PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL
EDUARDO RITTER
JORNALISMO GONZO E PARRESÍA: MENTIRAS SINCERAS E OUTRAS VERDADES
JORNALISMO GONZO E PARRESÍA: MENTIRAS SINCERAS E OUTRAS VERDADES
Tese apresentada como requisito para a obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Orientadora: Dra. Beatriz Corrêa Pires Dornelles Co-orientadores: Dr. Robert Boynton e Dr. Rodney Benson.
JORNALISMO GONZO E PARRESÍA: MENTIRAS SINCERAS E OUTRAS VERDADES
Tese apresentada como requisito para a obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Aprovado em: ____de__________________de________.
BANCA EXAMINADORA:
______________________________________________ Prof. Dra. Beatriz Corrêa Pires Dornelles
______________________________________________ Prof. Dr. Juremir Machado da Silva (PUCRS)
______________________________________________ Prof. Dr. Nythamar de Oliveira (PUCRS)
______________________________________________ Prof. Dr. Alfeu Sparemberger (UFPEL)
______________________________________________ Prof. Dra. Monica Martinez (UNISO)
R614j Ritter, Eduardo
Jornalismo gonzo e parresía: mentiras sinceras e outras verdades / Eduardo Ritter. – Porto Alegre, 2015.
385 f.
Tese (Doutorado) – Faculdade de Comunicação Social, Pós-Graduação em Comunicação Social, PUCRS.
Orientadora: Dra. Beatriz Corrêa Pires Dornelles.
Co-orientadores: Dr. Robert Boynton, Dr. Rodney Benson
1. Jornalismo Gonzo. 2. Jornalismo – Análise de Discurso. 3. Parresía. 4. Reportagens - Análise do Discurso.
5. Jornalismo – Literatura. I. Dornelles, Beatriz Corrêa Pires. II. Boynton, Robert. III. Benson, Rodney. Título.
CDD 070.43
Bibliotecário Responsável
Ginamara de Oliveira Lima
Primeiramente ao meu pai, Nabucodonosor Ritter, e à minha mãe, Nara Miriam Ritter -
sem eles, eu nunca chegaria até aqui.
Aos meus irmãos, Fábio Ritter e Carolina Ritter.
À minha filha, Larissa Aguiar Ritter, pela força espiritual, inspiração e amor.
À esposa do período, a Cristiane, e à minha enteada, Laura Caroline.
A todos aqueles que me orientaram pelo caminho: Larry Wisniewski, Antonio Carlos
Hohlfeldt e Beatriz Dornelles.
Aos meus co-orientadores que me receberam tão bem em Nova York: Robert Boynton e
Rodney Benson.
Ao professor Felipe Pena, que tornou possível a minha ida para a New York University.
Aos que me deram apoio financeiro, viabilizando a pesquisa: meus pais, a CAPES –
PROSUP/PDSE, a UFPEL, a Unipampa e a PUCRS.
Ao poeta e professor da Louisville University, Ron Whitehead, pela receptividade na terra
natal de Hunter Thompson.
A Anita Thompson, viúva de Hunter, que me abriu as portas de Woody Creek, Colorado.
A todas as pessoas – professores, colegas, amigos e parentes - que passaram pelo meu
Como jornalista, eu de alguma forma consegui quebrar a maioria
das regras e ainda ter sucesso. Isso é uma coisa difícil para a
maioria dos jornalistas de hoje entenderem, mas somente porque
eles não podem fazer isso... Eu sou um jornalista, e eu nunca
encontrei, como um grupo, nenhuma outra tribo que eu quisesse
fazer parte ou que fosse mais divertida de pertencer – apesar dos vários punks e aduladores da imprensa. Eu tenho orgulho de fazer
No início dos anos 1980, o filósofo francês Michel Foucault, ministrando os seus cursos no
Collège de France, abordou a história e o conceito da palavra grega parresía.
Sinteticamente, o termo significa falar francamente no espaço público assumindo riscos
por tal atitude. A partir dessa ideia, a presente tese trabalha com a aplicação desse conceito
no campo jornalístico, tendo como objeto de estudo o jornalismo gonzo, praticado pelo
jornalista norte-americano Hunter Thompson (1937-2005). Além disso, apresenta-se uma
crítica ao jornalismo praticado ao longo da história no mundo ocidental, justamente por ele
apresentar, ideologicamente, uma busca pela verdade dos fatos, enquanto que, na prática,
isso não ocorre. Diante de tal complexidade, a fala franca no jornalismo passa a ser uma
das principais alternativas para aqueles jornalistas que buscam praticar um jornalismo que
tenta ser minimamente comprometido com a verdade. Ironicamente, algumas vezes a
ficção e técnicas da literatura é que tornam possível o autor dizer a verdade, criando, assim,
uma complexa relação entre Filosofia, Literatura e Jornalismo. É nessa interseção que se
encontra o que chamo de parresía jornalística e o jornalismo gonzo – que faz uso da coragem da verdade, sem abrir mão de sinceras mentiras.
