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CAPÍTULO IV – MICROFÍSICA DO CURRÍCULO

4.4 NOÇÃO DE CURRÍCULO MENOR

Tem-se como pretensão nesse tópico, operar por deslocamentos conceituais, dito de outra forma, extrair um conceito de um campo específico, nesse caso da literatura, e trazê-

lo para educação, especificamente para pensar o currículo. O conceito em questão é o de “Literatura menor”, que nos propõe um exercício do pensamento para pensar um “Currículo menor” como prática de resistência as já conhecidas relações de poder.

Os filósofos Deleuze e Guattari criaram o conceito de literatura menor a partir da obra de Franz Kafka, um judeu tcheco, que impossibilitado de escrever na língua materna, faz a opção de escrever em alemão. Essa opção decorre de Praga, que era sua cidade natal, estar sob a ocupação dos alemães. Ressalta-se que Kafka, teria a possibilidade de escrever em outras línguas, que eram do seu conhecimento, como exemplo cita-se, o hebraico, que tinha um valor histórico e místico para a região, e também o tcheco.

Apesar do idioma alemão não ser a língua que ele tinha maior domínio, ele optou por escrever nesse idioma, considerado Maior, para assim dar conta dos problemas de linguagem de uma cultura considerada Menor, ou seja, a Literatura Menor, através de Kafka, conquistou espaço e desequilibrou a Literatura Maior da região, mesmo sendo escrita numa língua maior. Como nos diz Olarieta “é essa condição de declarar-se exilado de toda língua que o leva a escrever em alemão, essa língua maior, para fazê-la dizer de um jeito menor” (OLARIETA. 2008, p. 71). Defende-se que o currículo oculto necessita ser desterritorializado abrindo espaço para um currículo menor, não é uma mera mudança de nome ou de conceito, mas de posição, de resistência.

Ressalta-se que o texto de Deleuze e Guattari “Kafka: por uma literatura menor”, tem como objetivo ampliar o sentido de Menor para além da condição de inferioridade ou de desvalorização como comumente visto. Os filósofos franceses definem o conceito da palavra “menor” não como um valor diminuído, mas como uma língua de uma minoria diante de uma maioria. Dizendo como Deleuze e Guattari:

Kafka define, nesse sentido, o beco sem saída que barra aos judeus de Praga o acesso à literatura deles algo impossível: impossibilidade de não escrever, impossibilidade de escrever em alemão, impossibilidade de escrever em outra maneira. Impossibilidade de não escrever, porque a consciência nacional, incerta ou oprimida, passa necessariamente pela literatura. A impossibilidade de escrever de outra maneira que não em alemão é para os judeus de Praga o sentimento de uma distância irredutível em relação a uma territorialidade primitiva, a tcheca. (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 25-26).

Seguindo as trilhas abertas por Deleuze e Guattari, uma Literatura Menor torna-se uma questão eminentemente política, trata-se assim, na visão dos filósofos franceses de ser um estrangeiro em sua própria língua. Dessa forma, a Literatura Menor está associada a um devir minoritário, construindo linhas de fuga para a criação de novas forças, de outras formas de literatura, de diferentes formas de escrita, e principalmente de outras formas de pensar.

Pensa-se, ou deve-se pensar em formas igualmente distintas de currículo, pensar um currículo menor é criar um dispositivo para pensar o currículo, aquele que temos contato no nosso dia a dia, aquele que pode ser subvertido frente às políticas curriculares.

Por sua vez, enquanto a Literatura Menor busca outra forma de escrita, segundo Sílvio Gallo, “A literatura maior não se esforça por estabelecer elos, cadeias, agenciamentos, mas sim para desconectar os elos, para territorializar-se no sistema das tradições a qualquer preço e a toda força. ” (GALLO, 2008, p. 63). Pode-se entender com esta afirmação que a Literatura Maior se apresenta segura no espaço em que se encontra, ou seja, não há o desejo de mudar a sua posição, de criar elos e, sim, o que ela deseja, é manter-se em seu poder, em seu território já instituído.

Observa-se ainda que, o conceito de “menor” elencado nesse trabalho, consiste no sentido desagregador da própria língua através da noção de currículo, subvertendo-o, apresentando um devir outro, ou seja, novas possibilidades, outros lugares que desestabilizam um lugar de poder, instituído socialmente e culturalmente para o currículo oficial, que aqui chamar-se-á de currículo maior. Ressalta-se que não se objetiva acentuar nenhum binarismo entre currículo menor x currículo maior, e, sim, afirmando que o currículo menor, ao invés de ser contrário ao currículo maior, ele se realiza dentro do currículo maior, sem necessariamente se constituir como oposição dialética, e, portanto, metafísica.

Outro exemplo a ser citado, é o que nos traz Sílvio Gallo, nesse caso sobre literatura, mas que nos ajuda a pensar com clareza essa relação, entre “Maior” e “Menor”, ele nos diz que: “... as primeiras obras escritas no Brasil, após a colonização, por brasileiros eram literatura menor, pois faziam da língua portuguesa, já estabelecida como literatura maior, um novo uso, sob novos parâmetros na busca de uma nova literatura” (GALLO, 2008, p.64).

