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CAPÍTULO III – CAMINHOS PEDAGÓGICOS DE UMA PRÁTICA

3.3 A MORAL CRISTÃ E A PRÁTICA PEDAGÓGICA

O que caracterizava essencialmente a Igreja e a moral que trazia para o mundo, era o desprezo pelas alegrias deste mundo, pelo luxo material e moral; propunha substituir a alegria de viver pelas alegrias mais severas da renúncia. Nada mais natural que semelhante doutrina tivesse conseguido agradar ao Império Romano, cansado de longos séculos de hipercivilização. Só traduzia e consagrava o sentimento de saciedade e desgosto que, havia já muito tempo, trabalhava a sociedade romana e que o epicurismo e o estoicismo já haviam expressado à sua maneira. Tinham-se esgotado todos os prazeres a serem proporcionados pelos refinamentos da cultura; havia, pois, uma grande disposição para acolher, como sendo uma salvação, uma religião que vinha revelar aos homens uma fonte toda diferente de felicidade. (DURKHEIM, 1995, p.26)

A citação acima se remete ao período da idade média, bem como todas as nuances desse período, marcado pela passagem do paganismo ao cristianismo, cujo cristianismo se tornou marca indelével desse tempo, presente no Estado, na política e na educação.

O historiador inglês Edward Gibbon (1989) observa que o século V foi marcado por um triunfo rápido do cristianismo. O autor elenca alguns fatores para esse feito, que vai: “da doutrina de uma vida futura, valorizada por toda e qualquer circunstância ocasional que pudesse dar peso e eficácia a essa importante verdade” a “união e a disciplina da república cristã, que formou aos poucos um Estado independente que se desenvolveu no coração do império romano. (GIBBON, 1989, p.195).

No bojo da união entre poder civil e poder religioso, dá-se um número crescente de conversões dos povos bárbaros ao cristianismo, onde os mesmos abdicaram de suas divindades, crenças e religiões em prol dessa recente forma religiosa. Na esteira das conversões, da aliança entre Estado e Igreja, surge a necessidade de uma revisão da Paidéia grega, coadunado com a necessidade de inserir nesse contexto educativo a Fé cristã, que precisaria ser ensinada, como forma de consolidar e ampliar a ação da Igreja. A concepção da Paidéia grega, assim, é duramente criticada, e de certa forma invertida, pelos novos valores apresentados, César Nunes observa:

[...] A ideologia determinista do dom, como posse inata, e das potencialidades restritas aos estamentos antigos, foi duramente abalada pela ‘boa-nova’ de ‘todos os que n’Ele crerem, poderão ser salvos’, interpretando a máxima cristã ‘Ite, eunte omnes docete’, isto é, ‘Ide, ensinai a todos os povos’. Não podemos deixar de afirmar que o projeto pedagógico da expansão cristã partia de uma filosofia humanista e igualitária, sustentando, pela primeira vez, que todos poderiam ter acesso ao saber, conquanto todos poderiam aprender e, consequentemente, almejar a ‘salvação’. (NUNES, 2003, p.81)

Dessa feita, a Paidéia cristã tem dois grandes projetos educativos: a patrística e a escolástica. A patrística fundamenta-se em uma tarefa eminentemente apologética, ou seja, de

defesa da fé cristã. Essa missão apologética inicialmente gera uma rusga entre padres que não concordavam com inserção de textos filosóficos considerados por eles pagãos, onde o grande expoente dessa defesa é Tertuliano. Porém, outros padres defendem a incorporação de textos filosóficos na construção do conhecimento postulado pela patrística, e nessa corrente o ícone é Santo Agostinho.

O Bispo de Hipona, como era conhecido Santo Agostinho, tem uma influência notamente platônica no seu pensamento. Sua teoria educativa em partes decorre da teoria da reminiscência, que “segundo a qual a alma teria contemplado as essências no mundo das ideias antes da vida presente, enquanto os sentidos seriam apenas ocasião das lembranças e não a fonte própria do conhecimento” (ARANHA, 2006, p. 113). Agostinho revisa e atualiza a teoria da reminiscência de Platão, observando que o ser humano receberia de Deus o conhecimento. Entretanto, como observa Aranha, isso:

Não significa desprezar o próprio intelecto, pois, como o Sol, Deus ilumina a razão e torna possível o pensar correto. O saber, portanto, não é transmitido pelo mestre ao aluno, já que a posse da verdade é uma experiência que não vem do exterior, mas de dentro de cada um. Isso é possível porque “Cristo habita no homem interior”. Toda educação é, dessa forma, uma autoeducação, possibilitada pela iluminação divina. (ibid., p.113)

Já a escolástica, configurou-se como um método de ensino próprio de sua época, e que como o próprio nome sugere, se remete à ideia de escola. Apresenta um compêndio de regras disciplinares firmes, pautadas na obediência ao mestre, obediência as regras, sejam elas divinas ou humanas, e por fim obediência aos ensinamentos bíblicos.