In the early 1980s, the French philosopher Michel Foucault, teaching courses at the
Collège de France, addressed the history and the concept of parresia, a Greek word.
Briefly, the term means to speak frankly in public space taking risks by such this attitude.
From this idea, this thesis works with the application of this concept in the journalistic
field, with the object of study being the gonzo journalism, practiced by US journalist
Hunter Thompson (1937-2005). In addition, the thesis presents a critique about the
journalism practiced throughout history in the Western world, precisely because it presents
ideologically a search for the truth of the facts, while in practice it doesn‟t happen. Faced with such complexity, speech frank journalism becomes a major alternative for those
journalists who seeking to practice a journalism that tries to be minimally committed to the
truth. Ironically, sometimes the fiction and the literature technics that enable the author to
tell the truth, thus creating a complex relationship between Philosophy, Literature and
Journalism. It is at this intersection that is what I call journalistic parresia and gonzo
journalism - which makes use of the courage of truth, but without giving up sincere lies.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ... 11
2 PARRESÍA: HISTÓRIA, ADVERSÁRIOS E CONCEITOS ... 34
2.1 OS ADVERSÁRIOS DA PARRESÍA ... 47
2.2 O SUJEITO ENQUANTO PRÓPRIA VERDADE ... 49
3 A PARRESÍA JORNALÍSTICA ... 58
3.1 NOTAS SOBRE JORNALISMO ... 60
3.2 AS CARACTERÍSTICAS DA PARRESÍA JORNALÍSTICA ... 64
4 A OUSADIA MUCKRAKER ... 70
5 DOS ANOS 1920 À CONTRACULTURA AMERICANA ... 80
6 LITERATURA BEAT E IMPRENSA ALTERNATIVA ... 94
7 NEW JOURNALISM: O LIVRE AMOR ENTRE O JORNALISMO E A LITERATURA ... 103
7.1 NOTAS SOBRE O JORNALISMO LITERÁRIO ... 113
8 JORNALISTA PARRESIASTA: UM DOM QUIXOTE DA IMPRENSA? ... 119
8.1 O DIZER A VERDADE NA FICÇÃO ... 123
9 HUNTER THOMPSON: UM JORNALISTA MULTIFACETADO ... 132
9.1 UM DELINQUENTE INFANTO-JUVENIL ... 133
9.2 A FORMAÇÃO PARRESIASTA NAS FORÇAS ARMADAS ... 146
9.3 RUM E JORNALISMO EM TERRITÓRIO CARIBENHO ... 162
9.4 O JORNALISMO GONZO INCUBADO NO BRASIL ... 173
9.5 A FASE HELL‟S ANGELS: ÁCIDO, BRIGAS E NEW JOURNALISM ... 191
9.6 DR. THOMPSON: DEIXANDO O ENTREVISTADO EM SEGUNDO PLANO ... 208
10 GONZO: FALA FRANCA E LOUCURA NO JORNALISMO ... 218
10.1 O NASCIMENTO DO ESTILO GONZO ... 220
10.2 POR QUE GONZO? ... 227
10.3 JORNALISMO GONZO COMO PARRESÍA JORNALÍSTICA? ... 230
10.3.1 Usando a Política para Tentar Mudar o Ambiente em que Vive ... 234
10.4 GONZO: MEDO E DELÍRIO NO JORNALISMO NORTE-AMERICANO ... 242
10.4.1 A viagem sem volta a Vegas: o gonzo como jornalismo parresiastico ... 246
10.4.2 Presas alucinadas em meio aos caçadores ... 264
10.4.3 Os bastidores do gonzo ... 274
10.7 COBRINDO WATERGATE: LEVANTANDO-SE CONTRA OS PODEROSOS ... 300
11 DA FAMA ÀS FALHAS ... 305
11.1 ROLLING STONE: AMOR E ÓDIO NO JORNALISMO GONZO... 307
11.2 DA FAMA ÀS TELAS DE CINEMA ... 311
11.3 MEDO E DELÍRIO NO CASAMENTO E AS ÚLTIMAS DÉCADAS DO JORNALISMO GONZO ... 316
12 GONZO: UMA FILOSOFIA DE VIDA ... 336
13 CONSIDERAÇÕES FINAIS - MAKING OF ... 352
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O que seria mais coerente para um pesquisador que abordará o jornalismo gonzo:
escrever uma tese de doutorado academicamente falando sobre a vida e obra de Hunter S.
