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5 AS NARRATIVAS DOS PERCURSOS: DEFININDO-SE PROFESSOR DE MATEMÁTICA

5.1 A trajetória de formação estudantil

O trabalho com as narrativas (auto)biográficas tem como principal finalidade a valorização da voz do ator/autor de sua história. E não poderia ser diferente neste estudo. Trata-se de compreender como a trajetória de vida estudantil se entrelaça com o processo de formação profissional, que “pode ser depreendido mediante as lições das lembranças que articulam o presente ao passado e ao futuro” (JOSSO, 2006a, p. 378).

O primeiro e grande desafio consistiu em tentar entrelaçar os fios da trama de diferentes histórias de vida com as quais tecerei a trajetória coletiva do grupo, principalmente por se tratar do desvelamento da subjetividade de cada uma. E por onde iniciar? Como contar em palavras a historicidade desses atores com percursos de vida singulares mas que têm como ponto de convergência a recuperação dos valores da sua profissão? (NACARATO; VARANI; CARVALHO, 1998).

Ao escreverem as suas memórias estudantis em relação ao ensino da Matemática, os participantes da pesquisa evidenciaram aspectos relevantes do conhecimento matemático e do papel da família no processo de escolarização. Em relação ao conhecimento matemático, encontrei, nas narrativas analisadas, evidências de manifestações positivas relacionadas às contribuições das aprendizagens informais para a construção do conhecimento matemático escolar. Essas aprendizagens estão associadas principalmente às atividades desenvolvidas em situações de trabalho para ajudar os pais, confirmando que o “ambiente de família, de companheiros, de colegas, e as necessidades do trabalho, permitem a aquisição de habilidades matemáticas” (D’AMBRÓSIO, 2004, p. 44). Os excertos a seguir clarificam o que acabo de dizer:

Logo cedo tive contato com os saberes matemáticos, pois ajudava os meus pais na seleção dos gêneros do barracão [...]. Ajudava, ainda, a despachar as mercadorias aos trabalhadores e, com isso, pude exercitar algumas unidades de medida do Sistema de Medidas, como o quilo e o metro. Fazia uso da contagem em dúzia e dos números fracionários: meio, metade, um terço e uma quarta. Também tinha noção de medidas de distância. Meu pai falava: “Mil metros forma um quilômetro e seis quilômetros formam uma légua”, e nos deixava usar a sua trena para brincar medindo e comparando as diferentes medidas. Eu achava interessante cortar a barra de sabão em três pedaços iguais medindo com uma faca. Já as pedras substituíam os pesos referentes a 250g, 300g, entre outros. Com isso se tornava possível e justo o preço pago pela quantidade de gênero adquirido. Era tomado como parâmetro o peso de 500 g (1/2 kg). Na ausência deste, tomava-se por base 1 kg (1000 g) e tentava- se completar com pedra até o fiel da balança indicar equilíbrio dos seus pratos. E, assim, a pedra substituía o peso convencional (MARINEIDE, 2007, p. 14)

[...] meu pai era agricultor e cultivava mandioca. Na época da farinhada, ele me dava a responsabilidade de gerenciar o processo de sua fabricação, que ocorria na casa de farinha. A farinha era medida em cuia [...]. A cada 32 cuias tínhamos um alqueire de farinha. Por ser considerado inteligente no trato com a matemática, meus pais delegaram-me a responsabilidade de calcular as despesas com os trabalhadores e com o processo da farinhada como um todo, para saber quanto ele tinha rendido. Isto é, eu calculava a receita e as despesas. A diferença entre esses valores correspondia ao nosso lucro. Meu pai queria que eu especificasse quanto [a farinhada] rendia por mil covas. Esta medida equivale a 25 x 25 braças, que corresponde a 0,30 hectares, ou seja, a 3000 metros quadrados (ANDRÉ, 2007, p. 12 – 13).

[...] fui feliz na aquisição dos conhecimentos matemáticos nas primeiras séries do ensino fundamental; sem esquecer, é claro, da grande importância e contribuição dos conhecimentos prévios, adquiridos fora da escola, uma vez que nesse período eu vendia picolé na escola em que minha mãe trabalhava e sacos de tecido vazios na feira, fazendo com que logo cedo me familiarizasse com os algoritmos das quatro operações aritméticas (MOISÉS, 2007, p. 7).

