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A prevalência da ultimogenitura e da transferência inter-vivos se constituiu num traço marcante da estrutura familiar dos colonos europeus e seus descendentes no Rio Grande do Sul, sobretudo entre alemães, italianos e poloneses, como confirmam os trabalhos de Willens (1946), Azevedo,(1982), Seyferth (1985), Woortmann (1985), (2004) . Essas características foram sendo mantidas ao longo do tempo e, de certo modo, estendidas para as novas fronteiras que se abriam aos processos de reemigração.

Inicialmente, esses movimentos ocorreram dentro da mesma região, impulsionados pelo rápido esgotamento dos solos nas áreas de colonização mais antigas, pelos problemas demográficos e pelas regras costumeiras de herança patrimonial (Seyferth, 2004). Posteriormente, as buscas de novas terras ou das “Gutes Land” se voltaram em direção ao oeste de Santa Catarina e ao sudoeste do Paraná54.

Na medida em que essas fronteiras iam se fechando, não pela indisponibilidade de terras, mas pelos mecanismos de apropriação que paulatinamente restringiam seu acesso, somadas às elevadas taxas de crescimento demográfico que se mantiveram nas

54 A propósito desses movimentos, Woortmann observa que expressiva produção literária foi produzida e largamente difundida em língua alemã até a década de 1940 e, posteriormente, em língua portuguesa, até os anos 1960. Essa literatura, segundo a autora, “marcou o imaginário dos colonos e refletiu-se no ideário da busca de novas terras desde o oeste de Santa Catarina e Paraná até a Amazônia, Paraguai e Bolívia: sempre a busca de Gutes Land”. Woortmann, Ellen F. Ein gutes Land: uma categoria do imaginário teuto- brasileiro. In Woortmann, Ellen F.(org) Significados da terra. Brasília: Editora da UnB, 2004

novas frentes pioneiras, o recorrente problema da sucessão se tornava novamente uma agravante55.

Como um corolário da pressão demográfica, a prática da sucessão foi se desviando consideravelmente da lei comum. O momento da transferência da herança passava a ocorrer não antes, como de costume, mas depois da ausência dos pais.

No entanto, as respostas encontradas por esses camponeses ao problema nem sempre eram as mesmas e certos arranjos adaptativos se mostraram mais bem-sucedidos que outros, a ponto de algumas pequenas propriedades se viabilizarem ante as pressões modernizantes do mercado.

Em seu estudo de caso sobre o problema da sucessão entre famílias camponesas no sudoeste do Paraná, Papma (1991) observou dois mecanismos opostos que se configuraram como sendo atitudes favoráveis e desfavoráveis à modernização agrícola.

Na primeira variante, as famílias dos filhos e os pais trabalham juntos a terra, fazendo da agricultura um empreendimento. Nessa variante a família como um todo trabalha junto, compartilhando um único esquema de trabalho para toda a terra e todo o dinheiro ganho vai para um único fundo. O pai, nesses casos, geralmente administra os negócios financeiros da família. Após a colheita, toda a família pega sua parte em dinheiro ou espécie e quando há algum lucro (o que freqüentemente não acontece) ele é destinado a algum investimento, como a aquisição de um trator ou a compra de algum novo equipamento.

Esse sistema é favorável à modernização, devido às vantagens de escala; além do mais, quanto mais extensas as terras não divididas entre os herdeiros, maiores as chances de poder oferecê-las como garantia aos financiamentos bancários, pois sem tais garantias não se obtêm recursos para viabilizar as futuras lavouras. Outra vantagem dessa variante é que, se os pais permanecem à frente dos negócios da família até a idade

