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2 TRAÇANDO A ROTA: OS CAMINHOS DA INVESTIGAÇÃO

2.4 As narrativas (auto)biográficas

Nos últimos 30 anos, tem crescido o número de pesquisadores que direcionam seus estudos para o método (auto)biográfico, ou das histórias de vida, como instrumento de investigação e de formação. Os defensores da abordagem (auto)biográfica – Pineau e Le Grand (1996), Dominicé (1988a, 1988b, 1988c, 2000), Nóvoa (1988, 1992, 1995a, 1995b, 1997), Josso (1988, 2004, 2006a, 2006b), Passeggi (2000, 2001, 2003b, 2003c, 2003d, 2003f, 2006a, 2006b, 2007), Souza (2006), Rego (2003), entre outros – consideram que contar a história de vida permite ao adulto refletir sobre o seu próprio processo de formação assim como “tomar consciência das estratégias, dos espaços e dos momentos que para ele foram formadores ao longo da sua vida” (NÓVOA; FINGER, 1988, p. 11).

A história de vida começou a ser utilizada no início do século XX, pelos sociólogos da Escola de Chicago, como um método de observação participante junto a populações imigrantes. Largamente difundido nos anos 1920 e 1930, o método biográfico, após esse período, entrou bruscamente em declínio, em função das abordagens quantitativas. Mas posteriormente a metodologia das histórias de vida inicia um processo de revitalização. Além de sua utilização na pesquisa, ela começa a se desenvolver no “campo da educação, recuperando, assim, a sua dimensão de instrumento de ação social, mas, desta vez em alfabetização, em educação popular, em formação profissional contínua, em formação de formadores [...]” (JOSSO, 2006b, p. 22).

As discussões em torno do uso das histórias de vida no campo da formação de adultos surgem na década de 1970, principalmente na literatura, nas ciências sociais e nas práticas de formação, num contexto de transformações econômicas e sociais que determinaram mudanças de atitude na vida cotidiana das sociedades ocidentais: “o indivíduo busca achar seu lugar na história coletiva e se volta sobre si para definir suas próprias marcas e fazer sua própria história” (DELORY-MOMBERGER, 2000, p. 242).

Foi Gaston Pineau o pioneiro nas pesquisas das histórias de vida na formação de adultos. Com uma visão sociológica, o autor considera as histórias de vida como um método de investigação-ação que estimula a autoformação do adulto, na medida em que, ao explicitar a trajetória de vida, ele é necessariamente

conduzido a uma tomada de consciência desse percurso (PINEAU, 1988). Pineau propôs, então, que fosse “reconhecido e analisado o poder transformador da história de vida e examinadas as condições nas quais ela pode entrar no processo de formação” (DELORY-MOMBERGER, 2000, p. 241).

O método (auto)biográfico repousa, assim, no reconhecimento tanto dos saberes formais externos aos sujeitos quanto dos saberes subjetivos e não- formalizados que as pessoas transportam consigo, os quais são tecidos nas suas experiências de vida, em diferentes contextos socioculturais (DELORY- MOMBERGER, 2000).

A incorporação desses saberes no processo de formação do adulto possibilita uma aproximação entre o educando e o seu processo de formação, contribuindo para a construção de sua autonomia como ator de sua autoformação. A tomada de consciência permite que ele encontre, na sua própria trajetória de vida, os aspectos que considera significativos à sua formação.

Em seus estudos sobre a autonomia do método biográfico, Ferrarotti (1988, p. 20) evoca os debates que demarcaram a consolidação desse método no campo das ciências sociais. Como instrumento sociológico, a biografia busca a “mediação do acto à estrutura, de uma história individual à história social”, resultando na construção de um modelo de relações e na possibilidade de uma teoria não-formal, histórica e concreta, de ação social. Nesse sentido, é possível conceber o social partindo-se de uma práxis individual e considerar que toda pessoa é a reapropriação singular do universo social e histórico que a rodeia.