Thompson ou colocar no papel um texto contando como ele está tentando fazer tal
pesquisa? Como é possível perceber ao longo das páginas que se seguem, seria muito mais
coerente da minha parte contar os bastidores sobre como escrevi a presente tese de
doutorado – o que cogito fazer em um futuro breve através de texto literário. Além disso,
para adotar uma fala parresiastica, ou seja, uma fala franca, eu assumiria diversos riscos,
dentre os quais, a reprovação da temível banca final. Mas, longe de ser mais um dos tantos
imitadores que surgiram durante e após a trajetória de Hunter Thompson no jornalismo e
na literatura, vou tentar me limitar a cumprir a função de pesquisador. E qual é a função do
pesquisador?
A primeira é não apresentar nenhuma solução para todos os problemas jornalísticos
do mundo. O que é feito ao longo desta pesquisa são formulações e análises de hipóteses e
propostas teóricas, afinal, como ressalta Machado da Silva (2011), formular e testar
hipóteses é a principal função do pesquisador. Ou seja, a partir das hipóteses é realizada a
análise, baseada na contextualização histórica e conceitual feita em torno do jornalismo
gonzo e da palavra grega parresía.
Para a leitura do texto que se segue, vale a pena antecipar resumidamente o que foi
o jornalismo gonzo e quem foi Hunter Stockton Thompson. No fim dos anos 1960,
Thompson escreveu para jornais e revistas dos Estados Unidos, inaugurando um estilo de jornalismo que ficou conhecido como jornalismo gonzo. Marcado por utilizar uma linguagem
própria, que tem como característica a frenesi e o humor, o jornalismo gonzo ainda conta com
outra particularidade: o envolvimento do jornalista nos fatos narrados. Ou seja, o profissional
da imprensa deixa de ser um observador da notícia, passando também a participar dela.
Entretanto, conforme o próprio Thompson (2004), essa participação é ativa, e não passiva, e o
autor é o personagem principal dessa narrativa autobiográfica, diferenciando o jornalismo
gonzo do New Journalism, onde pode haver uma inserção do autor na história, mas ele não é o
personagem principal da narrativa. Ou, como ressaltou o próprio criador do estilo em
entrevista concedida para a revista Rolling Stones de novembro de 1996: “Eu nunca quis
Além da participação ativa do jornalista nos acontecimentos abordados na notícia,
outra característica que difere o jornalismo gonzo do New Journalism, e de outros estilos
jornalísticos, é a forte presença do humor na narrativa, muitas vezes acompanhada de
ironias e cinismos. Nas matérias de Thompson, o humor não é tratado como mero
entretenimento, mas sim, como um recurso utilizado no fazer jornalístico. Além disso, o
jornalismo gonzo joga para o segundo plano as pautas jornalísticas, as notícias, e coloca
em primeiro plano o jornalista e a tentativa de se fazer uma cobertura sobre determinado
assunto. As notícias determinam o deslocamento do jornalista até o evento, até o local dos
acontecimentos, mas a partir da chegada do repórter, tudo muda. Notícias que, conforme
Pinto (2009), apresentam duas características principais, além do fator novidade:
importância e interesse. Esses critérios de noticiabilidade, aliás, são usados pelos
jornalistas para definir a importância e o interesse que determinado assunto pode
representar. Conforme Luhmann (2005)¸ são eles: novidade, relevância, transgressões à
norma, manifestação de opiniões, conflitos, atualidade e quantidade. Considerando isso,
pode-se afirmar que as reportagens de Thompson feitas para jornais e revistas são, antes de
tudo, jornalísticas – pois, como é abordado durante o estudo, são reportagens
encomendadas por empresas jornalísticas para que Thompson cubra determinadas pautas -
porém, a abordagem adotada pelo jornalista americano é totalmente diferenciada. Nesses
textos o autor opta por uma narrativa autobiográfica, em que aparecem elementos como o
uso do humor, de palavrões e a quebra de normas explicitadas na narrativa. Essa
transgressão, por sinal, representa riscos a serem assumidos pelo discurso feito no espaço
público. Chega-se, então, ao segundo ponto crucial da presente tese: a palavra grega parresía.
O conceito de parresía é aprofundado mais adiante, mas é importante ressaltar
algumas ideias básicas que ajudam a justificar a importância de um trabalho sobre
jornalismo gonzo para o campo teórico-jornalístico. Porém, antes de prosseguir, quero
justificar a opção pela grafia parresía, pois ela é escrita de diferentes maneiras, inclusive
nas obras de Michel Foucault em que ele aborda o termo grego. Optei por seguir a
justificativa apresentada pelos editores da obra O Governo de si e os Outros, que usam o
seguinte argumento: “optou-se por manter a forma grega transliterada, conforme o original
francês e não a vernácula” (FOUCAULT, 2010b, p. 8). Feita essa explicação, antecipo sinteticamente o que significa o termo recuperado e explorado a fundo por Foucault nos
seus cursos do Collège de France no início dos anos 1980. Parresía, como é retomado em
do dizer a sua verdade, ou seja, de falar aquilo que se acredita no espaço público,
assumindo riscos por esse discurso.
