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CAPÍTULO V – DESLOCAMENTOS DE UMA PRÁTICA

5.3 PARRHESIA E ÊTHOS NA CONDUÇÃO DO ENSINO

Eu digo a verdade, eu digo a verdade. E o que autentifica o fato de dizer-te a verdade é que, como sujeito de minha conduta, efetivamente sou, absoluta, integral e totalmente idêntico ao sujeito de enunciação que eu sou ao dizer-te o que te digo. Creio estarmos aqui no cerne da parrhesía. (FOUCAULT, 2010, p.365)

Com efeito, entre os anos de 1983 e 1984 o conceito de parrhesía75configurou-se o principal objeto de pesquisa de Foucault, tanto que seus últimos dois anos de curso no Collège de France, foram denominados de “A coragem da verdade”. Observa-se que essa temática permitiu a Foucault de forma transversal perpassar, por um lado o campo da política, no que tange como governar os outros, e por outro, o campo da ética, como governar a si mesmo.

Compreende-se esse conceito de parrhesía como o falar francamente, a coragem de dizer a verdade, com esse conceito Foucault aproxima-se de si próprio, quando interroga o estatuto da sua própria palavra, quando questiona igualmente o seu papel como intelectual público e os desafios da sua função.

Dentro das tecnologias de governamentalidade o Estado estabelece dadas visões da profissão docente, esse, historicamente já foi visto pelo Estado como sacerdote, como um civilizador e hoje como um profissional. Essa reflexão feita por Foucault a partir do conceito de parrhesía se diretivo à educação, poderia fazer-nos questionar, enquanto docente a

75Parrhesía, deriva do grego parrehêsia, encontrada pela primeira vez na literatura de Eurípedes, significa

identidade promovida pelo Estado e a real identidade docente, interrogando o estatuto do nosso discurso e de nossa prática pedagógica e pôr fim a dimensão política da docência.

Por mais que na atualidade o Estado insista nessa visão do docente como um mero funcionário, faz-se necessário observar que “ Os professores são funcionários, mas de um tipo particular, pois a sua ação está impregnada de uma forte intencionalidade política, devido aos projetos e às finalidades sociais de que são portadores” (NÓVOA, 1999, p.17). Compreende- se dessa feita que os professores são “inevitavelmente agentes políticos” (ibid., ibidem), porém, precisam reconhecer esse papel, refletindo sobre sua ação e sua função, pois estas refletem diretamente em sua prática pedagógica, a autocrítica docente, uma ferramenta de reposicionamento epistemológico, ético e político.

Defende-se nesta pesquisa que a prática pedagógica é o domínio capaz de permitir ao docente uma reflexão sobre sua identidade e sua subjetividade. Poderia se denominar de um devir pedagógico, esse exercício de perceber e refletir, e posteriormente operar deslocamentos na sua prática pedagógica. Esse devir é o fluxo continuo de agenciamentos, de diálogos que transformam a prática pedagógica ao longo do tempo em algo mais efetivo. Logo, se não há mudança na prática pedagógica, lida-se com uma prática governamentalizada e, por conseguinte, com uma identidade docente estatizada, e que, portanto, transfere essas técnicas de governamento a seus alunos, reproduzindo os distanciamentos entre teoria e prática, por exemplo.

Deveria não se ter medo de questionar, de perguntar sobre nossa prática pedagógica, como era, no que se transformou, qual seu funcionamento, para quem é direcionada, quais elementos a constituem, qual a dimensão ética e política da nossa prática. Talvez nos remetesse a um “cruel convite a sinceridade” nos diz Skliar.

Há uma história, uma herança, um monumento naquilo que chamamos educação. E, nessa história, a pergunta pela educação se volta sobre nós mesmos para obrigar a olhar bem. Olhar melhor nossa pergunta, pois toda pergunta pode ser também um abandono, uma obstinação, ou então um cruel convite à sinceridade (SKLIAR, 2003, p. 58)

Destarte, retoma-se a discursão sobre o conceito de parrhesía. Na aula de 10 de março no Collège de France,76 ao fazer o encaminhamento do estudo em direção a

consciência antiga, Foucault se inclina pelas práticas de si, e ao fazê-lo faz emergir a importância da figura do outro (o mestre, professor) no processo de formação de si. A noção aqui desenvolvida por Foucault e que pode ser diretiva a educação, é que a verdade não pode

ser alcançada por si mesma, ela precisa de um outro que exorte e que, de certa forma, retire o sujeito da alienação primeira.

