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CAPÍTULO II POR QUE PENSAR COM FOUCAULT?

2.1 SUJEITO E EDUCAÇÃO

Essa problemática do sujeito se desdobra em outros campos de pesquisa para Foucault, como por exemplo, o filósofo francês se preocupa em responder a uma grande questão filosófica que por consequência abarca o campo educacional: O que nos torna sujeitos? Dessa feita, na aula de 3 de fevereiro de 1982, no curso A hermenêutica do sujeito, Foucault problematiza um tema caro aos pressupostos do pensamento moderno, que é a relação do sujeito com a verdade, quando afirma:

Minha ideia então é que, tomando Descartes como marco, evidentemente, porém sob efeito de toda série de complexas transformações, é chegado o momento em que o sujeito como tal tornou-se capaz de verdade. É claro que o modelo da prática cientifica teve um papel considerável: basta abrir os olhos, basta raciocinar com sanidade, de maneira correta e, mantendo constantemente a linha da evidência sem jamais afrouxá-la, e seremos capazes de verdade. Portanto, não é o sujeito que deve transformar-se. Basta que o sujeito seja o que ele é para ter, pelo conhecimento, um acesso a verdade que lhe é aberto pela sua própria estrutura de sujeito. Parece-me então ser isso que, de maneira muito clara, encontramos em Descartes, a que se junta, em Kant. (FOUCAULT, 2010, p. 171-172).

Foucault toca em ponto chave da construção moderna do pensamento que traz em seu bojo consequências para o campo da educação, a relação que a verdade passa a ter com o método23, que nesse ponto se remete a Descartes. A questão do método atrelado à ideia de

verdade, foi o que trouxe na modernidade a ideia de infalibilidade da ciência.

Ressalta-se que Foucault não foi o único teórico a expor o raciocínio tautológico de Descartes, e, por conseguinte, os limites do método racionalista/positivista. Thomas Kuhn, em “A estrutura das revoluções científicas”, já observava esse problema ao questionar o alcance desse método “na insuficiência das diretrizes metodológicas para ditarem, por si só, uma única conclusão substantiva para várias espécies de questões científicas” (KUHN, 2007, p. 22). Kuhn observa a insuficiência desse método, ao ser utilizado para vários e diferentes objetos e aspectos das análises científicas.

Assim, consolidou-se um modelo de ciência atrelado à ideia de verdade, e principalmente um modelo de sujeito, que tem como principal característica ser universal e preexistente, e com estruturas apriorísticas de acesso ao conhecimento.

Essa construção conceitual de Descartes afetou e afeta o universo educacional. Basta elencar-se de forma analítica, a base epistemológica da primeira corrente pedagógica, que é a Escola Tradicional. Essa possui como principais características, ser livresca, estática, conformista, essencialista, e tem a figura do professor autoritário e distante dos alunos, que

23 Descartes escreve o Discurso do Método, para tentar responder a dois efeitos causados pela Revolução

Científica, uma série desordenada de observações, e formas sofisticadas de ceticismo. Para tanto, Descartes entende que o instrumento capaz de solucionar essas questões é a razão. Assim, ele postula 4 regras básicas para se alcançar a verdade/conhecimento: a regra da evidência, da análise ou decomposição, da síntese e da revisão.

tem sua prática pedagógica profundamente marcada pelo discurso cartesiano, “que todo homem é dotado de razão”. Assim, em uma sala de aula notamente heterogênea, os conteúdos são homogêneos, pois todos são iguais, universais, preexistentes. Desse modo, “o espaço escolar se desdobra; a classe se torna homogênea, ela agora só se compõe de elementos individuais que vêm colocar uns ao lado dos outros sob olhares do mestre” (FOUCAULT, 2013, p.141) essa é a visão teórica e, por vezes pedagógica, do sujeito moderno.

Observa-se que a modernidade se caracteriza pela edificação de uma metafísica do sujeito que além de sustentar dualismos metafísicos, como: objetivismo-subjetivismo, mente- corpo, universalismo-relativismo, racionalismo-irracionalismo, ciência-arte, criou a partir do cogito cartesiano a concepção de um “eu pensante”, “sujeito do conhecimento”, “sujeito autoconsciente”, que foi fundamental para se pensar o sujeito moderno como uma identidade já dada, uma propriedade da condição humana. Isso interferiu profundamente na forma do indivíduo enxergar o outro e a si mesmo, comprometendo a perspectiva social e individual do sujeito moderno e afetando diretamente a educação.

