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CAPÍTULO IV – MICROFÍSICA DO CURRÍCULO

4.1 RESSIGNIFICAÇÃO DO CURRÍCULO

O momento atual, seja ele cunhado de pós-moderno ou hipermoderno traz no seu bojo consideráveis transformações das condições de organização da vida no âmbito social, cultural, político e educacional. Esse último é o que goza de maior atenção, pois direta ou indiretamente ele se articula e dá materialidade e respaldo epistemológico aos outros âmbitos, sendo a recíproca verdadeira. Porém, essas transformações no âmbito educacional, são tímidas, quando não superficiais, alicerçadas em meras construções retóricas.

Com efeito, compreende-se que essas mudanças acima descritas circunscritas no contexto da biopolítica53, pensada por Foucault, expõe a necessidade que alguns dispositivos e

instituições do corpo social sejam ressignificadas/desfamiliarizadas conceitualmente, atendendo a uma própria dinâmica da vida que estrutura a biopolítica, bem como a compreensão que é possível que as engrenagens do corpo social e da instituição escolar tenham se modificados, exigindo-nos de certa forma, abandonar algumas ferramentas do nosso uso pessoal e de quase relação fraternal, para, lembrando-se de Foucault, voltarmos a “caixa de ferramentas” em busca de algumas ferramentas ainda não utilizadas, ou mesmo alternar, mesclar, o uso das novas com as já utilizadas, que possam dar conta dos problemas próprios da escola atual e do nosso tempo.

Das instituições a serem ressignificadas/desfamiliarizadas conceitualmente, destaca-se a instituição escolar. E ao referir-se à escola, faz-se necessário destacar o seu duplo papel. Em primeiro lugar, a escola é o espaço gerador de mudança e práticas importantes de formação de seus alunos, embora essa formação tenha se convertido hoje em dia em mera instrução técnica, mas, por outro lado, a escola mantém o statuo quo, que sufoca o pensamento e o isola da realidade, isso em grande parte é consolidado pelos dispositivos curriculares. A escola, assim, torna-se uma mera transmissora de dados, e conhecimento de

53Esse termo é pensado por Foucault para referir-se a forma na qual o poder tende a se modificar no final do século XIX e início do século XX. O autor observa que as práticas disciplinares utilizadas antes visavam governar o indivíduo, e a biopolítica tem como alvo o conjunto dos indivíduos, a população.

outros processos de pensamento, que contribuem e reforçam, aliadas às produções discursivas, à disciplinarização e subjetivação influenciando diretamente a prática docente e a experiência de si.

Pensando com Jan Masschelein e Maarten Simons (2014)54, não se condena a

escola, ou assevera ser ela o pior dos mundos, ao contrário disso, acredita-se no poder renovador da escola. Concorda-se com os autores citados quando os mesmos observam:

Nós nos recusamos, firmemente, a endossar a condenação da escola. Ao contrário, defendemos a sua absolvição. Acreditamos que é exatamente hoje – numa época em que muitos condenam a escola como desajeitada frente à realidade moderna e outros até mesmo parecem querer abandoná-la completamente – que o que é escola é e o que faz se tornar claro. Também esperamos deixar claro que muitas alegações contra a escola são motivadas por um antigo medo e até mesmo ódio contra uma de suas características radicais, porém essencial: a de que a escola oferece “tempo livre” e transforma o conhecimento e as habilidades em “bens comuns”, e, portanto, tem o

potencial para dar a todos, independentemente de antecedentes, talento natural ou aptidão, o tempo e o espaço para sair de seu ambiente conhecido, para se superar e renovar (e, portanto, mudar de forma imprevisível) o mundo. (MASSCHELEIN, SIMONS, 2014, p.10)

Ao acentuar-se o caráter disciplinador e subjetivador da escola em dado momento desse texto, não se tem como pretensão a crítica pela crítica, caminhando a nosso ver nas teses inconstantes de Ivan Illich55, quando ao expor alguns problemas e contradições da instituição

escolar, propõe uma sociedade sem escolas. O que se pretende perspectivar é a ressignificação que a escola a partir de seus componentes estruturais necessita passar, pois é visível que a instituição escolar aparece como espaço social de legitimação, produção e transmissão de conhecimento no âmbito de ações desenvolvidas e planejadas, utilizando-se de um importante dispositivo para esse fim, que é o currículo. Esse é responsável pela hierarquia do conhecimento, preferências de conteúdos, valorização de alguns conhecimentos em detrimento de outros, como resultado da existência de condições estruturais que o regem.