Uma das preocupações de Foucault, no seu último ano de curso, era de deixar claro
que o estudo sobre a parresía não se trataria de analisar simplesmente quais são as formas do discurso da maneira que ele é reconhecido e assumido como verdadeiro, mas sim “sob que forma, em seu ato de dizer a verdade, o indivíduo se constitui e é constituído pelos
outros como sujeito que pronuncia um discurso de verdade, sob que forma se apresenta, a
seus próprios olhos e aos olhos dos outros, quem diz a verdade” (FOUCAULT, 2011, p. 4).
Em outras palavras, o autor está preocupado em verificar qual é a forma com que o sujeito
diz a verdade.
Vale destacar, então, que partilho da ideia do autor de que a parresía não é o único
modo de dizer a verdade em qualquer tipo de discurso, inclusive no que interessa para a
presente tese: o jornalístico. Para Foucault (2011), além da parresía, também há a
sabedoria (o sábio, que se isola, se retira), o ensino (a relação entre mestre e aluno) e a
técnica. Assim, esses quatro modos são fundamentais para se analisar um discurso, “na medida em que, no discurso, se constitui, para si e para os outros, o sujeito que diz a verdade” (FOUCAULT, 2011, p. 27). No entanto, como está claro, no presente estudo a análise do discurso, que é aprofundada logo mais, se dará no sentido de verificar a
condição parresiastica da vida e obra de Hunter Thompson, apesar de os outros três
elementos também serem abordados em momentos oportunos, tanto no sentido de
relacioná-los com a parresía, quanto no de diferenciá-los.
Chega-se, então, às considerações que justificam a realização desse estudo. Conforme é de conhecimento não apenas acadêmico, mas também público, o jornalismo
teoricamente tem em seu cerne a pretensão ideológica de falar a verdade. Essa dupla
relação é a temática de um subcapítulo da presente tese. No entanto, optei por não estender
demais tais discussões teóricas, por considerar que esse é um consenso praticamente
unânime: o jornalismo busca (ou deveria buscar) a verdade. E, mais ideologicamente, a
justiça. Porém o que se vê em muitos casos do jornalismo ocidental – e não apenas contemporâneo, mas ao longo da história – é o contrário: ou a verdade fica esquecida, atrás dos interesses mais diversos, ou joga-se com diversas pequenas verdades para se dar
sentido a algo que atenda a objetivos dos mais variados, que incluem principalmente fins
políticos e econômicos. Isso, conforme detalhado mais adiante, chama-se retórica – que pode não ser necessariamente uma mentira, mas tampouco é uma verdade absoluta. É um
a ideia de parresía ao campo jornalístico ou, simplesmente, de recuperar o sentido
ideológico da profissão. Assim, além de se apresentar uma proposta teórica em torno do
termo parresía jornalística, optou-se por aplicá-la a um objeto: o jornalismo gonzo. E por
que o jornalismo gonzo?
Primeiro porque o jornalismo gonzo foi praticado por um exército de um homem
só: Hunter Thompson. O jornalismo gonzo, resumidamente, é o que o seu único
praticamente pensava e apontava sobre os acontecimentos: o discurso estava estritamente
ligado ao seu autor. Porém vale ressaltar que o jornalismo gonzo e o estilo de Thompson
não foram os únicos exemplos de jornalismo parresiastico. Poderia citar diversos
jornalistas que, atuando como colunistas, também renderiam estudos semelhantes, dentre
os quais, Paulo Francis, Fausto Wolfe e Juremir Machado da Silva, apenas para ficar nos
exemplos brasileiros. O caso da briga entre Juremir Machado da Silva e Luis Fernando
Verissimo quando ambos estavam no Grupo RBS, narrado por Machado da Silva (2000)
em Miséria do Jornalismo Brasileiro, por exemplo, pode ser interpretado como um
exemplo típico de parresía: diversos riscos foram assumidos por se adotar uma fala franca
que condiz com a trajetória biográfica do autor, que acabou deixando a empresa. No
entanto, a opção de se analisar a obra de Thompson se justifica porque ele praticou a
parresía atuando como repórter: ele adotava a fala franca cobrindo eventos nos locais dos
acontecimentos. Ele fez isso andando com gang de motociclistas, cobrindo a prova de turfe
chamada Kentucky Derby, indo até Las Vegas, e cobrindo as eleições presidenciais dos
Estados Unidos de 1972.