A narrativa (auto)biográfica não se resume apenas à descrição de acontecimentos, mas constitui uma ação social por meio da qual o indivíduo retotaliza de forma sintética a sua trajetória de vida e a sua interação com o social. Ou seja, ele “narra uma interacção presente por intermédio de uma vida” (FERRAROTTI, 1988, p. 27).

As preocupações com os processos de formação também têm sido evidenciadas nos estudos de Josso (1988) acerca dos trabalhos realizados com Dominicé e Finger no campo da investigação-formação na Universidade de Genebra. Esses estudos se processaram na reflexão sobre três questões acerca da formação do adulto: que é a formação do ponto de vista do sujeito? Como se forma o sujeito? Como aprende o sujeito?

A formação contínua do adulto deve estar alicerçada no alargamento das suas capacidades de autonomização, iniciativa e criatividade. Dessa forma, a educação de adultos é marcada por uma pedagogia que objetiva o aprender a aprender. No cerne de suas propostas, precisam encontrar-se o aluno e as suas aprendizagens. Ela toma a reflexão como a principal mediadora para a ressignificação das experiências que demarcam o processo de vida do educando.

Para Josso (1988), a biografia educativa é fruto do processo de reflexão. Nesta, o adulto é orientado a definir e compreender o seu próprio processo de formação. O saber construído está diretamente relacionado às suas capacidades reflexivas, que são construídas durante três momentos: a narrativa evocativa do seu percurso de vida, a compreensão do processo de formação e a compreensão do processo de conhecimento. Esses momentos estão entrelaçados de tal modo que cada etapa sinaliza o ponto de partida da etapa seguinte.

A construção do processo de formação, por parte do educando, está associada a sua subjetividade, isto é, está relacionada à compreensão que ele tem dos fatos e das situações vivenciadas durante a sua trajetória de vida. Essas interpretações atuam como fonte inspiradora para a construção das representações de si mesmo e dos contextos nos quais elas emergiram.

Desse modo, o indivíduo em formação só se torna sujeito dessa formação “no momento em que a sua intencionalidade é explicitada no acto de aprender e em que é capaz de intervir no seu processo de aprendizagem e de formação para o favorecer e para o reorientar” (JOSSO, 1988, p. 50). É essa abertura para expor as suas experiências e intenções durante o processo de formação que conduzirá o adulto a uma aprendizagem significativa.

Dominicé (1988a) situa a abordagem biográfica como opção metodológica, lembrando-nos que ela implica uma nova relação do investigador com o objeto de investigação. Comungando com as idéias de Pineau sobre a necessidade de se construir uma abordagem biográfica que considere o contexto da educação de adultos, Dominicé colabora com aquele autor numa orientação metodológica denominada de biografia educativa.

Inserindo-se no objetivo da autoformação, defendida pelo movimento da educação permanente, a biografia educativa não apenas possibilita revelar o grau de apropriação do percurso de formação como também favorece a ampliação das possibilidades de apreensão dessa formação. Assim,

os dados biográficos resultam de uma tomada de consciência, de uma espécie de maturação relacional que permite voltar à infância ou à adolescência. Esforçando-se por seleccionar no seu passado educativo o que lhe parece ter sido formador na sua vida, o sujeito do relato biográfico põe em evidência uma dupla dinâmica: a do seu percurso de vida e a dos significados que lhe atribui (DOMINICÉ, 1988b, p. 56).

O adulto percebe as contribuições do seu processo de formação e, sobretudo, as regulações e auto-regulações que daí resultam. Os relatos de sua trajetória de vida também colaboram para o surgimento de elementos significativos quanto ao direcionamento da formação e evidenciam os aspectos facilitadores do processo formativo.

