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CAPÍTULO IV – MICROFÍSICA DO CURRÍCULO

4.5 CURRÍCULO E CUIDADO DE SI

O governo de si, com as técnicas que lhe são próprias, tem lugar ‘entre’ as instituições pedagógicas e as religiões de salvação. Não é uma obrigação para todos, é uma escolha pessoal de existência. (FOUCAULT, 2010, p.480)

O cuidado de si é uma noção que Foucault recupera dos gregos, é uma forma de ocupar-se consigo mesmo, para esse fim os gregos criaram muitas técnicas de si60, utilizadas

como um exercício continuo de si mesmo, uma forma de construção de si. Com efeito, o ocupar-se consigo mesmo aponta uma relação “singular, transcendente, do sujeito em relação ao que o rodeia, aos objetos que dispõe, como também aos outros com os quais se relaciona, ao seu próprio corpo e, enfim, a ele mesmo” (FOUCAULT, 2010, p. 50).

Ao se tratar de prática pedagógica nessa pesquisa, observa-se relevante a problematização desse conceito desenvolvido por Foucault de cuidado de si, afinal precisa-se refletir todos que trabalham na educação, sobre aquilo que estar-se fazendo de nós mesmos.

60 Foucault define técnicas de si como: os procedimentos, que, sem dúvida, existem em toda civilização,

pressupostos ou prescritos aos indivíduos para fixar sua identidade, mantê-la ou trasformá-la em função de determinados fins, e isso graças a relações de domínio de si sobre si ou de conhecimentos de si por si (FOUCAULT, 1997, p.109).

Tem-se observado a partir de dados empíricos dessa pesquisa, que a prática pedagógica se tornou essencialmente uma prática de instrução, e não mais de formação, de uma Paideia como pensavam os gregos antigos, ou de Bildung como na modernidade pensaram os alemães. E muito desse ápice da instrução como norteadora de uma prática pedagógica está na impossibilidade de se refletir sobre si, sobre sua prática, sobre suas escolhas etc. A identidade docente, e, por conseguinte sua prática de si, é esfacelada na contemporaneidade, considerando que o Estado impõe uma identidade ao docente, e cria, justifica e reproduz toda uma cadeia de práticas discursivas e jogos de verdades para esse fim, porém, o que possibilita pensar uma identidade docente, é o cultivo de práticas de si. Como nos diz Foucault:

Os procedimentos, que, sem dúvida, existem em toda civilização, pressupostos ou prescritos aos indivíduos para fixar sua identidade, mantê-la ou trasformá-la em função de determinados fins, e isso graças a relações de domínio de si sobre si ou de conhecimentos de si por si. (FOUCAULT, 2010, p.462).

A ideia de relacionar o cuidado de si (epiméleia heautoû) ao currículo, é a tentativa de abrir linhas de força frente ao enrijecimento conceitual do dispositivo curricular. Parte-se da premissa, já exposta que o currículo oculto, noção essa abandonada nesse trabalho, pois aqui considera-se, currículo oficial (dispositivo maior) e currículo oculto (dispositivo menor). Esse último, quando pensado a partir do cuidado de si considerando um de seus domínios que é o “valor coletivo”, é a possibilidade de abertura dentro do fechado mundo que até agora pensou-se a constituição da subjetividade discente e docente. Entende-se que essa mudança na analítica curricular, poderá produzir algumas mudanças na prática pedagógica, elencando a possibilidade de um retorno ou conversão do sujeito a si mesmo, provocado pelas desfamiliarização do jogo das relações verdade/poder, saber/poder.

Essa possibilidade de pensar do currículo menor para uma ética do cuidado de si, só é possível pela possibilidade de desterritorialização que esse possui, na qual é possível fugir de territórios forçados, em busca de novas relações, tendo em vista seu caráter institucional, entretanto não institucionalizado. Destarte que pelo seu caráter não “oficial” ele pode se tornar, caso compreendido dentro de uma relação de poder, e desancoragem dessa nomeação/conceituação de oculto, como um dispositivo de resistência e ancoragem de uma ética educacional do cuidado de si.

Talvez se questione a importância para a educação de uma ética educacional do cuidado de si, entretanto, dizendo com Foucault:

O êthos também implica uma relação com os outros, já que o cuidado de si permite ocupar na cidade, na comunidade ou nas relações interindividuais o lugar

conveniente, seja para exercer uma magistratura ou para manter relações de amizade. Além disso, o cuidado de si implica também a relação com o outro, uma vez que, para cuidar bem de si, é preciso as lições de um mestre. Precisa-se de um guia, de um conselheiro, de um amigo, de alguém que lhe diga a verdade. Assim o problema das relações com os outros está presente ao longo do desenvolvimento do cuidado de si (FOUCAULT, 2014b, p. 264-265)

Observa-se que esse êthos está relacionado com a maneira de ser e também a maneira de se conduzir. Assim, o sujeito se faz visível a si e também aos outros, pois essa é uma ação que condiciona uma relação com o outro em sentido original, onde para efetivar o cuidado de si, faz-se necessário o cuidado do outro, dito de outra forma, esse cuidado é parte intrínseca ao próprio modo de vida do sujeito, tendo como referência para essa assertiva o mundo grego.