55 Segundo Papma (1991),(1992), em 1939 havia na região meridional do Brasil algo em torno de 635.000 alemães e descendentes, enquanto o número total de imigrantes vindos da Alemanha durante o período de 1824 a 1939 era estimado em torno de 75.000 pessoas. Esses números dão uma idéia de como as taxas de fertilidade entre os colonos alemães no Sul eram bastante elevadas, o que contribuiu consideravelmente para o aumento da pressão demográfica naquela região. A média de nascimentos entre as famílias alemãs por vezes excedia o número de 10 filhos por casal, sendo por vezes até mais elevada nas regiões de fronteira que foram se abrindo nas décadas posteriores. A região do sudoeste do Paraná, colonizada entre 1950 e 1970, se enquadra perfeitamente nessa média, em torno de 6,44 filhos por casal. A propósito dessas estimativas, ver o clássico trabalho de Willens, Emílio A aculturação dos alemães no Brasil. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1946. Também, Richiter, Klaus. A sociedade colonizadora hanseática de 1897 e a colonização do interior de Joinville e Blumenau. Florianópolis: EDUFSC Ed. FURB, 1986. Roche, Jean. A colonização alemã no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora Globo, 1969. Também os dados observados por Woorlmann, Ellen F. Família Matrimônio e Patrimônio: Uma análise preliminar do parentesco em um grupo camponês de descendência alemã no Rio Grande do Sul. (paper) 9º Encontro da ANPOCS, 1986.

em que conseguem trabalhar, eles asseguram uma condição mais estável durante a velhice. Se os filhos continuam trabalhando na mesma terra, as condições para saudar as dívidas e prover melhorias na propriedade se tornam mais exeqüíveis.

Por outro lado, os filhos podem confiar que no final das contas, trabalhando conjuntamente em família, terão melhores chances de acumular alguma riqueza do que se estivessem trabalhando por conta própria. A expectativa, nesse caso, é de que cada membro da família, incluindo os irmãos mais novos, venha, enfim, receber uma herança melhor. Confiança por parte dos filhos é também necessária, pois os pais têm, em última análise, a opção de vender a terra e tudo que eles possuem, consumindo todo o patrimônio durante sua velhice. Entretanto, a maior virtude desse arranjo é que ele propicia um forte suporte ideológico à unidade e à confiança familiar. Isso é perceptível, desde que atitudes que ameacem a unidade, como uma negligência no cuidado dos pais, a venda da terra pelos pais ou a indolência no trabalho, sejam algo excepcional.

A segunda variante se configura como o inverso da primeira; nela os pais fazem a partilha da propriedade, cedendo em vida parcelas da terra aos filhos mais velhos que se casam. Os filhos solteiros, na maioria das vezes, permanecem morando com os pais e quando estes não conseguem mais trabalhar, em razão da idade elevada, cedem o restante das terras aos demais filhos, sob a condição de parceria. Essas pequenas unidades são, par excellence, desfavoráveis à modernização; além do mais, sob tais condições, os filhos não se sentem muito estimulados a investir suas energias numa terra que a rigor ainda não é sua.

A produtividade, conseqüentemente, por ser baixa, não oferece recursos necessários nem suficientes para investimentos em adubação, tampouco para a adoção de técnicas mais avançadas, que permitam a correção dos solos, já desgastados por anos de mau uso. Além disso, sob a condição de meeiro e pagando uma taxa tradicional de 33% pelo arrendamento sobre a colheita, qualquer investimento se torna praticamente impossível. Sob a condição de uma produção tradicional, um aluguel com taxa de 33% sobre a colheita pode até possibilitar a sobrevivência do arrendatário; porém, quando técnicas e insumos modernos são aplicados ao plantio, a maior parte dos ganhos da colheita passam a destinar-se, quase que exclusivamente, ao pagamento de débitos, pouco ou quase nada restando para a casa, em decorrência de o aluguel ser tão elevado. Tal situação cria um clima geral de desconfiança e desunião dentro da família, de modo que os pais não se vêem interessados em hipotecar sua terra para levantar algum

empréstimo bancário. Não tendo efetivo controle sobre como os filhos conduzem seus negócios, eles também não saberão como os recursos poderão ser aplicados.

Diferentemente, o arrendamento a terceiros se mostra muito mais atraente e seguro para os pais velhos, pois sempre há pequenos agricultores envolvidos com alguma forma de inovação dentro dessas comunidades e que estão de olho no arrendamento de terras adicionais para fazer do seu investimento num trator algo lucrativo.

Esses pequenos produtores, que aplicam técnicas modernas e conseguem colheitas relativamente extensas quando arrendam, calculam o aluguel em cima de um percentual da colheita. Devido ao fato de o custo de sua produção ser elevado, o valor do arrendamento raramente ultrapassa os 25%, o que em si não é um mau negócio para o proprietário das terras, que se encontra numa condição mais favorável de barganha. Nesses casos, quanto mais extensas forem as terras do velho casal ou do(a) viúvo(a), mais independentes eles serão em relação aos filhos e maior tenência terão pela terra que possuem.