Tanto a voz de Marineide (2007) como a de André (2007) me reportam à história da matemática, para tentar refazer na memória o que a humanidade historicamente construiu sobre o conhecimento métrico, ao longo dos anos. Eles mostraram como, à sua maneira, seus familiares, ou sua comunidade, foram capazes de pensar e resolver problemas relacionados às medidas. Observa-se, na fala de André, que sua comunidade conservava a tradição de fazer uso de unidades

de medida utilizadas no Brasil colônia, como, por exemplo, a braça – ainda hoje utilizada em medição de terras.

Esse conhecimento advindo da prática social exerce um papel relevante na ação das pessoas, em contextos de atividade específicos, e “busca a superação de determinados problemas surgidos nas práticas rotineiras da sociedade ao longo de sua existência” (MENDES, 2002, p. 90). Infelizmente, a maioria das escolas não tem trabalhado a Matemática considerando essa caminhada histórica e cultural. Para esses alunos, medir traz o sentido histórico que provém dos nossos ancestrais, ou seja, o de resolver situações sociais relacionadas principalmente à agricultura e ao comércio.

Os jogos, as brincadeiras e as histórias de Trancoso vividos no cotidiano familiar também favoreceram a descoberta de relações matemáticas e a construção do conceito de número, como menciona Marineide (2007, p. 45).

A cronicidade permeia a minha evolução nos conhecimentos matemáticos: à medida que eu desenvolvia o raciocínio lógico matemático e as minhas estruturas mentais no contidiano da vida familiar, estimulada pela prática, e na interação vivenciada nas tarefas realizadas e nas brincadeiras como pular corda na modalidade relógio ou no jogo de pedras e nas histórias de Trancoso, intuitivamente, e sem perceber, eu estava desenvolvendo ações que favoreceram a construção do conceito de número. E assim, praticando, aprendendo e aguçando a minha curiosidade, também fui descobrindo as relações matemáticas surgidas de situações reais, as quais me permitiram vivenciar o processo de produção do conhecimento matemático.

A construção de saberes perpassa inúmeros diálogos que se articulam e se estruturam entre o conhecimento sistematizado e o saber prático advindo da experiência. Desse modo, a infância lembrada pelas vivências corporais com os jogos e as brincadeiras bem como a magia e a fantasia presente nas histórias de Trancoso possibilitaram a Marineide explorar idéias relacionadas à construção do número.

Enquanto a criança brinca, ela pode ser estimulada a contar, comparar quantidades, reconhecer algarismos, juntar pontos que ganhou durante a brincadeira, compreender intervalos numéricos, isto é, “iniciar a aprendizagem de

conteúdos relacionados ao desenvolvimento do pensar aritmético” (SMOLE; DINIZ; CÂNDIDO, 2000, p. 16). Para as autoras, além da oportunidade de trabalhar o pensar aritmético e métrico, as brincadeiras são um campo bastante rico para a exploração dos aspectos geométricos, pois muitas delas requerem noções de posição no espaço, direção e sentido, além de trabalharem a discriminação visual e as formas geométricas.

As lacunas deixadas pelo ensino da Matemática nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio, ora provocadas pela ausência de professores ora pela falta de compromisso social destes com a formação dos alunos, diferentemente do comportamento de suas professoras do antigo primário, que eram abnegadas e dedicadas, são marcas evidenciadas pelos atores:

Quanto às quatro últimas séries (5ª a 8ª) do ensino fundamental, não cheguei a estudar 20% dos conteúdos matemáticos sugeridos para esta etapa, pois o professor raramente ia à escola. Creio que ele dava prioridade às suas outras atividades de engenheiro civil e comerciante. No entanto, não condeno o professor, pois, na época (1980), o quadro de professores da rede pública era precário (MOISÉS, 2007, p. 8).

Naqueles três anos [2º grau], pouco aprendi com a disciplina de Matemática. As aulas não eram boas e as poucas horas de aulas definidas na grade curricular eram sacrificadas pelas ausências dos professores ou então quando, por qualquer motivo, não havia aula. Isso foi acumulando um déficit de conteúdo que me fez falta lá na frente, quando concorri, por duas vezes, a uma vaga no vestibular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e não obtive êxito (FELIPE, 2007, p. 14 – 15).

[...] senti a diferença na maneira como os professores [5ª a 8ª séries] trabalhavam. Estes não demonstravam compromisso com a formação de seus alunos e não tinham a dedicação das minhas professoras [1ª a 4ªséries]. Isso quando o quadro de professores estava completo, pois nessa época o município tinha uma carência muito significativa de professores, principalmente professores graduados nas áreas específicas, como o de Matemática (LUAN, 2007, p. 9).

A responsabilidade do professor, o qual, muitas vezes, não se dá conta de sua grandiosidade, revela que a essência de sua “prática eminentemente formadora sublinha a maneira como a realiza” (FREIRE, 1997, p. 73).

