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A crise do padrão de financiamento que ocorreu no final da década de 1970 atingiu de modo desigual os setores envolvidos no complexo agroindustrial. De modo geral, o D.1 agrícola que compõe a indústria de máquinas e implementos foi o setor mais prejudicado pela crise. Isso resultou primeiramente numa brutal queda no nível de atividades desse setor e, no segundo momento, num vertiginoso movimento de

concentração econômica e de controle acionário por parte de um restrito grupo de grandes empresas, sobretudo de capital multinacional.

Outro desdobramento foi a mudança na composição dos produtos, com um substancial avanço nos equipamentos mais potentes e de grande porte, destinados às atividades em grandes áreas de plantio.53

No que tange aos insumos e defensivos, sua situação manteve-se em níveis mais satisfatórios em comparação com a indústria de máquinas e implementos. Tal condição vantajosa foi propiciada em razão de esse setor não ter completado integralmente seu ciclo de internalização quando a crise dos anos 1980 eclodiu, afetando assim muito mais as importações desses produtos do que sua produção local. Além disso, o parque instalado passou a atender também às exportações de fertilizantes e a acompanhar mais rapidamente as mudanças nos ciclos agrícolas e sua tendência à diversificação. Resta lembrar que, entre 1976 e 1980, os créditos públicos para financiamento de custeio cresceram proporcionalmente mais do que aqueles destinados a investimentos, o que favoreceu enormemente a indústria de fertilizantes e defensivos.

Mesmo com a crise da dívida externa e com a pressão dos movimentos inflacionários, a modernização da agricultura se tornou um fenômeno universal e irreversível e a mola propulsora dos investimentos e dos padrões de financiamento passou a ser norteada pela expansão e desenvolvimento dos Complexos Agroindustriais, os “CAIs”.

Dada a diversificação desses complexos agrupados em subsetores, uma retração generalizada dificilmente ocorreria simultaneamente. Em decorrência disso, o nível geral de atividades de toda a cadeia se manteria. Uma crise a exemplo do setor da soja poderia ser compensada com a expansão da produção do milho ou do trigo, não alterando substancialmente em nada as atividades da indústria de máquinas e implementos, tampouco a de fertilizantes e defensivos.

Com a eliminação dos créditos subsidiados, as taxas de juros se tornaram positivas, convergindo em certa medida para as metas de arrocho em ralação ao crédito e conseqüente contenção das despesas correntes por parte do governo. Com isso, as linhas de crédito disponíveis ficaram praticamente restritas às oferecidas pelo Banco do Brasil. Esses empréstimos agrícolas eram considerados de alto risco pelas instituições

53 Dados da ANFAVEA apontam uma mudança da potência média dos tratores vendidos no Brasil, que na década de 1970 apresentavam um perfil de 59,1 cv e que no início da década de 1980 saltaram para 80,9 cv. Tais dados são mais indicativos da mudança nos padrões de demanda do que simplesmente da evolução dos produtos (Apud Kageyama et alii. 1996, p. 171).

financeiras privadas, pois mesmo os juros positivos cobrados não cobriam os elevados índices inflacionários do período, o que fez com que esses bancos abandonassem quase que integralmente tal modalidade de financiamento.

Curiosamente, nesse mesmo período houve um crescimento na contratação desses empréstimos por parte dos pequemos produtores, porém seu volume manteve-se bastante modesto ante o percentual absorvido pelos grandes proprietários. Segundo Fürstenau (1988), parte expressiva desses créditos destinou-se ao custeio, quase 94%, principalmente na região Sul do país. Já o restante, 5%, foi aplicado na aquisição de mais terras, em detrimento da aquisição de maquinaria, o que contribuiu para a manutenção dos níveis de concentração fundiária e o crescimento na utilização de insumos e defensivos naquela região.

A extensão desse fenômeno a outras unidades federativas, como Santa Catarina, Paraná e São Paulo, condicionou não somente o aumento dos níveis de concentração fundiária, mas também o crescimento significativo dos padrões de racionalização produtiva, ocorrendo simultaneamente com a expansão da fronteira agrícola para novas regiões. Os créditos concedidos se tornaram cada vez mais condicionados à implementação de pacotes tecnológicos específicos, envolvendo um uso indiscriminado e dependente de insumos e defensivos agrícolas e convertendo a agricultura, como um todo, num mero apêndice do grande capital industrial e financeiro.

3.2 A modernização da desigualdade

O processo modernizador da agricultura e a consolidação dos complexos agroindustriais acirraram as condições de reprodução do trabalho no campo, aumentando a subordinação do trabalho às exigências do mercado e a sujeição da renda da terra ao capital. Essa expropriação condicionou a produção da miséria no campo, que por sua vez favoreceu o rebaixamento geral dos salários em benefício da concentração do capital monopolista, financeiro, industrial e comercial (Rückert, 2003)

Por outro lado, o intenso processo de farmerização baseado na mecanização e produção em larga escala de commodities fez recuar as áreas destinadas ao plantio alimentar, que passou a concorrer de modo marginal com a produção voltada ao mercado. A revolução verde, como se tornou conhecido o processo modernizador dos anos 1960, condicionou a reconcentração fundiária através da transformação dos latifúndios em unidades de produção capitalista, ao mesmo tempo em que forçou o

aumento dos índices de desemprego, em razão da própria modificação dos processos produtivos no campo, impulsionando, destarte, um enorme êxodo populacional.

