobre lavagem de dinheiro e a definição dos crimes antecedentes

2.4.3.1 Regimes internacionais de proibição

Tais regimes internacionais, por possuírem objetivos mais específicos, são considerados mais flexíveis e aptos a ensejar mudanças que as organizações intergovernamentais, apesar de, com frequência, contarem com o apoio destas (CARLSON; ZAGARIS, 1991, p. 555).

Dessa forma, o sucesso de um regime internacional pode levar à manutenção ou à redução dos custos de transações legítimas, “ao mesmo tempo em que aumenta os custos de negociações ilegítimas como a lavagem de dinheiro e o tráfico de entorpecentes” (CARLSON; ZAGARIS, 1991, p. 555).

De Carli (2012, p. 138) inclui dentre esses regimes internacionais os regimes globais de proibição, tratados de forma aprofundada por Nadelmann (1990), que os define como categoria de normas que proíbem, tanto em leis internacionais quanto em leis criminais domésticas dos países, o envolvimento do estado e de atores não estatais em determinadas atividades, tais como a pirataria, a escravidão, o tráfico de escravos, a falsificação de moedas, o sequestro de aeronaves, o tráfico de mulheres e de crianças para fins de prostituição, o tráfico de entorpecentes e a matança de espécies animais em risco, como baleias e elefantes (NADELMANN, 1990, p. 479).

A forte dimensão transnacional desses crimes é considerada condição essencial para que somente eles se tornem objeto de regimes internacionais de proibição, o que ajuda a explicar porque apenas poucas leis criminais evoluem para tais regimes, e menos numerosas ainda sejam aquelas que alcançam dimensão global70 (NADELMANN, 1990, p. 481).

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Bassiouni e Gualtieri (1996, p. 62-63) mencionam a existência de 315 instrumentos internacionais, elaborados entre 1815 e 1988, e que abarcavam 24 categorias de crimes transnacionais e internacionais definidos por organismos legislativos internacionais e regionais e incorporados a convenções internacionais: agressão; crimes de guerra; crimes contra a humanidade; emprego ilícito de armas; genocídio; apartheid; escravidão e crimes relativos à escravidão; tortura; experimentação médica ilícita; pirataria; pirataria aérea; delitos contra a navegação marítima internacional; ameaça e emprego da força contra diplomatas e outras pessoas internacionalmente protegidas; captura de reféns; delitos relativos a drogas; tráfico internacional de publicações obscenas; destruição ou roubos de tesouros nacionais; infrações contra o meio ambiente; roubo de materiais nucleares; emprego ilícito do correio; interferência em cabos submarinos; falsidades e falsificação; corrupção de funcionários públicos estrangeiros e mercenarismo. Ainda segundo Bassiouni e Gualtieri (1996, p. 63-64, tradução nossa), as previsões constantes dos instrumentos de direito penal internacional substantivo possuem as seguintes características: “1) reconhecimento explícito da conduta proibida como constitutiva de um crime internacional, ou de um crime segundo o Direito Internacional; 2) reconhecimento implícito da natureza penal do fato mediante o estabelecimento de um dever de proibir, prevenir, perseguir, sancionar, ou outro similar; 3) tipificação penal da conduta proibida; 4) dever ou direito de persecução; 5) dever ou direito de sancionar a conduta proibida; 6) dever ou direito de extraditar; 7) dever ou direito de cooperar na persecução e

Esses regimes internacionais tendem a refletir os interesses políticos e econômicos dos membros dominantes da comunidade internacional, porém, sua criação e evolução também decorrem do papel importante desempenhado por fatores morais e emocionais relacionados a crenças religiosas, sentimentos humanitários, fé no universalismo, compaixão, consciência, paternalismo, medo, preconceito e a compulsão ao proselitismo, de maneira que as ações dos estados e as ações e opiniões de sociedades diversas, no processo de evolução desses regimes, são modeladas por organizações e movimentos nacionais e transnacionais, devendo ser entendidas como a culminação de pressões externas e de disputas políticas domésticas, “e nas quais as normas das sociedades dominantes, especialmente aquelas da Europa e dos Estados Unidos da América, são não apenas internacionalizadas, mas, também, internalizadas pelas diversas sociedades ao redor do mundo” (NADELMANN, 1990, p. 480, tradução nossa).

Continuando com Nadelmann (1990, p. 484-486), este identifica cinco estágios no padrão evolucionário comum da maioria dos regimes globais de proibição, nos quais ele inclui os que tiveram por alvo a pirataria, a escravidão e o tráfico de entorpecentes. No primeiro estágio, a atividade alvo do regime é considerada, pela maioria das sociedades, sob certas circunstâncias e em relação a determinado grupo de pessoas, como inteiramente legítima, tendo frequentemente os próprios estados como protagonistas principais. Nessa fase, noções morais ou leis internacionais em evolução pouco têm a ver com as eventuais restrições ao envolvimento na atividade, o que decorreria mais de prudência política e de tratados bilaterais (NADELMANN, 1990, p. 484-485).

