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AS CARACTERÍSTICAS DA PARRESÍA JORNALÍSTICA

Após essa contextualização e a primeira reflexão apresentada sobre o termo parresía, apresento a sistematização que pode ser feita com as características que definem o jornalismo parresiastico. As cinco principais características elencadas a partir da noção de parresía que formam o jornalismo parresiástico são:

1) A fala franca;

2) A relação entre o discurso e a forma de vida do jornalista;

3) O uso da fala franca no espaço público através de discurso jornalístico (impresso, radiofônico, televisivo ou digital);

4) O locutor/jornalista assume riscos para fazer uso dessa fala franca; 5) Ato de coragem.

Inicialmente, vale ressaltar que esses cinco elementos não são pensados isoladamente. Eles se interrelacionam. Eles se ligam, se cruzam e dialogam. Apenas um desses elementos pensandos isoladamente não constituem o discurso parresiástico no campo jornalístico. Sendo mais rigoroso: faltando um desses elementos, não há parresía jornalística. Então, nesse momento, é importante apresentar o diálogo existente entre esses cinco elementos.

A fala franca é o elemento fundador da parresía. Como foi visto no capítulo anterior, nem sempre o “dizer a verdade” ou o “tudo dizer” vai se constituir em discurso parresiástico. O sujeito pode falar a verdade de diversas maneiras e dizendo tudo. Ele pode dizer a verdade fazendo uso da lisonja e da retórica, dois adversários da parresía. E possivelmente essa é a característica que mais facilmente se conecta com as demais, afinal, ela mesma muitas vezes se confunte com a própria palavra parresía:

Para bem garantir a parrhesía (a franqueza) do discurso mantido, é necessário que a presença daquele que fala esteja efetivamente sensível naquilo mesmo que ele diz. Ou ainda: é necessário que a parrhesía, a verdade daquilo que ele diz, seja selada pela conduta que ele observa e pela maneira como efetivamente vive” (FOUCAULT, 2010a, p. 364).

Tem-se esse diálogo já com a segunda característica fundamental para a prática da parresía jornalística: a estreita ligação entre o modo de vida e a fala do jornalista. Isso é fundamental para que haja um discuso parresiástico e, conforme será possível perceber nos exemplos jornalísticos mencionados nas próximas páginas, é um requisito obrigatório para a prática da parresía por jornalistas. Ou seja, o jornalista não pode defender ideias das

quais ele não concorda, pois essa verdade que está sendo dita, essa fala franca, ela deve ser autêntica e deve ser assumida e assinada pelo seu emissor.

Eu digo a verdade e penso verdadeiramente que é verdade, e penso verdadeiramente que digo a verdade no momento em que a digo. Esse desdobramento, ou esse redobramento do enunciado da verdade pelo enunciado da verdade, devido ao fato de que eu penso essa verdade e que, pensando-a, eu a digo, é isso que é indispensável ao ato parresiástico (FOUCALT, 2010b, p. 62).

Portanto, o jornalista parresiasta não aceita negociar as suas ideias ou aquilo que ele acredita ser verdade. Ele assume esse discurso, nas mais variadas formas jornalísticas e gêneros (comentários, colunas, reportagens opinativas, jornalismo literário, jornalismo gonzo, etc), e ele arca com as consequências do discurso proferido, pois ele acredita nessa verdade, porque essa verdade está tatuada nele mesmo.

No entanto, de nada adianta essa fala franca ter todas as características da parresía, de se perceber uma coerência entre a vida e o discurso do jornalista, se essa fala não ocorrer no espaço público. Aliás, o jornalismo é público. Ninguém faz jornalismo de uma para outra pessoa, ou jornalismo de si para si. Dessa maneira, as verdades ditas sobre tudo e todos quando se está sozinho em casa, não se constituem em parresía. O jornalista que fala a verdade e faz uso da fala franca apenas nos bastidores frequentados por outros jornalistas, ou por pessoas de sua confiança, colegas de trabalho e chefes, não pratica parresía. A parresía é praticada, no campo jornalistico apenas publicamente – em textos de jornais, em discursos no rádio, em comentários televisivos, em blogs, sites, livros, etc.