Outro ponto a ser desenvolvido para pensar essa possibilidade de relação entre o currículo menor e a uma ética educacional do cuidado de si está na trama conceitual elaborada por Foucault, precisamente sobre o conceito de tékhne, desenvolvido principalmente a partir dos cursos ministrados por ele, que compreende a Hermenêutica do Sujeito, sobre isso ele acrescenta:

O que deve ser obtido por meio de toda a tekhne que se aplica à própria vida, é precisamente uma certa relação de si para consigo, relação que é o coroamento, a completude e a recompensa de uma vida vivida como prova. A tékhne toû bíou, a maneira de assumir os acontecimentos da vida devem inscrever-se em um cuidado de si que se tornou agora geral e absoluto. Não nos ocupamos conosco para viver melhor, para viver mais racionalmente, para governar os outros como convém; era esta, com efeito, a questão de Alcibíades. Deve-se viver de modo que se tenha consigo a melhor relação possível. Diria, finalmente, numa palavra: vive-se ―para si (FOUCAULT, 2010, p. 403).

Ressalta-se que a concepção grega da techne como um conjunto de técnicas, ajuda-nos a compreender a escolha desse conceito por Foucault, e sua relação com o cuidado de si. É essa techne que possibilita ao indivíduo o exercício de um cuidado sobre si mesmo, concentrando seus empenhos à formação, e ao aprimoramento do seu modo de vida.

A observação que Foucault faz sobre o conceito de tékhne, distingue-se do dualismo postulado na contemporaneidade, o primeiro que cultiva a herança moderna, que confundiu formação com transmissão, e a segunda que em nome de uma educação emancipadora tem como pretensão a distância da técnica.

Sobre a concepção moderna de tékhne coadunando com a educação, observa-se que essa tem sua gênese a partir do descontentamento, quando se observa o fim último que tem a educação, onde essa deveria ter como meta a formação do indivíduo e sua autonomia, como postula a maioria dos pedagogos e pensadores da educação. Entretanto, a pedagogia

moderna confundiu formação com instrução, onde esse processo é resumido em uma mera transmissão de saber técnico, onde formar, nesse contexto, significa preparar o sujeito para as demandas do mercado de trabalho, gerando por vezes, e quase sempre, um ambiente competitivo, onde o outro precisa ser vencido, derrotado, eliminado, esquecendo que o outro é indispensável para a prática de si. Acrescenta Foucault:

O outro ou o outrem é indispensável na prática de si a fim de que a forma que define esta prática atinja efetivamente seu objeto, isto é, o eu, e seja por ele efetivamente preenchida. Para que a prática de si alcance o eu por ela visado, o outro é indispensável. Esta é a fórmula geral. (FOUCAULT, 2010, p.158)

Entretanto, o que se pode aferir é o distanciamento se si e dos outros promovido pelo mundo moderno, presente no sistema educativo e consolidado pelo currículo, pois como observa Hanna Arendt61, existe uma crise no mundo moderno que atingiu em cheio a

educação.

O filósofo alemão Gadamer contribui para compreensão dessa crise no mundo moderno que atinge a educação, em uma de suas reflexões observa que os cientistas “(...) estão tão obcecados e presos pelo metodologismo da teoria da ciência que só conseguem ver regras e sua aplicação. Não percebem que a reflexão sobre a práxis não é técnica” (GADAMER, 2002, p. 514). Essa maneira unívoca de enxergar o mundo trouxe aos cientistas um olhar reducionista sobre o indivíduo, como se o processo de formação se resumisse a aplicação de métodos.

Fazendo um deslocamento conceitual, muitos professores, seguem à risca o mesmo procedimento, “estão tão obcecados e presos pelo metodologismo da teoria da ciência que só conseguem ver regras e sua aplicação”, mantendo-se, assim, distantes dos seus alunos, engessados a uma gama de métodos, que foram criados e pensados de forma inócua e insuficiente, na principal relação pedagógica, a de ensino/aprendizagem, pois em via de mão única pensaram sobre como ensinar, e para isso criaram métodos para como ensinar, não se preocupando com a relação com quem vai aprender, e principalmente com um modelo ético imbricado nessa relação.

O modelo que temos de educação é um modelo que fabrica subjetividades, e quando se pensa em dispositivos de subjetivação, com efeito, lembra-se do currículo, pois esse em todos os seus meandros enfatiza e destaca a racionalidade como se fosse a única constituinte do ser, descaracterizando outros modos de ser, que compreende a si e aos outros.

61 No livro Entre o passado e o futuro, Hanna Arendt desenvolve um texto intitulado A crise na Educação, nesse

texto a autora observa que não existe uma crise própria da educação, por isso o título se refere “a crise na”, “e não dá educação”, o que existe é uma crise no mundo Moderno que alcançou a educação.

Perspectiva-se assim, o cuidado de si como uma prática de liberdade, frente às tecnologias de subjetivação advindas da Biopolítica. Nesse sentido, faz-se necessário pensar as técnicas que nos permitam refletir nosso caminho de vida, o sentido da nossa existência e nos transformar de acordo com uma decisão pessoal, não por processos de subjetivação, essas técnicas são conhecidas como tecnologias do eu. Assim essas práticas representam um processo distinto da subjetividade, trazendo no seu bojo o importante questionamento: como podemos mudar o que nos tornamos?