Além da ausência do professor em sala de aula, contribuindo sensivelmente para o agravamento das dificuldades dos alunos em relação à aprendizagem matemática, o despreparo pedagógico de alguns professores foi outro aspecto citado pelos alunos. Em suas vozes, estes sinalizaram a importância da formação pedagógica do professor para que haja apropriação do conhecimento pelo aluno:

Muitos profissionais de outras áreas eram convidados a lecionar nas escolas públicas, mesmo sem ter condições de assumir integralmente e, em alguns casos, sem nenhum preparo pedagógico para exercer a função de docente. Eram engenheiros, advogados, agrônomos, que dividiam o tempo com essas atividades educativas. Esses profissionais tinham conhecimento do conteúdo matemático, mas não apresentavam formação nenhuma em educação, ao contrário do que vemos hoje nos cursos de formação superior (MOISÉS, 2007, p. 8).

Além de ter o domínio dos conteúdos da disciplina que se propõe lecionar, o professor precisa também ter o conhecimento dos conteúdos relacionados às disciplinas pedagógicas que fundamentam o exercício da docência. Como lembra Arroyo (2000), as inquietações sobre a docência e a maneira como as crianças ou jovens vivem e aprendem na escola estão fundamentadas em princípios pedagógicos.

Os participantes da pesquisa também lembraram os momentos de angústia e tensão provocados pelas famosas chamadas orais da tabuada nas aulas de Matemática e das sanções que recebiam caso não respondessem corretamente às perguntas que lhes eram feitas pelo professor:

Quando ela [a professora] marcava o dia de perguntar a tabuada, nesse dia eu adoecia e não vinha à aula, tudo isto era o medo que sentia de errar e os colegas de classe rirem de mim (EDNARA, 2007, p. 8).

[...] a tabuada deixava todos da sala atemorizados, pois tínhamos a obrigação de dominar a parte que a professora marcasse para responder. Caso isso não acontecesse ficaríamos de castigo (FÁBIO, 2007, p. 8).

Era cobrado de nós a memorização da tabuada. Saber a tabuada de cor, isto é, na ponta da língua, era ponto de honra para alunos e professores do antigo primário. Poucos mestres talvez ousassem pôr em dúvida a necessidade dessa mecanização. Os defensores da mecanização da tabuada alegavam que, sem saber a tabuada de cor, o aluno não poderia aprender as operações de multiplicação e divisão, pois, durante a realização das contas e na resolução de problemas, ele engasgaria, por não saber a tão temida tabuada (ANDRÉ, 2007, p. 9).

A cobrança da tabuada, tanto no ambiente familiar como no escolar, era quase sempre associada a situações de perda, como, por exemplo, não brincar na rua com os amigos, ficar sem o recreio escolar, permanecer ajoelhado de frente para a parede, ou, ainda, era feita “sob formas mais veladas, mas igualmente humilhantes, de imposição da disciplina, do respeito e da autoridade” (SOUSA, 1998, p. 41).

Os alunos também lembraram os momentos bons que aconteceram quando da entrada na escola como situações de muitas alegrias e aprendizagens. Para cada um, a lembrança da primeira escola emerge com um sentido diferente. A escola representou sentimentos antagônicos: na véspera do “meu primeiro dia de aula, não consegui dormir: não sabia se era de felicidade ou de medo” (EDNARA, 2007, p. 7); deixou doces recordações, talvez pelo fato de o aluno “ter aprendido bastante” (MARLENE, 2007, p. 10); pelos momentos ricos de descoberta, criação e alegria; pelas brincadeiras, fantasias, pela construção de “novas amizades, tudo parecia novidade que eu nem sabia explicar” (FÁBIO, 2007, p. 8). Mas a primeira escola também foi lembrada pelas tensões, conflitos e pela afetividade.

Os colaboradores da pesquisa falam, ainda, com ternura da escola isolada e do compromisso social da professora com a comunidade. Mesmo “sendo leiga, [ela] procurava se aperfeiçoar no método tradicional hoje tão criticado e, desse modo, fazia com que todos os alunos aprendessem a ler e escrever corretamente” (MAURÍCIO, 2007, p. 9). Além dessas reminiscências, os primeiros anos de escolarização foram também evocados pelo “patriotismo trabalhado na escola, onde as comemorações da Semana da Pátria culminavam com o desfile de 7 de setembro, do qual se era obrigado a participar” (MOISÉS, 2007, p. 7).