Essa característica, de praticar a parresía no espaço público, no entanto, não aparece como uma característica obrigatória da parresía em todas as etapas da evolução do termo. Porém, ela é bastante forte em grande parte da prática filosófica da Grécia Antiga e, por motivos óbvios (o fato de o jornalismo ser público) ela é fundamental para um jornalismo parresiástico. Conforme ressalta Foucault na sua fala sobre a parresía na Grécia Antiga:

É essencialmente o caráter público dessa afirmação, não apenas o caráter público, mas o fato de que essa parresía –nem sempre é o caso – se dá sob a forma de uma cena em que você tem: o tirano; diante dele o homem que fala, que se levantou ou que dá a sua lição e que diz a verdade; e, depois, em torno, há os cortesões cuja atitude varia de acordo com os momentos, a situação, que fala, etc (FOUCALT, 2010b, p. 62).

A partir desse exemplo, Foucault (2010b) ressalta que há uma espécie de pacto, que se dá em dois níveis. Primeiro, o nível do ato da enunciação, em que o sujeito se liga ao

enunciado que acaba de dizer, mas se liga também à enunciação. E aqui se tem, então, o diálogo dessa fala no espaço público com a relação do sujeito com o que ele está dizendo, pois, ao fazer uso da fala franca no espaço público ele aceita esse pacto de se ligar à enunciação. Eu digo a verdade no espaço público, a verdade que está em mim, e assumo todos os riscos possíveis por dizer essa verdade diante de um poderoso nesse espaço público. Afinal, “sou aquele que disse isso” (FOUCAULT, 2010b, p. 62).

Esses três elementos dialogam com o quarto: o risco. Falando no espaço público, principalmente quando há a presença de um tirano, os riscos são muitos: a prisão, o isolamento, a condenação, a perseguição, a rejeição, a demissão, a morte. Vale reforçar que na parresía há “um dizer-a-verdade irruptivo, um dizer-a-verdade que fratura e que abre risco: possibilidade, campo de perigos, ou em todo caso eventualidade não determinada” (FOUCAULT, 2010b, p. 61). Assim, para fazer uso da parresía jornalística, o jornalista deve assumir todos os tipos de riscos, bem como Sócrates assumiu perante a Assembléia em que foi condenado à morte por sua franqueza.

E quais os jornalistas podem usufrir da parresía? Quais são os pré-requisitos para um jornalista ser um jornalista parresiasta? Ora, conforme o próprio Foucault (2010b) deixa claro em seu texto, são as mesmas exigências para qualquer pessoa que deseja se tornar parresiasta: nenhuma, no sentido de status ou hierarquia. Claro que, conforme foi abordado em exemplos na contextualização histórica, houve momentos em que, sim, o sujeito para fazer uso da parresía tinha que ter os requisitos mínimos para poder falar diante de um público e de ter acesso ao tirano. Um deles, por exemplo, que não será aprofundado nesse estudo – pois já foi feito pelo próprio Foucault (2010b) em sua obra – é o do texto de Eurípedes7chamado Íon. Nesse texto, por exemplo, para se fazer uso da parresía o sujeito deve ter cidadania ateniense. Como esse é um momento muito específico da história da parresía, conforme já ressaltado, opta-se aqui pela condição de parresía que, conforme demonstra o filósofo francês:

Já o que caracteriza um enunciado parresiástico não é o fato de que o sujeito que fala tenha este ou aquele estatuto. Ele pode ser um filósofo, pode ser um cunhado do tirano, pode ser um cortesão, pode ser qualquer um. Logo, não é o estatuto que é imporante e que é necessário. O que caracteriza o enunciado parresiástico é que, justamente, fora do estatuto e de tudo o que poderia codificar e determinar a situação, o parresiasta é aquele que faz valer a sua própria liberdade de indíviduo que fala (FOUCALT, 2010b, p. 63).

7 Eurípides foi um filósofo e poeta trágico grego que nasceu em Salamina em 480 a.C.e morreu na

Macedônia em 406 a.C. Sua obra foi marcada principalmente por tratar dos problemas da sociedade ateniense do século V a.C.