Porém, precavendo-se de dúbias interpretações, Foucault distancia-se das análises meramente definicionais em prol de uma análise histórica do conceito de parrhesía. Assim pode-se dividir a parrhesía em quatro momentos históricos: o momento político, que problematiza o papel da parrhesía na democracia grega, o momento socrático de uma

parrhesía diretiva a ética, a parrhesía cínica e a parrhesía helenística.

Prioritariamente problematiza-se a diretiva, a ética e a política advinda dos momentos históricos que a constituíram. Dessa feita Foucault esclarece:

O termo parrhesía refere-se, a meu ver, de um lado à qualidade moral, à atitude moral, ao êthos, se quisermos, e de outro, ao procedimento técnico, a tékhne, que são necessários, indispensáveis para transmitir o discurso verdadeiro a quem dele precisa para a constituição de si mesmo como sujeito de soberania sobre si mesmo e sujeito de veridicção de si para si. (FOUCAULT, 2010, p. 334)

É impossível não considerar o discurso docente sem uma tékhne e sem um êthos que o possa servir de guia, porém, esses convergem inevitavelmente em uma parrhesía, ou seja, na coragem de dizer a verdade. Entretanto, esse dizer verdadeiro não parte apenas de um desejo, é antes, e principalmente a confluência de variados agenciamentos.

Na epígrafe inicial77 a verdade que Foucault se refere não é uma verdade

transcendente ou existente por si mesma, distante disso, Foucault se refere a uma verdade sem existência própria, ou seja, impossível de existir por si mesma. Logo, essa verdade tem como lugar a conduta ética e a ação política.

Pode-se, a partir das trilhas abertas por Foucault, deslocar o conceito de intelectual78 para a figura do professor, que não deixa de sê-lo, onde a sua função política,

semelhante à do intelectual, estaria intimamente ligada ao problema da produção da verdade e a ação, que estes devem exercer sobre a relação que o poder exerce sobre a verdade. Parte-se da possibilidade de construir uma política da verdade distinta.

77Eu digo a verdade, eu digo a verdade. E o que autentifica o fato de dizer-te a verdade é que, como sujeito de

minha conduta, efetivamente sou, absoluta, integral e totalmente idêntico ao sujeito de enunciação que eu sou ao dizer-te o que te digo. Creio estarmos aqui no cerne da parrhesía. (FOUCAULT, 2010, p.365)

78 O papel do intelectual faz parte das reflexões propostas por Foucault, e esse papel vai se configurando no

pensamento de Foucault a partir de agenciamentos ético-político. A princípio, Foucault compreende que o surgimento do intelectual especifico inaugura uma relação distinta entre teoria e prática, tal entendimento parte de novas configurações de poder que modifica o domínio do social e politiza o papel do intelectual. Avançando em suas pesquisas, e com o desafio de pensar uma ontologia do presente e a governamentalidade, o intelectual assume uma função distinta a partir dos regimes de verdade fabricados no domínio do social. O que se propõe é a inserção do docente neste domínio, considerando que esses regimes de verdades encontram na instituição escolar o seu lugar de ação.

O problema político essencial para o intelectual não é criticar os conteúdos ideológicos que estariam ligados à ciência ou fazer com que sua prática científica seja acompanhada por uma ideologia justa; mas saber se é possível constituir uma nova política da verdade. O problema não é mudar a consciência das pessoas, ou o que elas têm na cabeça, mas o regime político, econômico, institucional de produção da verdade. (FOUCAULT, 2008. p. 14)

Como assinala Nietzsche (2007) a verdade é apenas um produto, e caberia ao professor agir sobre essa produção, sobre esses jogos de força que constitui essas verdades. Dessa feita, e, como observa Foucault, o professor não deveria buscar uma mudança de consciência de seus alunos, mas sim fazer-se valer da parrhesía na busca de uma nova política da verdade.

Observa-se, por fim, que o conceito de parrhesía, tem correspondência com a atitude crítica e a ação política, servindo de base para as práticas de liberdade. É graças a essas práticas que se pode buscar formas de existências cada vez mais livres em resistência as tecnologias de governamento presentes na instituição escolar.