Sobre o processo de formação do adulto, os estudos de Dominicé (1988b) apontam que a formação se dá na presença de outrem; os contextos familiares, escolares e profissionais são espaços de regulação dos processos de formação; as relações marcantes vividas na família, na escola, no cerne dos grupos profissionais e armazenadas na memória são vistas sob a ótica da rejeição e a da adesão; o professor é evocado nas reminiscências do adulto tanto pelo sucesso como pelo fracasso da aprendizagem deste; as análises das histórias de vida contribuíram para a ampliação das reflexões acerca de uma teoria de formação do adulto.

A formação do adulto está alicerçada numa reflexão retrospectiva sobre todo o percurso de sua vida. A capacidade reflexiva deve ser o ponto áureo de sua narrativa. Salientando a idéia de que “‘ninguém forma ninguém’ e [...] a formação é inevitavelmente um trabalho de reflexão sobre os percursos de vida” (NÓVOA, 1988, p. 116), a história de vida descortina-se como instrumento valioso para o desvelamento da trajetória de vida do adulto, contribuindo para ele repensar a sua formação.

Na tentativa de ampliar as reflexões em torno da formação, Nóvoa (1988) aponta alguns princípios que se ajustam a qualquer projeto direcionado à formação de adultos: 1) o adulto é possuidor de uma história de vida, assim as suas experiências profissionais e vivências socioculturais são relevantes para que ele perceba o seu processo de formação; 2) a formação sempre resulta na transformação do indivíduo em três dimensões: a do saber, a do saber fazer e a do saber ser; 3) a formação deve estar articulada às instituições onde os alunos

exercem atividades profissionais; 4) formar não consiste em ensinar determinados conteúdos, mas em uma prática coletiva pautada na resolução de problemas; 5) a formação deve contribuir para o desenvolvimento de competências que possam ser mobilizadas em situações reais vivenciadas pelos educandos.

É por intermédio da história de vida que se pode compreender como cada pessoa mobiliza os seus conhecimentos, como descobre os seus valores e de que maneira modela a sua imagem no diálogo que trava com os diferentes tempos e os diversos contextos. Numa história de vida, também é possível identificar os momentos marcantes, as continuidades e as rupturas que foram significativas para a reflexão e a tomada de consciência, dando sentido às várias dimensões da vida do autor e da sua formação.

A história de vida, contada oralmente ou por escrito, constitui-se em lugar privilegiado de formação e de reconstrução de saberes profissionais, tornando-se elemento significativo para o desvelamento de como as pessoas transformam as suas representações ao longo da sua trajetória de vida e de como alteram as influências postas nessas trajetórias na maneira de se posicionarem e de agirem no mundo.

A escrita de si nos cursos de formação de professores descortina-se, portanto, como possibilidade para o aluno analisar, destacar e registrar, da trajetória vivida, como se tornaram professores, demarcando as suas experiências, representações e escolhas. Assim, a opção pela narrativa (auto)biográfica da trajetória de formação dos colaboradores desta pesquisa justifica-se pela riqueza de informações. A narrativa (auto)biográfica

[...] é semelhante ao papel que um informador-chave tem para um investigador. Pode ser uma introdução para o mundo que quer estudar. Autobiografias feitas por categorias particulares de pessoas, minorias étnicas, por exemplo, em particular as secções que descrevem a sua escolarização, podem introduzir o investigador interessado neste assunto à variedade de experiências educacionais que o grupo específico encontrou (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 180).

A narrativa (auto)biográfica propicia ao seu autor/ator escutar a si próprio, para refletir sobre as suas vivências e experiências. Nessa perspectiva, a

abordagem (auto)biográfica surge como um movimento de investigação e formação, ao focalizar o “processo de conhecimento e de formação que se vincula ao exercício da tomada de consciência, por parte do sujeito, das itinerâncias e aprendizagens ao longo da vida, aos quais são expressas através da metarreflexão do ato de narrar-se [...]” (SOUZA, 2006, p. 14).

Valorizar o contexto do adulto em formação e as dificuldades que ele encontra na busca de sentido interior para as suas aprendizagens deve ser uma inquietação presente nos cursos de formação de professores.