Já a partir do final dos anos 1980, Thompson também passa a atuar mais como um colunista do que como repórter. Também não se defende aqui que o jornalista americano
tenha sido o único no mundo a exercer a parresía na reportagem. Inclusive,
contemporaneamente, isso pode ser, teoricamente, muito mais fácil de fazer, com todas as
ferramentas e possibilidades do mundo online – o porquê isso não acontece, pode ser tema
de outros estudos. Thompson teve mais um elemento-chave a seu favor:
representatividade. Ele teve participação no resultado das eleições que definiriam o
candidato do Partido Democrata à presidência dos Estados Unidos. Ele alterou decisões
judiciais no Colorado. Ele foi candidato a xerife e escreveu para os principais jornais e
revistas americanos, dentre os quais Rolling Stones, Playboy e New York Times.
Se todas essas justificativas apresentadas ainda são consideradas insuficientes por
alguém, apresento mais uma: a ausência de estudos acadêmicos na área do Jornalismo
escritor relativamente popular nos Estados Unidos, traduzem-se cada vez mais livros seus
para diversos idiomas, como o português, e tais textos influenciam futuras gerações de
jornalistas brasileiros. Cada vez mais a imagem do jornalista que falava o que pensava em
suas reportagens vai ultrapassando as fronteiras americanas, fazendo com que ocorra aqui
o mesmo fenômeno relatado pelo professor e biógrafo de Thompson, McKeen, que
salientou que muitos procuravam – e ainda procuram - o curso de jornalismo nas universidades americanas para tentar seguir os passos do criador do jornalismo gonzo: “Para os meus estudantes de jornalismo, Thompson era um tipo de deus. Um velho amigo meu, repórter, disse „ele fez o que nós todos tentamos fazer, mas ele realmente tinha colhões para isso‟” (MCKEEN, 2008, p. XVI). Diante de tamanha influência, um estudo sobre o único autor do jornalismo gonzo e as suas relações com a parresía, a meu ver, está
mais do que justificado. Obviamente deixo o desafio para que outros pesquisadores
apresentem o contraponto, pois sei que muitos dos meus argumentos serão ferrenhamente
criticados, ridicularizados, zombados e questionados. É o preço que se paga pela fala
franca no universo acadêmico.
Nesse sentido, aponto como objetivo geral da presente tese, apresentar e testar a
hipótese de que o jornalismo gonzo foi uma prática parresiastica no campo da reportagem
jornalística. Como objetivos específicos, busco contextualizar historicamente o jornalismo
gonzo e a vida de Hunter Thompson, além do jornalismo norte-americano do período;
explicar a origem e desenvolvimento do termo parresía; elaborar um conceito de parresía
jornalística; e, por fim, analisar se o jornalismo gonzo foi um jornalismo parresiastico.
Assim, a presente tese visa responder a seguinte questão norteadora de pesquisa: O jornalismo gonzo pode ser considerado um exemplo de parresía jornalística? Ou Hunter
Thompson buscou apenas um efeito de parresía, ou seja, o seu discurso jornalístico foi um,
enquanto as suas atitudes no decorrer da vida foram outras? Muito mais do que encontrar
uma resposta definitiva para essa questão, apresentar-se-ão hipóteses, que serão testadas,
abrindo questões para futuros pesquisadores que poderão apresentar outras visões e
interpretações.
Metodologicamente, para escrever a presente tese, optou-se por técnicas e métodos
abertos, destacados principalmente por Machado da Silva (2011) e Feyerabend (2003),
afinal, não tenho como objetivo emitir uma sentença final e determinista sobre o objeto
analisado, mas sim, busco apresentar reflexões e interpretações que possam acrescentar
algo para as futuras discussões no campo da Comunicação e, mais especificamente, no
vezes é feito de forma acrítica por análises positivistas. Dessa maneira, foi feita a opção
por uma visão aberta de procedimentos metodológicos, acreditando que, conforme
menciona Feyerabend (2003), as grandes invenções da humanidade surgiram justamente
quando os pesquisadores ousaram e quebraram as normas estabelecidas até então. Assim
como se um físico não desafia a ciência ou as regras de seu tempo para fazer um
experimento não há invenção, provavelmente se Thompson não tivesse quebrado diversos
tipos de normas do campo jornalístico, não haveria hoje esse estilo que ficou conhecido
como jornalismo gonzo.
