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CAPÍTULO V – DESLOCAMENTOS DE UMA PRÁTICA

5.4 COMPROMISSO DE PENSAR O PRESENTE

Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considere a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. Não serei o cantor de uma mulher, de uma história. Não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela. Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida. Não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins. O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente (Carlos Drummond de Andrade – Mãos Dadas)

O curioso da existência, é que não vivemos nem no passado, e tão pouco no futuro, vivemos o presente, e, portanto, não se pode desprezar a riqueza do hoje, do “tempo presente, os homens presentes, a vida presente”.

Embora em contextos diametralmente distintos, Michel Foucault e Carlos Drummond de Andrade se aproximam quanto ao tempo presente ser a matéria, o objeto de estudo. Para o primeiro, a filosofia não deveria se furtar a diagnosticar o presente, dizendo de outro modo, a filosofia deveria pautar suas reflexões em uma ontologia do momento presente.

A ontologia pensada por Foucault questiona como somos constituídos, dentro de práticas situadas em cada momento histórico, práticas essas discursivas e de governamento que são constituintes do sujeito. Portanto, a ontologia reflete sobre o sujeito e como esse é produzido dentro dos jogos de verdade, problematizando condições e possibilidades de novas práticas de liberdade e resistências a partir de uma nova concepção de sujeito resultante dessa crítica ontológica de nós mesmos.

Nesse sentindo, faz-se necessário atentar para os deslocamentos que Foucault promove dentro do âmbito das questões ontológicas, e ele o faz, a partir do problema kantiano

Aufklärung postulando o uso público da razão, que a nosso ver, atinge a educação em consideráveis domínios. Dessa feita, a partir da reflexão do texto de Kant79, Foucault é

conduzido a um plano da subjetividade, no que tange ao aspecto de si mesmo, atrelado às tecnologias de fabricação da subjetividade. Este nível, é notamente ético e não é abordado por Foucault como uma mera curiosidade teórica, e sim a partir de uma agitação política ligada a preocupação com o presente.

Observa-se assim, que a questão formulada por Foucault não é responder à pergunta kantiana “quem somos nós", pois dessa feita estaria se remetendo ao transcendental, e sim, apontar para um sujeito diferente, que hoje não é o mesmo pelo exercício do devir, alinhado conjuntamente aos processos de subjetivação. Logo, a pergunta ressignificada é: o que se passa conosco, ou ainda o que fazemos de nós mesmos? Para o qual é necessário fazer um diagnóstico do presente no afã de responder essa questão. Observa Foucault:

[...] existe na filosofia moderna e contemporânea um outro tipo de questão, um outro modo de interrogação crítica: é esta que se viu nascer justamente na questão da

Aufklärung ou no texto sobre a revolução; “O que é nossa atualidade? Qual é o campo atual das experiências possíveis? ”. Não se trata de uma analítica da verdade, consistiria em algo que se poderia chamar de analítica do presente, uma ontologia de nós mesmos. (FOUCAULT, 2000, p. 351)

Com efeito, a ontologia pensada por Foucault se configura como uma atitude de constante suspeita, sobre aquilo que se é, ou, e, até mesmo por aquilo que se acostumou a acreditar que se é. Dessa feita, “ o que importa não é descobrir o que somos nós, sujeitos modernos; o que importa é perguntarmos como chegamos a ser o que somos” (VEIGA- NETO, 2014, p. 40), para como nos indica Foucault contestar aquilo que nos tornamos.

Ressalta-se que esse exercício de suspeição, é importante no âmbito educativo, marcados por alguns discursos essencialmente universalistas, do tipo: educação como

progresso, como emancipação dentre outros, que trazem uma visão de sujeito no plano educacional que notadamente não condiz com a realidade.

Existe um contraste no campo educativo entre os discursos, teorias e políticas educacionais e as mudanças sociais. Esteve (1999) compara esse contraste a um grupo de atores em determinado cenário, vestidos com trajes de determinada época, e que de repente sem um aviso prévio, muda-se completamente o cenário. Um cenário pós-moderno, colorido e fluorescente dar lugar ao antigo cenário clássico. De início a reação de surpresa, depois vem a tensão, o desconcerto seguido de um sentimento de agressão, desejando acabar a apresentação para procurar os responsáveis para tomar satisfação.

Esteve questiona diante do quadro: o que fazer? Continuar a recitar versos a encenar com roupas pesadas em meio a um cenário pós-moderno cheio de cores e de luzes, ou abandonar o trabalho. A questão bem formulada por Esteve, é que independente de quem provocou a mudança, “são os atores que dão a cara” (ESTEVE, 1999, p. 97)

Como aponta o referido autor, tal como os atores descritos no exemplo acima, os professores enfrentam circunstância de mudanças, que obrigam igualmente o professor a fazer o seu trabalho, e ainda, trabalhando com modelos teóricos, ideias de sujeitos do século passado, sem serem atualizadas, ressignificadas diante das demandas sociais e educacionais do tempo presente.

Com efeito a ontologia do presente vertida à educação, vem perspectivar distante de qualquer racionalismo, positivismo ou humanismo questões de primeira ordem no universo educativo sobre o “que nos é apresentado como universal, necessário, obrigatório, qual é a parte singular, contingente e fruto das imposições arbitrárias (FOUCAULT, 2000, p. 348). É mister que das instituições sociais, nenhuma comunga no relevo de suas ações de discursos, ações e políticas de caráter universal, necessário e obrigatório do que a instituição escolar. Dessa feita a prática educativa como nenhuma outra deveria protagonizar o exercício de suspeição, e se avançarmos na reflexão, a prática pedagógica igualmente deveria ser construída e reconstruída como um exercício de suspeita, partindo da questão: em que essa prática me transforma no caso do professor, e em que ela está transformando os alunos. A instituição escolar, tornou-se, portanto, um lugar que não dirige ao governo de si, mas que insere um respeito pelo governo estatal a partir de tecnologia de governamentalidade. Esta instituição se tornou um lugar que permite conhecer a maior parte dos conteúdos e conceitos historicamente formulados, sem, no entanto, por vezes compreendê-los. A escola se tornou um lugar que ao se entrar quando criança, se questiona

tudo e, ao sair quando adulto, não se questiona mais nada tornando-se subserviente à autoridade da ciência e dos conteúdos.

Pensa-se a necessidade urgente de defrontar-se com essas e outras realidades que a escola apresenta. Esse defrontar-se poderia modificar o modo de pensar e fazer educação, promovendo distanciamentos críticos de dados regimes de verdades universais e de metanarrativas engenhosamente construídas, e aproximações do nosso tempo, da nossa prática e, principalmente de nós mesmos promovendo um desassossego intelectual e um abandono de uma zona pedagógica de conforto.