Como os preços dos gêneros alimentícios produzidos no campo estão condicionados aos níveis reais dos salários praticados na cidade, que por sua vez tenderam sempre ao rebaixamento devido à crescente oferta de mão-de-obra e à recorrente escassez de empregos, o ganho dos pequenos produtores se manteve num patamar inferior às necessidades de sua reprodução. Por esse motivo, e por não oferecer nenhum atrativo aos grandes investidores, a produção de alimentos permaneceu relegada àqueles estabelecimentos cuja rentabilidade os impossibilitavam de assumir um comportamento mais empresarial, através do acesso a créditos favoráveis, a tecnologias mais modernas e também à aquisição de máquinas e equipamentos adequados a suas necessidades.

Por não disporem dessas condições, esses pequenos produtores, em geral minifundiários, acabavam se limitando a produzir basicamente para sua própria subsistência ou gerando algum excedente destinado ao mercado regional.

A dispersão dessa produção em pequenas unidades desarticuladas tem favorecido a atuação de inúmeros atravessadores e intermediários, que, mesmo numa situação de escassez de determinados gêneros alimentícios, fazem com que o diferencial de preços acabe se diluindo, devido às numerosas escalas existentes entre os pequenos produtores e o consumidor final, que por sua vez é abastecido por diferentes fontes.

Essa desarticulação entre produtores e consumidores finais potencializa o caráter regressivo da distribuição da renda (do lado da demanda), e a estrutura fundiária dependente da estrutura de intermediação (do lado da oferta) inviabiliza, por sua vez, um comportamento de preços que estimule a inovação e modernização das unidades produtivas. Nessas condições, a possibilidade de incremento da renda familiar nas pequenas unidades se dará somente com aumento da produção, à custa de mais sobretrabalho. Daí a constatação de Graziano Silva, de que “a distribuição da renda bruta entre os imóveis rurais apresenta um grau de concentração inferior ao da distribuição da propriedade da terra, possuindo as pequenas propriedades maior produção por unidade de área” (Silva, 1981, p. 35).

A baixa rentabilidade das culturas alimentares e a atração exercida pela monocultura da soja na década de 1970 motivaram a adesão desses agricultores a essa cultura, o que provocou uma alteração radical na estrutura produtiva dessas unidades.

Devido à pouca disponibilidade de terras e ao tradicional problema da sucessão familiar, esses agricultores passaram a depender muito fortemente das políticas creditícias do governo, que de certo modo também contemplou a pequena agricultura durante o boom da sojicultura e da triticultura naquele período. Entretanto, a viabilidade dessas culturas esteve sempre vinculada à incorporação de determinado pacote tecnológico, e sua implementação entre os pequenos agricultores ocorreu apenas parcialmente, devido às próprias limitações estruturais e financeiras dessas unidades.

Tal situação fez com que os pequenos agricultores se tornassem cada vez mais vulneráveis às oscilações típicas desse mercado, que na prática eram apenas seguras e vantajosas para a produção em larga escala, dada a própria política de incentivo adotada pelos sucessivos governos desde os anos 1960.

O endividamento constante banalizou-se entre esses agricultores, e suas dívidas passaram a crescer mais rapidamente que o próprio investimento agrícola, o que fez com que tais investimentos fossem financiados quase que integralmente pela própria dívida, principalmente sob a forma hipotecária. Assim, o endividamento dos pequenos agricultores passou a absorver não apenas parte crescente do capital agrícola como também fração crescente do valor do rendimento do próprio trabalho (Rückert, 2003).

O aprofundamento desse processo de integração campesina à modernização agrícola acabou se convertendo num ciclo vicioso de drenagem do rendimento do trabalho pelo crédito, que, por vez, somente sobrevive graças ao recurso recorrente a esses mesmos créditos.

Essas transformações, cuja gênese se deu no planalto rio-grandense, foram se disseminando rapidamente para as demais regiões meridionais do país, em razão das políticas agrícolas adotadas pelos governos militares ao longo das décadas de 1970 e 1980, as quais privilegiavam o plantio de soja destinado às exportações, através dos créditos subsidiados, tanto para formação das lavouras quanto para a aquisição de máquinas, insumos e implementos.

Tais mudanças fizeram com que muitos camponeses abandonassem de vez tradicionais culturas como as do feijão, do arroz, da mandioca, do milho, das verduras e frutas, bem como a avicultura e a suinocultura, que anteriormente predominaram nas áreas das colônias sulinas, em troca da ilusória rentabilidade oferecida pela monótona cultura da soja.