É no segundo estágio que ocorre a redefinição da atividade como um problema e como um mal, passando o envolvimento estatal a ser gradualmente deslegitimado, apesar de alguns determinados governos continuarem a patrocinar o envolvimento de grupos privados e de indivíduos na atividade. A redefinição do caráter da atividade ocorre, em regra, como decorrência da atuação de juristas internacionais, grupos religiosos e outros empreendedores morais71 (NADELMANN, 1990, p. 484).

Já no terceiro estágio a supressão e a criminalização da atividade começam a ser reivindicadas pelos chamados proponentes do regime, nos quais se incluem os governos capazes de exercer uma influência hegemônica em uma determinada área de interesse e, mais uma vez, os empreendedores morais transnacionais. Esses atores exercem sua influência sanção (incluindo um dever de prestar assistência judicial recíproca); 8) criação de uma jurisdição internacional básica; 9) referência à criação de uma corte penal internacional ou de um tribunal internacional com características penais; 10) exclusão da obediência devida”.

71Que é como o autor se refere às organizações não governamentais transnacionais (NADELMANN, 1990, p. 482).

através de pressões diplomáticas, estímulos econômicos, intervenções militares, publicidade e “esforços proselitistas de indivíduos e organizações não governamentais” (NADELMANN, 1990, p. 485, tradução nossa).

O quarto estágio, por sua vez, é alcançado apenas em caso de sucesso dos esforços dos proponentes do regime, quando, então, efetivamente, um regime global de proibição começa a existir, pois a atividade torna-se objeto de leis criminais e de ações policiais em grande parte do mundo, e instituições e convenções internacionais passam a desempenhar um papel de coordenação. Apesar disso, nessa fase alguns estados ainda se recusam a se conformar ao novo regime, outros aderem apenas formalmente, mas se revelam incapazes ou pouco dispostos a reprimir as violações em seu território, havendo, ainda, indivíduos e organizações criminosas que continuam engajadas na atividade agora criminosa (NADELMANN, 1990, p. 484).

Por fim, o quinto estágio, em que a atividade é drasticamente reduzida e persiste em mínima escala e em lugares obscuros, é alcançado apenas em alguns casos, o que passou a ocorrer somente a partir do século XIX, quando aumentaram o poder dos estados na atuação contra os criminosos dentro ou fora de suas fronteiras e o potencial de cooperação interestatal na supressão de atividades indesejadas (NADELMANN, 1990, p. 484-485).

Como fatores que tornam leis criminais e regimes globais de proibição particularmente sem efetividade na supressão das atividades de que se ocupam, Nadelmann (1990, p. 486) cita a exigência de recursos limitados e facilmente disponíveis, a pouca suscetibilidade de determinadas atividades serem comunicadas às autoridades, e a demanda substancial e resiliente dos consumidores, de difícil substituição por atividades ou produtos alternativos.

Tais seriam os fatores pelos quais o regime global antidrogas estaria destinado a nunca obter o sucesso experimentado pelos regimes contra a pirataria e o comércio de escravos, ou, ainda, aqueles que combateram a falsificação de moeda e o sequestro (NADELMANN, 1990, p. 486).

Sendo o texto de Nadelmann de 1990, ao responder à sua própria pergunta sobre que atividades seriam alvos, no futuro, de regimes globais de proibição, ele listou a evasão fiscal, a lavagem de dinheiro, as violações às leis sobre valores mobiliários, várias fraudes comerciais transnacionais e o comércio de produtos falsificados, às quais, à época, o governo dos EUA, ocupando o papel que já fora da Europa ocidental, vinha devotando crescente atenção (NADELMANN, 1990, p. 522).

Todavia, apesar dos esforços persuasivos dos EUA e do próprio Conselho da Europa no sentido da criminalização de algumas daquelas atividades, o que ele chamou de “regimes

nascentes” ainda não teriam, então, ido além do terceiro estágio (NADELMANN, 1990, p. 522).

Especificamente quanto à lavagem de dinheiro, entendia Nadelmann (1990, p. 522, tradução nossa) que a então recente inclusão, por inspiração dos EUA, de provisões contra esse delito na Convenção de Viena de 1988 propiciava “uma avenida para a promoção de um regime em pelo menos uma dessas áreas”.

Já em relação à evasão fiscal, por serem as leis a ela referentes bastante heterogêneas, as perspectivas de tornar-se alvo de um regime global de proibição seriam “altamente remotas” (NADELMANN, 1990, p. 522-523, tradução nossa).

Na opinião de De Carli (2012, p. 141), caso Nadelmann tivesse escrito seu artigo nos dias atuais, “certamente enquadraria o regime antilavagem de dinheiro no quarto estágio”.

De fato, tomando por base as características do quarto estágio do padrão evolucionário dos regimes globais de proibição, notadamente, os fatos de a atividade tornar-se objeto de leis criminais e de ações policiais em grande parte do mundo, e de instituições e convenções internacionais passarem a desempenhar um papel de coordenação, é nessa fase que se encontra o regime de combate à lavagem de dinheiro, conforme será demonstrado a seguir, quando serão abordadas as normas internacionais que o regulamentam, com destaque para a definição dos crimes antecedentes72.

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