Ou seja, durante um bom período a prática da parresía não esteve ligada ao status do seu locutor (ao contrário do que ocorre na história de Íon). O mesmo se aplica ao campo jornalístico: não é preciso ser um repórter internacionalmente famoso, ou um dono de empresa jornalística, ou ainda um comentarista televisivo para fazer uso da parresía jornalística. Qualquer jornalista pode praticar um jornalismo parresiástico assumindo riscos. Justamente pelo sistema político e comercial em que se inserem os meios de comunicação é que o livro, a grande reportagem, ou até mesmo o conto e a ficção, além da crônica – apresentada por De Sá (1987) como gênero jornalístico –, se tornam os espaços mais adequados (mas não únicos) para se utilizar a fala parresiástica no campo jornalístico. Inclusive porque a fala parresiástica não se submete aos estatutos, normas e leis vigentes. É exatamente a fala franca no espaço público assumindo todos os riscos. Ou, como muito bem sintetiza Foucault:

A parresía [...] é portanto uma certa maneira de falar. Mais precisamente, é uma maneira de dizer a verdade. Em terceiro lugar, é uma maneira de dizer a verdade tal que abrimos para nós mesmos um risco pelo próprio fato de dizer a verdade. Em quarto lugar, a parresía é uma maneira de abrir esse risco vinculado ao dizer-a-verdade constituindo-nos de certo modo como parceiro de nós mesmos quando falamos, vinculando-nos ao enunciado da verdade e vinculando-nos a enunciação da verdade (FOUCALT, 2010b, p. 63).

Conforme complementa o filósofo francês, para chegar a tal ponto, o sujeito precisa ter a coragem de se vincular ao que ele está dizendo e que ele acredita ser a verdade. É a coragem de usufruir o vínculo existente, e nem sempre percebido ou utilizado, da liberdade com o dizer-a-verdade. A coragem como quinta característica fundamental da parresía jornalística. É só com a coragem que o jornalista vai poder enfrentar o poderoso – seja ele um poítico, um tirano ou o próprio chefe. Claro que esses casos, como quando Bob Woodward e Carl Bernstein enfrentam os próprios editores do jornal Washington Post e o presidente dos Estados Unidos da época, Richard Nixon, em 1972, para revelar o caso Watergate8, ajudam a construir uma mitologia em torno da profissão que, como é conhecido e reconhecido na área, foge à regra – pois a maioria dos jornalistas não são os super-homens ou homens-aranha dos quadrinhos e do cinema. No entanto, acredita-se que,

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O caso Watergate foi um escândalo revelado pelo jornal Washington Post em 1972 envolvendo o então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon. Na ocasião, foi revelado que o Partido Republicano, do então presidente, estava espionando a sede do Partido Democrata, que ficava no Complexo Watergate, em

Washingon D.C. O escândalo resultou na renúncia de Nixon ao cargo de presidente dos Estados Unidos em 9 de agosto de 1974.

assim como houveram um pequeno número de jornalistas parresiastas, no futuro esse número também será limitado, pois uma minoria tem a coragem e as condições mínimas de exercer essa liberdade e de praticar a parresía jornalística.

E qual seria a função social de um jornalista parresiasta? Ora, é praticamente a mesma do parresiasta da Grécia Antiga e dos super-heróis: lutar contra as injustiças do local onde ele está inserido:

[O parresiásta] só tem uma coisa a fazer: voltar-se contra o poderoso. E publicamente, diante de todos, diante do dia, diante daquela luz que os ilumina, ele se dirige ao poderoso e lhe diz qual foi a injustiça que este cometeu. E, nesse discurso da injustiça proclamado pelo fraco diante do poderoso, há ao mesmo tempo uma certa maneira de ressaltar o seu próprio direito, uma maneira também de desafiar o onipotente e, de certo modo, colocá-lo em duelo com a verdade da sua injustiça (FOUCALT, 2010b, p. 125).

Essa situação, narrada por Foucault, é outra que propicia para a prática da parresía: o indivíduo já não tem mais nada a perder e, por isso, acaba fazendo uso da parresía – ele acaba se abrindo, falando tudo o que pensa e tudo o que aconteceu em um espaço público cheio de riscos. No entanto, não tendo nada a perder, mesmo que não tendo consciência dessa estragégia, o sujeito coloca as coisas mais preciosas a perder fazendo o uso dessa parresía: a liberdade civil ou a vida. No entanto, como salienta Foucault, esse discurso do fraco contra o forte, em que ele diz tudo, “esse discurso se chama precisamente parresía” (FOUCAULT, 2010b, p. 125).

