CAPÍTULO II POR QUE PENSAR COM FOUCAULT?
2.4 ARQUEOLOGIA DO PEDAGÓGICO
Com efeito, julga-se importante delimitar alguns conceitos de Foucault utilizados nesta pesquisa. Contudo, antes de tratar da arqueologia, é importante ressaltar a questão do discurso, amplamente problematizada por Foucault. Elenca-se assim nessa pesquisa, como ferramenta analítica, a teorização do discurso, considerando suas obras: As Palavras e as
coisas, A Arqueologia do saber, Vigiar e punir, História dos Sistemas de Pensamento e A
ordem do discurso. Tem-se como pretensão extrair dessas obras, ferramentas conceituais como: sujeito e heterogeneidade do discurso, prática discursiva e enunciado29, para verter as
análises dos discursos criados e dirigidos ao saber pedagógico, e, em especial a prática pedagógica, que influencia o discurso pedagógico e prática docente, resultando em modos sistemáticos de subjetivação.
A analítica do discurso será vertida também aos textos oficiais das conferências mundiais sobre a educação promovidas pela UNESCO que tematizem ou normatizem, ou mesmo se dirija direta ou indiretamente à prática pedagógica, optar-se-á por uma arqueologia desses textos, considerando que:
A arqueologia busca definir não os pensamentos, as representações, as imagens, os temas, as obsessões que se ocultam ou se manifestam nos discursos; mas os próprios discursos, enquanto práticas que obedecem a regras. Ela não trata o discurso como documento, como signo de alguma coisa, como elemento que deveria ser transparente, mas cuja opacidade importuna é preciso atravessar frequentemente para reencontrar, enfim, aí onde se mantém a parte, a profundidade do essencial; ela se dirige ao discurso em seu volume próprio, na qualidade de monumento. Não se trata de uma disciplina interpretativa: não busca um “outro” discurso mais oculto. Recusa-se a ser “alegórica”. (FOUCAULT, 2014b, p. 169)
Observa-se a partir de Foucault que a produção dos saberes científicos é ancorada nas produções discursivas que justificam esses saberes, produções essas, presentes nos textos oficiais do saber pedagógico, constituintes da dimensão ser-saber.
Destarte, a produção do conhecimento passa invariavelmente pelos discursos e, de igual forma, a aquisição de novos conhecimentos passa necessariamente pela mudança no
29 Convém explicar que para Foucault: “enunciado não é uma unidade ao lado – acima ou abaixo – das frases ou
das proposições; está sempre dentro de unidades desse gênero, ou mesmo em sequências de signos que não obedecem às suas leis (e que podem ser lista, séries ao acaso, quadros): caracteriza não o que nelas se apresenta ou a maneira pela qual são delimitadas, mas o próprio fato de serem apresentadas, e a maneira pela qual o são” (FOUCAULT, 2014b, p 135-136)
discurso. A arqueologia busca então, pela novidade no discurso, compreendendo que a crise das verdades absolutas do tempo pós-moderno dá lugar às contingências do conhecimento. Assim, busca-se as mudanças dessa verdade contingente, não a verdade nua, mas a localização de onde essa verdade fez dobras, ou seja, onde o discurso nesse caso sobre práticas pedagógicas mudou seu enfoque, produziu novas compreensões e intervenções, (des) construiu linhas de forças sobre esse saber específico da pedagogia.
A intenção de usar a arqueologia vertida ao objeto dessa pesquisa é investigar a descrição dos fatos e a regularidade dos enunciados, que embora tentem apresentar novidades e avanços no campo da prática pedagógica, por vezes relacionando-a com competências do professor etc., conservam a mesma estrutura positivista/metafísica de sempre, que dentre outras coisas determina a realidade pelo conceito na produção do saber.
Ressalta-se, ainda, que a arqueologia é um “ponto de chegada, não um ponto de partida” (MACHADO, 2007, p.8) ela é resultado de um processo, que quebra toda estrutura metodológica positivista, de iniciar uma pesquisa com tudo dado, como se a ida ao campo de pesquisa fosse apenas para comprovar o que já era sabido desde início, onde as hipóteses de pesquisa tivessem a necessidade de serem sempre comprovadas, levando por vezes os dados a forçosas interpretações para que coadunem com as premissas iniciais.
A arqueologia permite uma multiplicidade de alternativas, acrescenta Machado:
[...] uma das características básica da arqueologia é justamente a multiplicidade de suas definições, a mobilidade de uma pesquisa que, não aceitando se fixar em cânones rígidos, é sempre instruída pelos documentos pesquisados. Os sucessivos deslocamentos da arqueologia não atestam, portanto, uma insuficiência, nem falta de rigor: assinalam um caráter provisório assumido e refletido pela análise. (ibid,. p.12)
A análise arqueológica produz assim um significativo deslocamento também quanto à relação com a tradição linguística. Destarte, ao se posicionar de forma contrária as análises, a partir da atividade sintética do sujeito, e reformular tais análises considerando os significados internos dos discursos e/ou enunciados, a análise arqueológica afasta-se da psicologização, bem como de qualquer aporte metafisico. Observa-se, assim, a importância da materialidade do discurso, que não se apresenta enquanto uma verdade a priori como justificativa epistemológica, e sim a partir de um conjunto de regras anônimas oriundas da produtividade do poder, que permeia a relação saber-poder.
Veiga-Neto (2014) observa que a arqueologia se consolidou como importante mecanismo em pesquisas educacionais, principalmente no que tange o estudo de práticas discursivas, “que se engendraram para fazer da Pedagogia o que hoje ela representa, como um campo de saberes” (VEIGA-NETO, 2014, p.50).
Utiliza-se assim o uso da arqueologia nessa pesquisa, objetivando descrever e visualizar as dobras, descontinuidades nos discursos, que permitam a identificação de eventos históricos, conhecimentos e técnicas que tornaram possíveis as referidas instruções que delinearam nas mais diversas áreas do saber, um modelo universal de subjetivação para a prática pedagógica. Acrescenta Foucault:
A análise arqueológica individualiza e descreve formações discursivas, isto é, deve compará-las, opô-las umas às outras na simultaneidade em que se apresentam, distingui-las das que não têm o mesmo calendário, relacioná-las no que podem ter de específico com as práticas não discursivas que as envolvem e lhes servem de elemento geral. (FOUCAULT, 2014b, p.192)
Dessa feita, essa investigação propõe-se em revirar o solo do impensado, revisar os discursos, que por serem tão evidentes escondem as relações e dobras que dão sentindo ao acontecimento30. Com efeito, a analítica arqueológica trata também de fazer aparecer as
influências institucionais, econômicas, sociais, sobre as quais são construídas e articuladas as formações discursivas que são determinantes nas técnicas de fabricação dos sujeitos no âmbito da instituição escolar.