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2 TRAÇANDO A ROTA: OS CAMINHOS DA INVESTIGAÇÃO

2.5 As (auto)biografias na licenciatura em Matemática

Um dos primeiros motivos de preocupação dos alunos do curso de Matemática foi saber, quando da apresentação da matriz curricular, que fariam uma produção escrita (portfólio da prática pedagógica) ao final de cada semestre letivo e que, como trabalho de conclusão de curso, escreveriam o memorial de formação. Essa inquietude se fez sentir mais de perto quando os professores formadores constataram que a maior parte deles apresentava dificuldade em relatar suas idéias e reflexões bem como desconsiderava a relevância da leitura e da escrita no processo de formação do professor de Matemática.

Nos primeiros diálogos que tivemos, muitos alunos demonstraram insatisfação por terem que desenvolver essas atividades escritas. Para eles, era fundamental estudar apenas as disciplinas específicas da formação do professor de Matemática. Na visão que tinham sobre a formação, repousavam as raízes de suas dificuldades, pois a prática por eles desenvolvida no dia-a-dia da sala de aula na educação básica priorizava a escrita técnica e formal da Matemática, em detrimento da escrita reflexiva, discursiva e narrativa sobre o que se aprende e se ensina (FREITAS, 2006).

A presença da escrita reflexiva como componente curricular da formação nos cursos de licenciatura do IFESP fez os alunos estabelecerem comparações com a licenciatura em Matemática oferecida por outras instituições de ensino superior, chegando, muitas vezes, a questionarem a sua própria formação. Tradicionalmente, os cursos de formação de professores de Matemática continuam marcados pela

presença da oralidade: a escrita pouco aparece e, quando se faz presente, é acentuadamente formal. Sabe-se que a linguagem formal da Matemática muito contribui para a sistematização do conhecimento matemático, no entanto pouco colabora para a descoberta e a problematização das idéias e conceitos que estão sendo ensinados e aprendidos (FREITAS, 2006). Considerar a escrita reflexiva e a prática docente do professor como eixos centrais de sua própria formação eram elementos que diferenciavam a formação do professor de Matemática no IFESP em relação a outras instituições de ensino superior.

De início, identificamos nos alunos, a carência de um exercício de produção escrita. Para minimizar essas dificuldades e propiciar, ao final do curso, a escrita do memorial de formação de maneira menos dolorosa para eles, decidimos (coordenação do curso e professores formadores) que o exercício da escrita se fizesse presente não apenas nas disciplinas Prática Pedagógica e Trabalho de Conclusão de Curso, mas também nas atividades desenvolvidas pelas disciplinas da formação básica (comuns a todos os cursos de licenciatura oferecidos na instituição) e nas disciplinas específicas (relacionadas à formação do professor de Matemática).

Como eu disse anteriormente, dentre as narrativas produzidas pelos alunos, selecionei, para compor o corpus da pesquisa, os ensaios (auto)biográficos, focalizando as seguintes temáticas: A vida estudantil, Percebendo-se em processo de mudança, A vida profissional e Imagem da profissão, além da ficha de contextualização e das (auto)biografias (memorial de formação).

O termo ensaio, aqui utilizado, traz o sentido de tentativa, treinamento, ensaiamento do processo de escrita. Era essa a nossa pretensão (da coordenação do curso e dos demais professores formadores): fazer que o aluno exercitasse a escrita reflexiva, trazendo para o papel as idéias que tão bem concatenavam na oralidade.

Como primeiro exercício de escrita para o memorial de formação, a professora formadora da disciplina Metodologia do Trabalho Científico I – MTC I – solicitou aos alunos que narrassem fragmentos de suas histórias de vida, a partir da temática Meu relacionamento com a Matemática, considerando como se dera a sua relação com o estudo da Matemática na trajetória escolar. Nesse caminho de exercício reflexivo, eles, oralmente, mencionaram situações conflituosas concernentes à postura de alguns professores. Para maiores esclarecimentos, foi solicitado pela professora que escrevessem as memórias evocadas durante a aula,

o que permitiria a reflexão sobre o ensinar e o aprender matemática. A disciplina MTC I é responsável pelas orientações preliminares sobre o Trabalho de Conclusão de Curso, que, no IFESP, se denomina memorial de formação e é elaborado pelo formando sob a orientação de um professor formador. Com essa atitude, além de propiciar um momento de exercício da escrita, a professora formadora pretendia incentivar os alunos a refletirem sobre as suas atividades estudantis, principalmente em relação à aprendizagem da matemática no decorrer de sua trajetória de estudante.