Ressalta-se que o método escolástico, enquanto uma prática pedagógica, curiosamente é pensado em meio a um turbulento contexto social e religioso. Lembra-se que a sociedade do século XII, inicia um questionamento ante o controle da igreja, começa a surgir também um número crescente de heresias. É a época das cruzadas, começa a emergir a burguesia, e novas relações de comércio e políticas surgem na esteira dessas transformações.

Logo, o método escolástico é a junção entre o saber filosófico clássico, especialmente a partir dos textos de Aristóteles e a Bíblia sagrada. Método esse construído como resposta efetiva às demandas sociais, religiosas e econômicas da sociedade medieval. Cambi observa que:

A Escolástica prepara uma releitura da educação que envolverá de modo radical e inovador tanto os processos de formação quanto de aprendizagem. A estes últimos, as universidades deram contribuição fundamental com a sua organização de estudos e com os mestres que elaboraram aquelas técnicas de trabalho intelectual, mas os modelos de formação que devem guiar o trabalho educativo foram enfrentados pelos

grandes intelectuais da Escolástica, com metodologias derivadas da grande disputa sobre razão e fé que atravessa o florescimento – 1200/1300 – da filosofia escolástica. (CAMBI, 1999, p. 186)

O principal expoente da escolástica e responsável pela releitura e atualização a partir das escrituras sagradas dos textos aristotélicos foi São Tomás de Aquino. Esse concebe a educação com uma visão de totalidade, onde estudar diz respeito à existência humana, alcançando a vida ativa e a vida contemplativa.

Sublinha-se nesse breve percurso sobre as ideias e práticas pedagógicas na Idade Média, o surgimento de um poder disciplinar ancorado nas ideias pedagógicas desse período, fazendo emergir um poder pastoral48 na sociedade, alicerçado principalmente no conceito de

disciplina, como observa-se a seguir.

A palavra doctrina é um termo derivado do latim, que significa fazer aprender, ensinar. Por sua vez, a palavra disciplina deriva da latina, que significa aprender. [...] esses termos predominaram na linguagem pedagógica da Idade Média e só foram substituídos a partir dos séculos XVI e XVII por outras vozes como “ensino”, “ensinar”, “aprender”, “instruir”, “instrução”, “educar” e “educação” e seus correspondentes vocábulos nas demais línguas românticas e germânicas. Tal diversidade de termos exprime a complexidade que, por aqueles séculos, adquiriram as reflexões e as práticas pedagógicas e educativas, e contrata com a austeridade do vocábulo pedagógico medieval. (NOGUERA-RAMIREZ, 2011, p. 26)

Vai se delineando assim um contexto para uma modernidade essencialmente educativa, como atesta o autor acima citado. Esse viéis educativo, profundamente influenciado pelos elementos pedagógicos dispostos na Idade Média, influencia os principais teóricos da educação moderna, como podemos observar nos escritos de Jean Amos Comenius49 por exemplo. Comenius na sua clássica obra Didática magna, considerada um

marco na história da pedagogia, tem como premissa basilar “ensinar tudo a todos” (COMENIUS, 1985, p.49) apresentando para esse fim um método, ou por assim dizer, uma prática pedagógica universal.

Como pastor protestante Comenius estrutura seu projeto pedagógico nos discursos e práticas protestantes, e em sua obra, norteia arte de ensinar com o tema da salvação, resultando disso um poder pastoral. As consequências desse poder pastoral na pedagogia, está na excessiva ênfase em princípios religiosos como norteadores de práticas pedagógicas.

48 O poder pastoral segundo Foucault: “não tem por função fazer mal aos inimigos; sua principal função é fazer o

bem em relação àqueles de que cuida. Fazer o bem no sentido mais material do termo significa alimentá-lo, garantir sua subsistência, oferecer-lhe um pasto, conduzi-lo às fontes, permitir-lhe beber, encontrar boas pradarias. Consequentemente, o poder pastoral é um poder que garante ao mesmo tempo a subsistência dos indivíduos e a subsistência do grupo, diferentemente do poder tradicional, que se manifesta essencialmente pelo triunfo sobre os dominados. Não é um poder triunfante, mas um poder benfazejo. (FOUCAULT, 2014b, p. 65)

49 Ressalta-se que Comenius é citado nesse tópico pela relação de seus escritos com o poder pastoral, pois esse