Com efeito, como observo em outro momento24, o problema do sujeito moderno

não é abordado apenas pelo saber filosófico, a sociologia trilha esse importante caminho a partir de Stuart Hall. Logo, o que Foucault vai chamar de morte do sujeito moderno, Hall chama de descentramento do sujeito moderno.

Ao tratar sobre o descentramento do sujeito moderno, Hall (2001) observa que esse sujeito, centro da individuação, é aquele pensado por Descartes. Baseado em uma centralidade e universalidade do “eu”, o indivíduo adquire essa essência desde seu nascimento e carrega até a sua morte, como algo dado e estático, pois para o sujeito cartesiano, a identidade racional, pensante, consciente é a essência pura desse sujeito.

Segundo os estudos de Hall, John Locke, também contribuiu para o fortalecimento desse sujeito cartesiano, pois “em seu Ensaio sobre a compreensão humana, definia o indivíduo em termos da “mesmidade (sameness) de um ser racional” – isto é, uma identidade que permanecia a mesma e que era contínua com seu sujeito” (HALL, 2001, p. 27), ou seja, o sujeito cartesiano é universalizado com Locke, e pode-se aferir, que por vezes na educação o sujeito cartesiano encontra-se universalizado, nas produções científicas e nas práticas pedagógicas.

24 Refiro-me ao meu trabalho de conclusão da graduação em Filosofia, intitulado: Hermenêutica e formação: a ressignificação ético e estética da educação segundo Gadamer, onde exploro brevemente esse tema.

Hall identifica mudanças nessa concepção cartesiana de sujeito, ao observar emergir um novo sujeito que ele vai chamar de sociológico. O cerne dessa mudança está em dois importantes eventos:

O primeiro foi à biologia darwiniana. O sujeito humano foi “biologizado” – a razão tinha uma base na natureza e a mente um “fundamento” no desenvolvimento físico do cérebro humano. O segundo evento foi o surgimento das novas ciências sociais. Entretanto, as transformações que isso pôs em ação foram desiguais. (HALL, 2001, p. 30).

Ao caracterizar que essas mudanças foram desiguais, Hall se baseia dentre outras coisas, na observação que “o dualismo típico do pensamento cartesiano foi institucionalizado na divisão das ciências sociais entre a psicologia e as outras disciplinas” (Hall, 2001, p. 30).

Esse novo modelo de sujeito, observado por Hall, avança na ideia do sujeito cartesiano ao caracterizar as relações sociais como parte constitutiva desse sujeito. Dentro dessa concepção, esse sujeito seria formado pela relação do “eu” com a sociedade, onde se evidencia nessa relação, a existência de pertencimento a grupos sociais. Assim, a centralidade na visão Hall, passa a estar assentada no grupo a qual o indivíduo pertence.

Continuando seu raciocínio sobre o “descentramento do sujeito”, Hall elenca cinco grandes avanços na teoria social, que permitiu isso, segundo o autor. O primeiro deles se refere às tradições do pensamento marxista, considerando que os escritos de Marx pertencem ao século XIX e não ao século XX. Esse destaque se dá pela releitura feita na década de sessenta, baseada na afirmação marxista que os “homens fazem a história, mas apenas sob as condições que lhes são dadas”.

O segundo dos grandes descentramentos do século XX vem da descoberta do inconsciente por Freud. Na visão de Hall, o inconsciente freudiano “arrasa com o conceito do sujeito cognoscente e racional, provido de uma identidade fixa e unificada – o “penso, logo existo”, do sujeito de Descartes” (Hall, 2001, p. 35), pois para a teoria freudiana nossas identidades, sexualidade e desejos, são formadas com base em processos psíquicos e simbólicos do inconsciente.

Outro ponto importante desse descentramento do sujeito moderno elencado por Hall está associado ao trabalho do linguista estrutural, Ferdinand Saussure, quando Hall observa:

Saussure argumentava que nós não somos, em nenhum sentido, os “autores” das afirmações que fazemos ou dos significados que expressamos na língua. Nós podemos utilizar a língua para produzir significados apenas nos posicionando no interior das regras da língua e dos sistemas de significados de nossa cultura. (Hall, 2001, p. 40).

Uma das principais contribuições que Saussure traz é a compreensão que a língua é um sistema social e não um sistema individual, onde os significados que se atribui às palavras não são fixos, os significados surgem nas relações de similaridades e diferenças que as palavras têm com outras palavras no inteiro do código da língua.

O quarto descentramento, para o autor, está baseado no trabalho do filósofo francês Michel Foucault, que, ao fazer uma “genealogia do sujeito moderno” apresenta um novo tipo de poder, que ela chama de “poder disciplinar”, por ser esse o autor referência dessa pesquisa, não irá se ater a maiores comentários, visto que em outros momentos o que Hall expõe sobre o trabalho de Foucault, será melhor aprofundado.