A importância desses relatos para nós repousava no fato de que, para a maioria dos alunos, essa tinha sido a primeira oportunidade a eles oferecida para pensar e escrever sobre suas memórias em relação à aprendizagem da matemática. Durante as aulas da disciplina Prática Pedagógica II, que objetivava promover a articulação das diferentes práticas trabalhadas pelas disciplinas, numa perspectiva interdisciplinar, nós, as professoras formadoras, sugerimos aos alunos que redigissem um texto reflexivo em que se reconhecessem em processo de mudança no seu modo de ser e/ou ensinar, a partir da afirmação O educador não é alguém pronto, acabado, mas alguém que busca tanto o aprimoramento pessoal quanto o profissional.

Através desse relato, queríamos entender como os alunos estavam concebendo a formação, os saberes por eles construídos, assim como se já conseguiam estabelecer alguma relação entre a formação recebida e as suas atividades profissionais. Seus relatos também permitiriam fazerem-se os possíveis ajustes tanto na disciplina que estávamos lecionando como na formação como um todo.

Nas aulas de Metodologia do Trabalho Científico II, a professora formadora, objetivando provocar a escrita/reflexão sobre a trajetória de vida estudantil e suas influências na construção da formação profissional dos seus alunos, propôs que eles fizessem uma leitura e apreciação dos memoriais de formação produzidos pelos alunos do curso Normal Superior do IFESP.

A coordenação do curso, sensível à desmotivação dos alunos para o estudo das disciplinas que compõem, na matriz curricular (Anexo B), o núcleo comum, sugeriu à professora que trouxesse para as suas aulas textos relacionados à formação do professor de Matemática, o que foi prontamente acatado. Além de motivá-los, o trabalho integrado das disciplinas do núcleo comum com as disciplinas

do núcleo de formação específica possibilitou aos alunos refletirem sobre a sua formação e sobre suas atividades docentes.

Com esse intento, a professora formadora, juntamente com a coordenadora do curso, selecionou para as suas aulas o estudo dos seguintes textos: a) Prática pedagógica do professor-pesquisador em matemática: análise de observações de aula (SILVA, M., 1996); b) Novos desafios para os cursos de licenciatura em matemática (PIRES, 2000); c) Saberes do professor de Matemática: uma reflexão sobre a licenciatura (PAIVA, 2002); d) Da prática do matemático para a prática do professor: mudando o referencial da formação matemática do licenciando (SOARES; FERREIRA; MOREIRA, 1997).

Dando continuidade às orientações para a escrita do memorial de formação, em outro momento, a professora formadora solicitou aos alunos a escrita da trajetória de vida profissional deles, explicitando como tinham ido construindo as suas experiências docentes em relação ao conhecimento matemático. Essa atividade também teve como finalidade oportunizar aos alunos a escrita/reflexão sobre sua trajetória de vida, à luz dos referenciais estudados, na tentativa de captar as influências na constituição de sua prática docente.

Como você pensava que era ser professor de Matemática? E como pensa hoje? Essas perguntas guiaram a escrita do quarto ensaio (auto)biográfico produzido pelos alunos, realizada durante as aulas da disciplina Psicologia da Educação, Aprendizagem e Desenvolvimento II.

A atividade foi realizada como tentativa de minimizar a rejeição que grande parte dos alunos ainda apresentava em relação às disciplinas pedagógicas presentes em todos os cursos de licenciatura oferecidos na instituição, propiciando- lhes uma aproximação entre a Psicologia e a Matemática. Teve como objetivo identificar as representações que os alunos têm sobre ser professor de Matemática. A atividade crítico-reflexiva pautou-se pelo princípio da manifestação escrita e espontânea de cada aluno e foi direcionada a partir da leitura e discussão do texto A Psicologia Educacional e a formação do professor-pesquisador: criando situações desafiadoras para a aprendizagem e o ensino da matemática (BRITO, 2002). As informações coletadas permitiram conhecer-se como esses alunos viam o professor de Matemática na condição de aluno da educação básica e como o viam então, na condição de professor dessa disciplina (na educação básica) e aluno da licenciatura em Matemática.

Ao propiciar-se aos alunos esses momentos de escrita de si descobrem-se pontos relevantes das suas experiências estudantis e profissionais, as mudanças que começaram a surgir nas suas práticas e neles mesmos e as representações que eles tinham tanto da matemática como da profissão.

Enfim, os ensaios (auto)biográficos, embora escritos de forma concisa, mostraram para esses alunos a importância da escrita reflexiva como também tornaram-nos capazes de desenhar a sua própria trajetória de formação. Como procedimento de pesquisa, foram “uma maneira de recolocar o indivíduo no social e na história” (LAVILLE; DIONNE, 1999, p. 159) que me permitiu apreender como eles faziam a história.

Para complementar e clarificar parte das informações narradas nos ensaios (auto)biográficos, apliquei a ficha de contextualização (Anexo A). Esse documento forneceu dados preciosos concernentes a aspectos da vida pessoal e profissional dos alunos, relacionados à docência e às representações da profissão. Muitas das informações coletadas nesse documento foram silenciadas pelos participantes durante a escrita dos ensaios (auto)biográficos. A ficha de contextualização também me permitiu conhecer as motivações dos alunos para se tornarem professores bem como as marcas deixadas pelos seus professores de Matemática. Esses aspectos foram relevantes para o delineamento do perfil da turma.