Saindo um pouco da Grécia Antiga e viajando até o Brasil do século XXI, recorro ao texto do jornalista Fausto Wolf em que ele reflete sobre a profissão de jornalista. Mesmo sem querer, ele apresenta no texto chamado Minha Bela Profissão! diversas características que estão presentes na proposta de parresía jornalística mencionadas anteriormente. Logo na abertura do referido texto, o jornalista faz uma reflexão importante entre a prática do jornalismo com a noção parresiastica de verdade: “Houve uma época em que o jornalismo foi parcialmente do povo. Enquanto o poder brigava podia-se dizer a verdade. Isso se devia ao fato da maioria dos jornalistas também proceder do povo” (WOLFF, 2004, p. 11). A noção de verdade, mencionada pelo jornalista brasileiro, é a mesma recuperada da Grécia Antiga por Foucault: a verdade na qual o sujeito que profere o discurso acredita. A partir de então, parresiasticamente – como o restante da obra de Wolff – ele faz uma crítica pública à profissão e aos seus colegas de jornalismo.

Algumas classificações ilustram muito bem a crítica que jornalistas como o próprio Woff fez em relação à prática profissional contemporânea, bem como o também brasileiro

e já referido Juremir Machado da Silva e o americano – objeto de estudo da presente tese – Hunter Thompson também fizeram ao longo de suas vidas. Na primeira referência do texto de Wolff a que recorro, ele classifica o jornalismo do século XXI como algo clean (limpo) e distante dos fenômenos sociais mais afastados da elite brasileira. “Falo daqueles que vivem jantando com banqueiros, ministros e senadores. Muitos que se julgavam revolucionários, no sentido humanístico e filosófico do termo, demonstraram-se apenas rebeldes (WOLFF, 2004, p. 12). E, mais adiante, ele arremata: “Ao primeiro sorriso já se aninhavam como gatinhos no colo da autoridade. Pessoalmente, sempre fui de opinião de que poder é poder e jornalista é jornalista” (WOLFF, 2004, p. 12). Eis, aqui, uma crítica jornalística à lisonja anti-parresiastica. Além disso, o jornalista vai relatar essa mudança no perfil do profissional de imprensa que, em seu tempo (contemporâneo ao de Hunter Thompson, porém em solo brasileiro), era visto mais como um herói marginal e que agora é “uma espécie de poodle de divã, uma espécie de office-boy do poder” (WOLFF, 2004, p. 12). Tudo em nome, conforme o mesmo autor, de uma falsa imparcialidade.

Somadas à essa consideração de Wolff (2004), outro elemento fundamental para se pensar a parresía no campo jornalístico é a crítica que Foucault (2010) faz a inversão de valores: a forma de pensar o cuidado e conhecimento de si como algo egoísta. A crítica abaixo é feita em relação ao desenvolvimento social, mas pode ser perfeitamente utilizada para refletir sobre a atuação do jornalista no seu campo profissional e na sociedade:

Essas regras austeras, cuja estrutura de código permaneceu identica, foram por nós reaclimatadas, transpostas, transferidas para o interior de um contexto que é o de uma ética geral do não egoísmo, seja sob forma cristã de uma obrigação de

renunciar a si, seja sob a forma “moderna” de uma obrigação para com os outros – quer o outro, quer a coletividade, quer a classe, quer a pátria, etc. (FOUCALT,

2010a, p. 14).

No campo jornalístico há o mesmo fenômeno: muitas vezes a partir de uma prática jornalística (que não deveria eliminar as outras) o “eu jornalista” é castrado – e é a isso que Wolff crítica – enquanto ele teria muito mais a contribuir estando presente na sua reportagem, exatamente da forma que fizeram os mucrakers e, posteriormente, Thompson e tantos outros jornalistas literários. Mas, quem foram os mucrakers? É a pergunta que tentamos responder no próximo capítulo.

4 A OUSADIA MUCKRAKER

Uma sociedade em transformação onde diversos grupos de minorias se mobilizavam para reivindicar seus direitos, buscando o envolvimento de todos e que passa a questionar tudo o que até então era inquestionável. Esse era o clima vivido nos Estados Unidos da virada do século XIX para o século XX e que acompanharia a sociedade norte- americana nos 100 anos seguintes. Durante esse período de transformações sociais, questionamentos e denúncias, jornalistas e escritores teriam papel fundamental na formação de uma nova sociedade que se tornaria cada vez mais a maior potência do mundo, comandando as ações nos campos da política e da economia, além de influenciar culturalmente todo o mundo ocidental.