Com uma metodologia aberta, espera-se que o objeto de estudo venha a falar por si
em toda a sua complexidade. Conforme ressalta Machado da Silva (2011), para isso é
preciso fazer uma operação de seleção, edição e estratégia. Ou seja, diante de um amplo
universo de elementos e sentidos, somos obrigados a escolher aquilo que consideramos
mais importante e pertinente. Para isso é necessário lembrar a importância dos procedimentos metodológicos, pois “uma metodologia (com suas técnicas) forma,
conforma e deforma um objeto” (MACHADO DA SILVA, 2011, p. 170). Vale lembrar
que, sendo assim, não se optou por procedimentos metodológicos fechados, que
desconsideram certos detalhes que, se vistos com a lente de aumento correta, podem se
revelar tão importantes quanto os aspectos mais visíveis do objeto. Em razão dessa
adequação do procedimento ao que se busca desencobrir, ressalta-se que, conforme a etapa
da pesquisa os procedimentos podem variar. Partilho do entendimento de que “a técnica (a
metodologia) é uma forma de desencobrimento. Faz o encoberto vir à tona. Mas o faz conforme o seu padrão” (MACHADO DA SILVA, 2011, p. 19-20). Não se busca,
portanto, nenhum tipo de submissão a algum método fechado, pois “quando o pesquisador
se submete à metodologia, perde o caminho do descobrimento” (MACHADO DA SILVA, 2011, p. 20). Aliás, teria algo mais contraditório do que analisar um autor como Hunter
Thompson pensando na ideia de parresía do que utilizar um método fechado para realizar
tal pesquisa?
Nesse sentido, também é importante ressaltar o caráter autoral de uma pesquisa,
afinal o pesquisador também é um sujeito inserido em um mundo, que tem seu próprio
imaginário e formas de ver e interpretar. “O papel do pesquisador é reconhecido, bem como sua eventual subjetividade, que se espera, todavia, ser racional, controlada e desvendada” (LAVILLE; DIONNE, 1999, p. 39). Ao mesmo tempo em que o autor da pesquisa busca controle para que o trabalho não venha a ser uma peça literária, ele é um
Braga, por sua vez, salienta que:
Um dos objetivos centrais do trabalho de produção da tese ou dissertação, mais que os resultados de conhecimentos produzidos sobre seus objetos, é a própria formação do pesquisador. Nessa formação, o desenvolvimento de competências metodológicas e de formulação teórica é o núcleo organizador (BRAGA, 2008, p. 2).
Na relação entre o pesquisador e o objeto pesquisado, o pesquisador é um indivíduo que “questiona, reflete, discute acerca de questões que aparecem implícitas e explícitas no seu objeto de investigação” (BIANCHI, 2011, p. 133). Ou seja, esse indivíduo, dotado de uma formação acadêmica e inserido em uma determinada realidade, investiga os distintos modos e
lógicas do objeto pesquisado.
Feyerabend (2003), por sua vez, ressalta que nenhum processo metodológico deve ser
ignorado durante a realização da pesquisa, salientando que a definição prévia de uma
metodologia fechada pode privar o estudo de chegar a pontos importantes sobre o tema
abordado. Ou seja, o autor defende que se utilizem as ferramentas necessárias de diferentes
metodologias para se buscar respostas aos problemas norteadores de uma pesquisa, seja de que
campo for, como fica claro no seguinte trecho:
Os filósofos, em especial os filósofos da biologia, suspeitavam havia já algum tempo que não há apenas uma entidade chamada “ciência”, com princípios claramente definidos, mas que a ciência compreende grande variedade de abordagens (em alto nível teóricas, fenomenológicas, experimentais) e que mesmo uma ciência particular como a física não passa de uma coleção dispersa de assuntos [...] cada um deles contendo tendências contrárias (FEYERABEND, 2003, p. 13).
A partir disso, o filósofo também defende que o Contra o Método (CM) inclui as
formas rejeitadas pelas ciências, como a arte, as percepções e estágios de desenvolvimento
humano. A ciência não pode excluir projetos não-científicos, afinal a seguinte questão
previamente em outra pesquisa, pode mais causar danos do que benefícios ao trabalho do
pesquisador.
Para exemplificar o CM, Feyerabend (2003) compara a atividade científica ao trabalho
de arquitetos, na qual só é possível avaliar o trabalho após o evento, depois de concluída a
estrutura, e não antes disso. Partindo dessa ideia, o autor complementa, questionando: “devemos realmente acreditar que as regras ingênuas e simplórias que os metodólogos tomam como guia são capazes de explicar tal „labirinto‟ de interações?” (FEYERABEND, 2003, p. 32). O mesmo autor defende que o pesquisador tenha a capacidade de entender e
aplicar, não uma metodologia em particular, mas qualquer metodologia e qualquer
variação dela que se possa imaginar, passando de uma a outra de maneira rápida e
inesperada.
O autor ainda critica a separação que há entre os diferentes campos do saber e,
principalmente, o isolamento de algumas áreas, que na busca de se tornarem únicas,
acabam se distanciando de suas contextualizações, criando uma lógica própria de seu campo: “Um treinamento completo em tal „lógica‟ condiciona então aqueles que trabalham nesse campo; torna suas ações mais uniformes e também congela grandes porções do processo histórico” (FEYERABEND, 2003, p. 34). A partir de então, ele defende que as opções metodológicas fiquem abertas, sem restringir a pesquisa de antemão. Nesse sentido
que, no decorrer da tese que se segue, são utilizados autores de diversas áreas das ciências
humanas, como Comunicação, Letras e Filosofia.