Normalmente, nesses casos, a terra é somente transferida para a próxima geração depois da morte dos pais. Todavia, mesmo se comportando como uma família que trabalha junto, a situação dos filhos será pior, pelo fato de nenhuma riqueza ter sido acumulada ao longo tempo. A propriedade dividida torna-se ainda menor e menos viável economicamente e a posição dos filhos mais insegura. Na maioria dos casos, os irmãos e irmãs acabam vendendo suas partes, tornando-se sem-terra ou passando a engrossar as fileiras do proletariado urbano.

O exemplo dessas duas estratégias é um indício de que camponeses que se modernizam de fato, o fazem tendendo ao trabalho conjunto, e se nessas propriedades há filhos casados, eles freqüentemente se mantêm junto aos pais e irmãos mais novos e, ao contrário do que ocorre na segunda variante, a questão da sucessão não se converte num obstáculo à modernização.

A migração para novas áreas, como o sudoeste paranaense, propiciou a muitas famílias camponesas condições favoráveis à acumulação de algum capital devido a sucessivas boas safras, o que lhes permitiu também melhorar sua solvência em relação aos bancos e dessa feita adquirir suas primeiras máquinas e implementos. Porém o fato mais importante está na prematura percepção por eles demonstrada de que a adesão à cultura mecanizada da soja e do trigo somente se mostrava realmente lucrativa mediante

a incorporação integral do pacote tecnológico e da disponibilidade de extensas áreas para o plantio em larga escala, devido justamente aos elevados custos dessa produção.

Muitos pequenos agricultores logo retornaram à sua tradicional policultura, reservando um pequeno espaço para a lavoura da soja, ao lado das plantações de milho e de feijão.

Fatores conjunturais, como o ocorrido durante o plano Cruzado, entre 1986 e 1987, também foram favoráveis a esses pequenos agricultores, que nas novas regiões puderam ampliar suas áreas de plantio através da aquisição de terras contíguas ou com o arrendamento de áreas de pastagens dos antigos latifúndios, o que não apenas possibilitou a tomada de empréstimos junto aos bancos como também garantiu a quitação de seus débitos.

Nas zonas mais antigas da colonização gaúcha, a exaustão dos solos e a densidade demográfica condicionaram mais precocemente a utilização de fertilizantes e de novas técnicas de plantio; entretanto, a utilização desses insumos se deu sempre numa proporção muito inferior àquela adotada pelos grandes proprietários capitalistas. Já nas regiões de fronteira, onde a fertilidade natural dos solos ainda se mantinha, a adoção das novas técnicas e insumos foi paulatina, limitando-se inicialmente ao uso de alguns pesticidas.

Na medida em que o tempo foi passando, 20 a 30 anos depois que as florestas haviam sido suprimidas, os fertilizantes passaram a ser utilizados mais sistematicamente, porém aplicados de modo irregular e em quantidades diferenciadas conforme as dimensões das unidades e a disponibilidade de recursos 56.

56 O estudo de Frans Papma sobre uma localidade do sudoeste paranaense nos anos de 1980 é bastante esclarecedor a respeito desse fenômeno. A modernização não apenas atingiu os pequenos agricultores como também propiciou a emergência entre eles de um grupo bem-sucedido, os chamados “colonos mais fortes”, que passaram a incorporar mais sistematicamente o novo pacote tecnológico, porém numa proporção muito inferior aos níveis recomendados por esse modelo. Segundo esse autor, “The bigger peasants , who could easily obtain bank loans, have only participated in the process of modernization on a limited scale. They do apply chemical fertilizer and take certain measures against erosion, but in intensity they lag far behind capitalist farmers, who, for example apply some 200kg NPK fertilizer per hectare, while the group of peasants discussed here consider 40 kg./ha as the upper limit”. Papma, Frans. The soybean boom generation. The modernization of peasant agriculture and succession in the peasant family: a case in Southern Brazil. In Banck, Geert A. & Boer, Kees den. Sowing the Whirlwind. Soya expansion and social change in Southern Brazil. CEDLA, Amsterdam, 1991.