Para seu uso e aceitação, o currículo tem um conhecimento que o justifique, e o legitime, frutos das teorias sobre o currículo conceituando suas mais diversas facetas, seja ele organizado em ciclos, integrado, ou mesmo por competência, sempre consolidando sua importância, necessidade e enrijecimento conceitual. Entretanto, também existe uma autoridade exercida a priori, resultante da configuração de certos efeitos de verdade e realidade contextual, nesse caso comumente chamado de currículo oculto, que nessa pesquisa56 é elencado a partir de uma analítica distinta, sobre a ótica da microfísica

54 Autores do livro “Em defesa da escola: Uma questão pública” 55 Autor do livro “Sociedades sem escolas”

considerando esse currículo não a partir de uma relação dialética com o currículo oficial, e sim como parte constituinte do mesmo, transpassado por relações de poder, que em um fim último tem os mesmos objetos e objetivos.

Observa-se assim, que dentre os dispositivos a passarem por ressignificações conceituais, destaca-se o currículo, considerando que esse "[...] vem funcionando, desde a sua invenção nos fins do século XVI, como um dos mais poderosos dispositivos encarregados de fabricar o sujeito [...]" (VEIGA-NETO, 2001, p. 235). Dessa feita, o currículo tem se tornado um mecanismo disciplinar que liga uma rede de relações de poder que devem funcionar de uma maneira e não de outra para alcançar seus fins de subjetivação na educação.

O problema posto acima por Veiga-Neto, abre veredas de questionamentos sobre o real funcionamento do dispositivo curricular. Como por exemplo, que multiplicidade de sujeitos são fabricados por certos currículos? O que torna determinadas teorias e práticas curriculares hegemônicas em dados momentos? Quais produções discursivas são utilizadas no ato de construção de uma matriz curricular? Quais efeitos de verdade o currículo cria, sistematiza e consolida? E por fim, quais epistemologias enrijecem o currículo, ao ponto de limitar possibilidades outras de modo de subjetivação?

É fato que não se pretende procurar resposta a esses questionamentos, porém, compreende-se que ao mudar o sentindo da pergunta metafisica “o que é o currículo” para uma pergunta de cunho pós-estruturalista de “como funciona o currículo”, pode-nos guiar a caminhos de compreensão de algumas respostas, ou mesmo de ressignificação de algumas perguntas, de certo, é que a perspectiva muda, e com ela as possibilidades de entendimento também, bem como a exposição, das até então ocultas relações de poder que nutrem o currículo e justificam sua existência.

Com efeito, faz-se necessária a fuga dos esquematismos que concebem o estudo do currículo, que seguem notamente essa ordem:

1) a tradicional, humanista, baseada numa concepção conservadora da cultura (fixa, estável, herdada) e do conhecimento (como fato, como informação), uma visão que, por sua vez, se baseia numa perspectiva conservadora da função social e cultural da escola e da educação; 2) a tecnicista, em muitos aspectos similar à tradicional, mas enfatizando as dimensões instrumentais, utilitárias e econômicas da educação; 3) a crítica, de orientação neomarxista, baseada numa análise da escola e da educação como instituições voltadas para a reprodução das estruturas de classe da sociedade capitalista: o currículo reflete e reproduz essa estrutura; 4) a pós-estruturalista, que retoma e reformula algumas das análises da tradição crítica neomarxista, enfatizando o currículo como prática de significação. (SILVA, 2010, p. 12-13)

No seu texto Silva admite desenvolver a noção pós-estruturalista, a questão a ser pensada, é que ao “retomar” algumas análises da tradição crítica neomarxista, está se

engendrando no arcabouço conceitual estruturas contraditórias a essa análise, uma dessas estruturas é o dualismo metafísico, presente na divisão analítica entre currículo oficial e oculto.

Tem-se como pretensão nessa pesquisa, ressignificar o currículo, pois esse tem estreita relação com a prática pedagógica a nível conceitual e no fazer pedagógico de cada professor. Assim, postula-se empregar um dado esforço conceitual, epistemológico e hermenêutico para não ceder as tentações de ao formular uma crítica, fazê-la utilizando-se da mesma matriz, seria como utilizar a água, para se enxugar.