Como vimos anteriormente, a disponibilidade dessas linhas de crédito começou a se esvair no início dos anos 1980. O aumento inflacionário e a retirada dos subsídios

tiveram, de modo geral, um efeito desastroso para os pequenos agricultores, elevando os custos de sua produção e a exacerbação de suas dívidas a ponto de inviabilizar sua própria reprodução social.

A crise que afetou a pequena agricultura se deu de modo dessemelhante, porém generalizada, independentemente da sua subordinação ao capital, que ocorre tanto nas formas vinculadas ao capital comercial ou aos proprietários fundiários quanto na forma de subordinação às agroindústrias e cooperativas capitalistas.

Na primeira, a extração do excedente ocorre através do pagamento da renda fundiária pelo parceiro sob forma de um percentual da produção comercial ou da lavoura de subsistência, pela obrigatoriedade do parceiro em executar determinadas tarefas na propriedade, por salários inferiores à média regional, e também pela intermediação nos financiamentos bancários, que os comerciantes e proprietários repassam aos arrendatários de modo extorsivo, cobrando juros mais elevados e transferindo a estes todos os riscos da produção.

No segundo caso, a apropriação do excedente se dá através do financiamento dos insumos e da assistência técnica, condicionada à adoção do novo padrão tecnológico e produtivo, obrigando o agricultor a vender sua produção como matéria-prima para um mercado monopsônico (Silva, 1981).

Rückert, ao relatar a situação dos pequenos agricultores do planalto gaúcho, sintetiza o problema nos seguintes termos:

O acúmulo sistemático de prejuízos por frustração de safras, arrocho financeiro e baixos preços agrícolas tem levado camponeses pequenos proprietários - com menos de 20ha – a colocarem seus lotes à venda para saldarem suas dívidas. Igualmente oferecem seu maquinário e terra às cooperativas como forma de pagamento. Utilizam-se dos recursos do próprio custeio agrícola para pagarem as dívidas bancárias. Buscam créditos complementares de custeio e rolam sistematicamente as dívidas anteriores; vendem a força animal da propriedade e buscam emprego em outras propriedades, etc. para poderem permanecer na terra, que apenas nominalmente é sua. A incapacidade de saldar mais do que uma prestação de instrumentos agrícolas adquiridos é, então, generalizada. ( O Interior, 13-19/07/1995, Cotrijornal, 12/1986 – apud Rückert, 2003, p. 127).

Considerando-se que o custo de produção no caso da soja sempre teve uma tendência de alta em razão do caráter oligopolizado das indústrias fornecedoras de

insumos e da externalidade das variáveis que determinam seu mercado, torna-se simples perceber como a renda da pequena produção camponesa é quase toda ela drenada para as indústrias, bancos, comércio e até mesmo para o governo. Pouco ou quase nada resta para o pequeno agricultor, que apenas marginalmente beneficiou-se das benesses concedidas pelo governo aos grandes proprietários durante o boom modernizador. Esses dados podem ser observados na figura da tabela seguinte, na qual a tendência altista chega a suplantar em termos absolutos os valores da renda bruta logo no ano posterior à crise de 1981.

Tabela 2 - fonte: Cadernos Terragente, 1983, p. 19 (apud Rückert, 2003, p. 129)

Em contrapartida, as empresas que atuavam a jusante da produção agrícola, ligadas tanto à comercialização como à industrialização desse produto no país, apresentaram ganhos crescentes nesse mesmo período, conforme tabela abaixo. O mesmo aconteceu com os insumos, que aumentaram em média 83% entre 1979 e 1983, segundo dados da Suma Agrícola e Pecuária de maio de 1983.

Lucro líquido – Cr$ 1.000,00 Empresas 1978 1979 1980 1981 1982 Olvebra 224.335 254.868 532.822 -706.427 2.122.366 Samrig 148.159 115.652 550.892 1.313.252 1.792.181 Granóleo 54.430 68.178 330.980 163.044 Farol 345.598 107.975 329.335 675.756

Tabela 3 - Fonte Revista Ano Econômico e balanço das empresas. (apud Rückert, 2003, p. 130)

O grau de envolvimento com o novo padrão produtivo é tamanho que um retorno ao antigo sistema de produção mista se torna ainda mais oneroso e inviável para muitos camponeses. Essa situação tem levado a que muitos pequenos agricultores recorram sistematicamente ao trabalho assalariado temporário, como forma de

minimizar a situação crítica em que se encontram. Entretanto, em razão da adoção de processos técnicos que dispensam mão-de-obra, a exemplo dos herbicidas e das grandes colheitadeiras, o recurso ao assalariamento temporário tem-se mostrado cada vez mais limitado (Martins, 1980).

A tendência das grandes empresas, seja no campo, seja nas cidades, tem sido implementar modernas tecnologias e incorporar novos processos produtivos que economizam mão-de-obra, de modo que a oferta de postos de trabalhos, mesmo qualificados, se torne cada vez mais inelástica, independendo dos ciclos de expansão ou de crescimento e contribuindo, dessa feita, para a ampliação do mercado informal de trabalho, cuja extensão tem abrangido muitos segmentos da economia.