Aliás, logo no primeiro capítulo de Contra o Método, Feyerabend aponta que a
maioria das grandes descobertas da ciência ocorreu após a violação do método:
Descobrimos, então, que não há uma única regra, ainda que plausível e solidamente fundada na epistemologia, que não seja violada em algum momento. Fica evidente que tais violações não são eventos acidentais, não são o resultado de conhecimento insuficiente ou de desatenção que poderia ter sido evitada. Pelo contrário, vemos que são necessárias para o progresso humano (FEYERABEND, 2003, p. 39).
Para Feyerabend (2003), a prática liberal não é apenas um fato na história da
ciência, mas sim algo completamente necessário para o desenvolvimento. Ele acrescenta
que muitas vezes, além de se ignorar o método definido previamente, ainda é preciso
adotar a regra oposta ao método para que se chegue ao resultado que leve ao
adestramento de um animal, onde o pesquisador, na busca pela razão, acabará,
inconscientemente, agindo dentro de algo controlável e previsível:
Assim como um bem treinado animal de estimação obedecerá a seu dono, por maior que seja o estado de confusão em que se encontre e por maior que seja a necessidade de adotar novos padrões de comportamento, da mesma maneira o racionalista bem treinado irá obedecer à imagem mental de seu mestre, manter-se-á fiel aos padrões de argumentação que aprendeu, apegar-manter-se-á a esses padrões, inteiramente incapaz de compreender que aquilo que considera ser a “voz da razão” não passa de um efeito causal subsequente do treinamento que recebeu (FEYERABEND, 2003, p. 38).
O mesmo autor também compara a pesquisa com o processo infantil de
alfabetização de crianças, salientando a necessidade de se errar até chegar ao aprendizado e à descoberta: “Elas usam palavras, combinam-nas, brincam com elas, até apreenderem um significado que estivera, até então, além de seu alcance. E a atividade lúcida inicial é um
pré-requisito essencial para o ato final de compreensão” (FEYERABEND, 2003, p. 40). As teorias tornam-se claras apenas depois da utilização das partes incoerentes da mesma após
um longo tempo.
Outro ponto importante do conceito de Feyerabend (2003), e que apresenta
semelhanças com um dos princípios conceitos do jornalismo, é a contra-indução ou a
contrarregra, bem como a ideia do contraponto. O autor sugere que toda a indução e todas
as regras previamente definidas devem ser questionadas e que todas as possibilidades sejam consideradas: “A questão, portanto, não é se teorias contra indutivas deveriam ser admitidas na ciência; a questão é, antes, se as discrepâncias existentes entre teoria e fato devem ser aumentadas, ou diminuídas, ou o que mais deve ser feito com elas” (FEYERABEND, 2003, p. 47). Aliás, questão semelhante foi proposta por Moretzsohn no
campo jornalístico, ao propor o seguinte pensamento: “é preciso contrair o lugar-comum
de que „contra fatos, não há argumentos‟, para valorizar os argumentos que investem contra a naturalização dos fatos” (MORETZOHN, 2007, p. 25).
Mais uma semelhança da proposta de Feyerabend com o jornalismo, e também com a
literatura, é a atualização da linguagem e das visões de mundo que cercam o objeto. Essa
revisão frequente afina o estilo da expressão e faz parte do processo produtivo de um texto
acadêmico. Conforme o autor são esses elementos linguísticos que “dão vida àquilo que é dito
e ajudam-nos a superar a resistência do material observacional” (FEYERABEND, 2003, p.
Machado da Silva (2011) e Feyerabend (2003), ou seja, defendo a ideia de um texto
acadêmico vivo e de busca de elementos fora do rigor metodológico.
Outra convergência defendida aqui com as considerações de Machado da Silva
(2011), e por que não, das ideias de Thompson ao longo de sua obra, é a busca pelo
enfrentamento aos conflitos. Aliás, há algo mais conflitante do que o jornalismo gonzo levar a palavra “jornalismo” no nome, quando os manuais de redação e livros teóricos sobre jornalismo recomendam não fazer nada do que Thompson fez em seus textos? Há
algo mais conflitante do que usar ficção em uma reportagem? Subjetividade, adjetivos e
palavrões nas páginas de uma revista comprometida com a verdade? Quebra de leis por
alguém que ocupa um cargo que muitos definem como o de guardião da ordem e da
justiça? Todos esses conflitos foram levantados por Thompson, porém, até hoje são raros
os questionamentos sobre o que está institucionalizado como a prática jornalística
politicamente correta. Nesse sentido, busca-se encarar os conflitos de frente para eles. Para
tanto, o método torna-se fundamental:
Onde há conflito, o contraditório não pode ficar encoberto. Em pesquisa, não pode ser diferente. Se, sobre um mesmo assunto, existem divergências teóricas consideráveis, é preciso enfrentá-las. Na vida, é preciso ter método ou não se acha a chave para entrar em casa nem se acha o carro no estacionamento. Uma metodologia, contudo, não pode ser uma camisa de força. Um referencial teórico é uma visão de mundo. Um método é um instrumento de dês(en)cobrimento que faz uso de técnicas de pesquisa (MACHADO DA SILVA, 2011, p. 92).