Outra importante contribuição de Gallo (ibid., p. 63), está na observação que o mesmo faz. Segundo ele, Deleuze e Guattari apontam três características fundamentais para uma Literatura Menor, que será utilizada nesse trabalho como transposição conceitual para pensar o currículo.

A primeira diz respeito à “desterritorialização da língua”, na qual é possível fugir de territórios forçados, em busca de novas relações. A segunda é a “ramificação política”, já que a Literatura Menor nos leva a um ato revolucionário, desafiando o sistema vigente, sendo, então, um ato político. Para concluir, a terceira é sobre o “valor coletivo”, já que uma Literatura Menor está sempre voltada para alguma comunidade. Por mais que o autor busque singularidade, sua obra, será lida e interpretada de diferentes formas e por leitores diversos, tornando-se, então, pertencente a toda a coletividade.

A desterritorialização da língua - “toda língua tem sua territorialidade, está em certo território físico, em certa tradição (ibid., p.75). No âmbito do que se propõe nesse tópico, a desterritorialização não é da língua, e sim do currículo, das políticas, dos parâmetros curriculares, faz-se necessário resistir a essas relações de poder, e pensar possibilidades distintas, e produzir diferenças reais. É possível? Claro que sim, quantos professores chegam a transgredir o currículo, as vezes por entender que não se encaixa com a formação de seus alunos, ou mesmo pela experiência tácita do seu fazer pedagógico, discernem um conteúdo dilatante do real.

A ramificação política - na visão de Deleuze e Guatarri, a literatura menor traz agenciamentos, que geram ramificações políticas, pois o próprio ato de existir é um ato político. Considerando que o currículo maior advém de uma política curricular, o currículo menor como uma prática de resistência não deixa de ser um ato político. Contudo o currículo menor não busca uma totalidade, não visa impor soluções, cabe a ele resistir, criar linhas de fugas, novos agenciamentos, ramificar-se politicamente, conduzindo em um fazer pedagógico contrário à produção de sujeitos.

Valor coletivo – desconstrói-se nessa noção de individuação, pois tudo na literatura menor, ganha um valor coletivo. Observa-se que a sociedade está cada vez mais determinada por relações de ordem técnica que enaltece a razão instrumental, em detrimento das interações humanas, essa lógica contemporânea da atual sociedade alcançou em cheio as instituições escolares, transformando esse espaço em um exercício de técnicas procedimentais, e enfim, um lugar de individualismo.

Um dos grandes problemas que a noção do “Eu” cartesiano trouxe ao âmbito das relações sociais, está na visão e na relação que se passa a ter com o outro, pois o outro a partir de Descartes é um “produto do meu pensamento, assim como todas as outras coisas das quais posso ter certeza racional” (GALLO, 2008a, p.2). Eis o que se configurou na modernidade em um grave problema ético. Prosseguindo com o pensamento de Gallo, observa-se:

Isto significa dizer que penso, tematizo, concebo o outro sempre na interioridade de meu ser, na interioridade de meu pensamento. O outro é um conceito, um efeito do pensamento. O outro de que falo é uma representação; isto é, não tematizo o outro enquanto outro, alteridade absoluta, mas o tematizo como efeito de meu próprio pensamento [...] o outro não passa de algo que eu mesmo crio no pensamento. (GALLO, 2008a, p. 3-4)

A relação ética, o valor coletivo de uma ação, tão desvalorizada nos dias atuais que, segundo o filósofo lituano Emmanuel Lévinas59, constitui-se como “a filosofia primeira”,

ou seja, dessa relação com o outro surge a verdadeira reflexão filosófica, pois parte de uma filosofia da práxis, haja vista que está ancorada no mundo prático da vida, e nada é tão prático quanto à relação com o outro, experiência essa que tem sido pouco priorizada na instituição escolar.

O valor coletivo, proposto em currículo menor, contrasta com uma sociedade marcada, ou por que não dizer, constituída pela competição e ausência de solidariedade, onde as técnicas cientificistas trazem uma impessoalidade nas relações.

Esse aspecto da sociedade aponta não só para a falência do método quanto um treinamento antissolidariedade, mas também e principalmente, como o fechamento do “EU” em si, sem abertura para o diálogo, para o valor coletivo das ações, causando um entrave no processo de formação, e principalmente na incapacidade de reconhecimento do outro.

O currículo menor, no seu âmbito de valor coletivo, é uma aposta da diferença, da multiplicidade, da interação, da solidariedade, não é um projeto de um, mas de todos. É fato que se corre o risco de um processo de resterritorialização, da individuação das ações, da institucionalização política, porém, o fato de pensar novas fronteiras curriculares, por si só já seria um passo importante na construção de uma escola diferente do que temos tido.