Todos se referiram à família como ponto relevante para a sua formação, pelos primeiros ensinamentos, a partir dos quais eles se sentiram incentivados e

motivados para freqüentar a escola. Para Josso (2006a), os laços de parentesco são os mais evocados nas narrativas (auto)biográficas. Neste estudo, foram evocados principalmente em relação ao período que antecedeu a escolaridade obrigatória. A força desses laços se traduz em laços de “lealdade e de fidelidade que engendram e que se manifestam não apenas na preservação das relações mais ou menos ritualizadas, mas igualmente nas convicções adotadas” (JOSSO, 2006a, p. 376). São mães, pais, irmãos e irmãs que se “travestiram em mestres e mestras e introduziram as crianças (obtendo bons ou maus resultados do ponto de vista da aprendizagem) no mundo do alfabeto e dos números” (SOUSA, 1998, p. 40), como esclarecem os excertos a seguir:

Meus pais, apesar de terem apenas o curso primário incompleto, valorizavam o estudo como a coisa mais importante do mundo. Muito cedo, eles estimularam-me a aprender a ler, escrever e compreender a importância das quatro operações fundamentais (JOÉLIA, 2007, p. 7).

A família é a nossa primeira escola. É a base da nossa educação e é dela que recebemos as primeiras aprendizagens, uma vez que os pais são movidos pelo desejo de ver seus filhos inseridos no mundo social e cultural [...]. E foi assim que cresci, sempre ouvindo o incentivo dos meus pais em relação aos estudos, mostrando-nos a sua importância em nossas vidas (MARLENE, 2007, p. 8 – 9).

[...] meu pai, apesar de não ser escolarizado, preocupava-se com a educação de seus filhos. Desse modo, certa vez, ao ir à cidade de João Câmara para comprar os suprimentos alimentares retornou com uma tabuada e uma carta do ABC. Em sua visão, esse era o primeiro passo para que eu me alfabetizasse. Como primeira professora, tive minha irmã [...] (LUAN, 2007, p. 7).

O contexto familiar é evocado pelos participantes da pesquisa como importante espaço de aprendizagens, como o lugar que marcou todo o processo de escolarização e de formação. Neste estudo, a figura paterna foi a mais evocada quando eles falavam dos primeiros anos de escolarização e da aprendizagem matemática, seguida da figura da mãe e dos irmãos.

O valor atribuído pelos alunos investigados à família, quanto aos primeiros anos de escolarização e na construção do processo de formação, permite-me

concordar com o que diz Dominicé (1988b), ao mencionar que o adulto se constrói tomando como referência o material relacional familiar por ele herdado. Essas relações familiares também influenciam de forma significativa as escolhas que o adulto faz durante o processo de escolarização e na profissão. Para Dominicé (1988b, p. 57), a história de vida “se constrói num campo relacional, e a formação está em grande parte ligada às soluções adaptadas no decurso da vida [...]”.

Em algumas situações a realidade, no contexto escolar, apresentava-se diferente do que aqueles alunos haviam vivido no seio familiar durante a fase preparatória para a entrada na escola, provocando bloqueios na aprendizagem, como mostra o fragmento de texto a seguir.

Ao chegar à escola, me deparei com alguns conflitos, pois a professora tinha fama de carrasco e, por esta razão, muitos dos alunos tinham medo dela. Com isso, a tensão foi determinante para que eu me frustrasse em relação à Matemática. Todas as atividades sugeridas por meu pai eu conseguia resolvê-las, mas, ao chegar à escola, com a professora, nada conseguia aprender. Assim, passou o ano e fui reprovada em Matemática (JOÉLIA, 2007, p. 7).

Para Mariete, a imagem de sua primeira professora se confundia com a figura materna. A aluna considerava essa professora um modelo essencial para a sua formação pessoal e profissional, confirmando o que diz Tardif (2002, p. 73): “a vida familiar e as pessoas significativas na família aparecem como uma fonte de influência muito importante que modela a postura da pessoa em relação ao ensino”. O excerto a seguir mostra isso:

As séries iniciais do ensino de 1° grau fiz com a minha mãe. Ela era bastante exigente e, como filha dela, eu não tinha o direito de errar; tinha que aprender mesmo, para servir de exemplo. E isso me deixava nervosa, pois seria castigada, como todos os outros, e o medo fazia com que errasse coisas simples, que sabia. Mesmo assim, sinto-me gratificada por ela ter sido minha professora, pois, mesmo com um ensino tradicional, através de repetição de conceitos e resolução de exercícios, no qual predominava a palavra do professor, ela muito contribuiu para a minha formação (MARIETE, 2007, p. 9).