A principal fonte de recolha dos dados desta pesquisa foi o memorial de formação, “um texto de caráter científico onde o autor descreve a sua trajetória estudantil e profissional de forma crítica e reflexiva” (CARRILHO et al., 1997, p.3), apresentando fatos que marcaram a sua evolução durante o processo de formação. Exigido pela instituição como documento final para a conclusão do curso e produzido pelo aluno, principalmente nos dois últimos semestres, nas disciplinas Trabalho de Conclusão de Curso I e II, o memorial de formação tem como finalidade

descrever a trajetória estudantil e profissional do autor (aluno) de forma reflexiva, através de um relato critico do seu percurso, mostrando fatos e acontecimentos que marcaram a sua evolução como educador [...] permitindo, portanto, traçar rumos que possam contribuir para a reorganização da sua prática pedagógica (CARRILHO et al., 1997, p. 3 – 4).

Por meio da própria voz do professor, o memorial de formação não apenas lhe possibilita refletir sobre sua experiência profissional como também contribui para (re)direcionar e (re)significar o seu fazer pedagógico. No memorial de formação, o aluno “é o ator que diz do aluno que foi e do professor que é. Ele fala das marcas e conquistas... De sonhos que não viveu e de portas que abriram [...] os palcos onde desempenharam os seus papéis e os contornos que delinearam esses palcos” (PINHEIRO, in CARRILHO et al., 1997, p. 2).

Como ator e autor de seu percurso, o aluno enfrenta, durante a escrita do memorial, o “desafio de mergulhar no passado, falar do presente, projetar-se no futuro, apoiando-se em saberes teóricos, para conferir ao seu texto o caráter científico exigido pela instituição” (PASSEGGI, 2001, p. 2).

Como narrativa (auto)biográfica das experiências dos professores em formação, o memorial apresenta-se como um campo de investigação relevante para a compreensão do processo formativo e da identidade profissional, uma vez que conduz o aluno a uma auto-reflexão sobre sua vivência profissional, fornecendo, por esse viés, elementos interessantes sobre suas motivações, crenças, valores e representações (PASSEGGI, 2001). Assim, traz as marcas dos bastidores da vida estudantil e profissional desses atores. Os memoriais são histórias impregnadas de lutas, de projetos pessoais, de encontros e desencontros que sensibilizam pela maneira singular de cada um reinventar a si mesmo e à profissão.

De forma sintética, o Quadro 1 evidencia todo o percurso de recolha do corpus da pesquisa.

QUADRO 1: Corpus da pesquisa de aplicação Ensaio (auto)biográfico – A vida estudantil (12 fontes) 1º Metodologia do Trabalho Científico I

“Elabore um texto abordando o tema ‘Minha relação com a Matemática’ durante o ensino fundamental e médio".

Ficha de contextualização

(12 fontes)

2º Prática

Pedagógica II

Solicitação aos alunos de dados pessoais, profissionais e de aspectos relacionados à docência (Anexo A).

Ensaio (auto)biográfico – Percebendo-se em processo de mudança (12 fontes) 2º Prática Pedagógica II

“’O educador não é alguém pronto, acabado. Mas alguém que busca tanto o aprimoramento pessoal quanto o profissional’. A partir dessa afirmação, desenvolva uma reflexão em que você reconheça uma mudança significativa no seu jeito de ser e/ou de ensinar em decorrência do processo de ensino e aprendizagem da licenciatura em Matemática”. Ensaio (auto)biográfico – A vida profissional (12 fontes) 3º Metodologia do Trabalho Científico II

“Após o estudo do texto ‘Saberes do professor de Matemática: uma reflexão sobre a licenciatura’, de Maria Auxiliadora Vilela Paiva (2002), elabore um texto abordando as seguintes questões:

1) Como você foi construindo as suas experiências docentes em relação ao conhecimento matemático?

2) Na condição de aluno (a) de um curso de Matemática, como você percebe hoje o ensino e a aprendizagem da Matemática?

3) Você considera que a formação recebida no IFESP lhe fornece os saberes necessários para torná-lo um bom professor de Matemática? Ensaio (auto)biográfico – Imagem da profissão (12 fontes) 4º Psicologia da Educação, Aprendizagem e Desenvolvimento II

“A partir do estudo do texto ‘A Psicologia Educacional e a formação do professor- pesquisador: criando situações desafiadoras para a aprendizagem e o ensino da Matemática – Márcia Regina F. de Brito (2002)’, desenvolva uma reflexão sobre as questões: a) Como você pensava que era ser professor de Matemática? b) E como pensa hoje?” (Auto)biografia – memorial de formação (12 fontes) 5º e 6º Trabalho de Conclusão de Curso I e II