O quinto e último descentramento está alicerçado, segundo Hall, no movimento feminista, enquanto uma crítica teórica que esse faz a sociedade. Ele cita o movimento feminista como exemplo de vários outros que ocorreram na década de sessenta, como os movimentos estudantis e outros, que foram importantes para esse descentramento do sujeito.

Ao elencar o pensamento de Stuart Hall nesse trabalho, se faz em uma coerência com a proposta e método de pesquisa, que não é se fechar nos conceitos do autor referência, mas colocá-los à prova, frente às outras linhas de pensamento, que foram construídas, e são igualmente relevantes.

Retomando o problema do sujeito a partir de Foucault, observa-se, que principalmente a partir da sua obra Vigiar e punir, onde esse elenca a escola como uma das instituições disciplinares responsáveis pelos processos de subjetivação, indicando que a escola funciona com o papel articulador entre as práticas pedagógicas e o conhecimento, que produz dessa junção, um modelo específico de sujeito disciplinado/docilizado, assim, Foucault vai delineando as consequências que a noção cartesiana de sujeito trouxe à sociedade.

Ressalta-se mais uma vez que Foucault se distancia totalmente da formulação clássica de sujeito, como algo dado, um sujeito desde sempre aí, preexistente a esse mundo, e que, portanto, para a maioria das correntes pedagógicas precisa ser ensinado, partindo do pressuposto iluminista de um sujeito ainda em uma menor idade, e que, por meio da educação, alcançaria essa maior idade, esse acabamento.

Veiga-Neto (2003) é outro autor que observa que a noção de um sujeito preexistente se consolidou a partir de algumas noções de sujeito construída na modernidade. Exemplificando, o autor cita o “eu pensante” de Descartes, já explorado nesse texto, a “mônada” de Leibniz, o “sujeito do conhecimento” de Kant, pois todas essas noções, comungam da ideia que o sujeito é uma entidade já dada.

Com efeito, Kant, é um dos autores modernos que mais sustenta essa noção preexistente de sujeito, e a chancela igualmente a Locke como universal. Em seu texto,

“Sobre a pedagogia” faz uma observação categórica que: “o homem é a única criatura que precisa ser educada” (KANT, 1996, p.11), e essa educação pensada por Kant, tem por finalidade que esse homem alcance a autonomia, ou seja, que possa ser capaz de construir suas próprias leis. Entretanto, Kant vê isso como universal, como se esse ideal possa ser alcançado em todas as épocas e em todos os homens, o que se configura um certo equívoco, pois como indica Foucault o sujeito moderno é uma construção histórica.

A ideia de universalidade do sujeito pensada por Kant traz implícito dois problemas: o de se tornar descontextualizados e atemporais, como se as “verdades” pensadas no iluminismo, tivessem validades eternas, onde todas as mudanças sociais, políticas e históricas, não fizessem o indivíduo ser modificado. E, ao se pensar assim, cria-se mais um dos inúmeros paradoxos da educação: se o sujeito é algo dado, e universal, onde não se permitem mudanças, questiona-se como então se poderia educá-lo, a não ser que se substitua o educá-lo por processos de subjetivação. Fala-se com Dazzani:

O que conhecemos e o que cremos está circunscrito ao nosso tempo e ao nosso contexto. Fora das nossas práticas humanas, da nossa imersão no fluxo do mundo, de nossos jogos de linguagem, as coisas simplesmente não fazem sentido algum. (DAZZANI, 2010, p. 13)

Esse modelo moderno de sujeito ainda contemplado na educação, faz com que os objetivos dos alunos, sejam sempre externos a eles. Assim, cursar o ensino médio é visto e vivido como uma etapa para passar no ENEM. Seguindo a mesma lógica, o curso superior é uma etapa externa ao aluno, a ser cumprida para ter acesso ao mercado de trabalho, ou seja, a educação perdeu o ideário de formação, e virou instrução, onde esse processo é resumido em uma mera transmissão de saber técnico para alcançar determinados fins, onde formar, nesse contexto, significa preparar o sujeito para as demandas do mercado de trabalho.

Dessa feita, entende-se de suma importância o trabalho conceitual de Foucault no que tange à noção de sujeito, pois as articulações teóricas entre Foucault e a educação, encontram no sujeito o elemento possível de conexão entre ambos. E como já dito, o elemento central de qualquer pedagogia sendo o sujeito, uma noção distinta de sujeito, pode conduzir a formas igualmente distintas de se pensar/fazer a educação.