É nesse contexto que, enquanto parte da elite americana e seus defensores intelectuais da virada do século XIX para o XX defendiam uma doutrina de darwinismo social, alguns grupos se mobilizavam para frear a expansão do sistema capitalista que estava sendo implementado desenfreadamente e que aumentava cada vez mais as diferenças sociais. Esses grupos, que eram formados por sindicalistas, feministas, negros, artistas, imigrantes, trabalhadores, escritores e jornalistas, não conformados com o status quo da época, apresentavam os mesmos princípios que, anos depois, o jornalismo gonzo veio a defender, através do jornalista Thompson: questionar o que está colocado como norma, tanto no sentido de convivência social, quanto nos sentidos político, legal, trabalhista, étnico ou institucional. E, para fazer tal questionamento, esses jornalistas tiveram que se arriscar, falando francamente diante de todos, algumas vezes fazendo exatamente o que foi descrito anteriormente como jornalismo parresiastico. Na época em que surgiram os muckrakers, havia uma propagação do princípio de que o grande poder político e econômico refletia simplesmente o sucesso natural dos mais aptos ao desenvolvimento dentro do novo modelo de sociedade.

Tal cenário foi propício para o surgimento de muitas contestações políticas, econômicas e sociais nos Estados Unidos. No final do século XIX, por exemplo, “surgiram movimentos sociais variados – feministas, planejadores urbanos, religiosos, sindicalistas, socialistas – criticando a falta de direitos políticos, a miséria nas cidades grandes e a concentração aguda de riquezas” (KARNA, PURDY, FERNANDES et al., 2011, p. 176). Além desses segmentos sociais, artistas, escritores e jornalistas também passaram a abordar em suas obras temas relacionados aos problemas sociais vividos nos Estados Unidos, lançando suas próprias interpretações do que ficou conhecido como o “sonho

americano”, que era a possibilidade de qualquer um chegar ao topo da hierarquia social e econômica. Um dos principais teóricos da comunicação da América Latina sintetiza que essa “é a sociedade democrática que vê gerar-se rapidamente e de forma mais clara nos Estados Unidos: essa nação na qual já não há profissão em que não se trabalhe por dinheiro, na qual até o presidente trabalha por um salário” (MARTÍN-BARBERO, 2013, p. 54), mas que também é a sociedade “na qual a administração tende a invadir tudo, todas as atividades da vida, uniformizando as maneiras de viver e concentrando a gestão no vértice”. Tem-se então, no contexto histórico dos Estados Unidos dos primeiros muckrakers esses dois elementos que se tornarão chaves nas décadas seguintes: a tentativa de controle estatal da vida dos cidadãos e a busca desenfreada pela ascensão social e pelo lucro.

Essa época ficou conhecida como Era Progressista, um período em que a economia agrícola e artesanal foi sendo substituída pelo mundo industrial do carvão, do aço e do vapor. Foi nesse período histórico que pequenos negócios individuais e familiares passaram a ser substituídos por grandes complexos industriais, baseados em um crescente mercado de consumo. Dentro desse contexto que os jornalistas que praticavam um jornalismo voltado para a denúncia e escândalos ficaram conhecidos como muckrakers, e que posteriormente tiveram influência na prática de outros tipos de jornalismo, como o investigativo, o sensacionalista e, como será abordado mais adiante, o jornalismo gonzo – sendo que alguns desses jornalistas foram jornalistas parresiastas.

O termo muckraker surgiu a partir da união da palavra inglesa muck (sujeira, esterco, imundície, porcaria) e raker (investigador, escarafunchor). A palavra foi utilizada para designar aquele que mexe e procura em meio à sujeira. Conforme Reese9 (2010a), o termo foi criado pelo então presidente Theodore Roosevelt10 durante um discurso proferido em 1906, em uma referência à imprensa popular que estava realizando uma série de denúncias e investigações contra a elite norte-americana sem poupar quem quer que fosse. Para isso, o presidente se baseou em um personagem do clássico de John Bunyan, O Peregrino (1678), obra que faz uma alegoria à vida cristã. Em seu discurso, Roosevelt comparou os jornalistas com um personagem do romance, que não quis olhar para a coroa