Em outras palavras, busca-se ao longo dessa pesquisa trabalhar conjuntamente com
as relações que existem entre os procedimentos metodológicos propostos, o pesquisador e
o objeto.
Feitas essas considerações, ressalta-se mais especificamente os procedimentos
metodológicos utilizados ao longo deste estudo. Inicialmente, destaca-se que este estudo
pode ser caracterizado como uma pesquisa do tipo exploratória, desenvolvida com base na
pesquisa qualitativa, que trabalha com o universo de significados, aspirações, crenças,
valores, que dizem respeito a um espaço mais profundo das relações, dos fenômenos e
processos e que não são perceptíveis em números, equações, médias e estatísticas
(MINAYO, 1994). Ou ainda:
não padronizadas e estudos de caso (GIL, 1994, p. 44).
Além disso, é utilizada a pesquisa bibliográfica como técnica. Esse procedimento
será feito tanto na contextualização histórica sobre a parresía e o surgimento do jornalismo
gonzo, quanto na apresentação da biografia de Thompson e na análise feita relacionando a
sua vida e obra, pensando-as a partir da ideia da parresía jornalística. A pesquisa
bibliográfica aparecerá em todas as etapas do presente estudo. Vale lembrar que para uma
pesquisa ser bibliográfica, as perguntas devem estar direcionadas para os autores, ou seja,
ela ocorre “se o desejo é formular e encontrar respostas em fontes bibliográficas do campo
da educação e outros campos do saber” (TEIXEIRA E, 2005, p. 118). Entrementes, “a pesquisa bibliográfica é desenvolvida a partir de material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos” (GIL, 1995, p. 71).
Mesmo destacando que não existem regras rígidas para a realização da pesquisa
bibliográfica, Gil (1995) indica cinco passos para a realização desse tipo de estudo, que
foram seguidos na realização da presente tese. Inicialmente deve ser feita a exploração das
fontes bibliográficas, ou seja, o levantamento de livros, revistas científicas, teses, boletins e
outros textos sobre o tema. Posteriormente é feita a leitura do material, que deverá ter um caráter seletivo que possibilite reter o essencial para o desenvolvimento da pesquisa. O
terceiro passo é a elaboração das fichas, apontando os aspectos mais importantes das fontes
bibliográficas levantadas anteriormente: “Estas, poderão conter o resumo de parágrafos, capítulos ou de toda a obra” (GIL, 1995, p. 72). O passo sequente é a ordenação e análise das fichas, que devem seguir uma ordenação conforme o seu conteúdo. Por fim, são feitas
as conclusões.
Outra técnica que foi recorrida para apresentar a biografia de Thompson é a pesquisa documental. Nessa pesquisa, “as perguntas são direcionadas aos textos dos atores da educação, ou seja, se o desejo é encontrar respostas em fontes documentais produzidas nos múltiplos contextos educacionais” (TEIXEIRA E. 2005, p. 118). Foi utilizada a pesquisa documental, tanto no levantamento biográfico da atuação de Thompson no
jornalismo, quanto na análise das obras do autor, principalmente se for considerado que
essas duas etapas estão interligadas.
Por fim, vale ressaltar novamente que alguns procedimentos metodológicos foram
utilizados de acordo com a etapa da pesquisa, objetivando colocar em prática a visão
Para analisar a obra e vida de Thompson, relacionando-a com a ideia de parresía,
optou-se por utilizar, como um dos procedimentos metodológicos, a Análise de Discurso
baseada na visão de três autores: Michel Pêcheux (2014), Eni P. Orlandi (2013) e Michel
Foucault (2013). Outros autores são mencionados de forma complementar, pois foram
úteis para a utilização da Análise de Discurso na presente tese.
Inicialmente é pertinente apresentar uma das definições do que é um discurso:
O discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade nascendo diante de seus próprios olhos; e, quando tudo pode, enfim, tomar a forma do discurso, quando tudo pode ser dito e o discurso pode ser dito a propósito de tudo, isso se dá porque todas as coisas, tendo manifestado e intercambiado seu sentido, podem voltar à interioridade silenciosa da consciência de si (FOUCAULT, 2013, p. 46).
Ainda conforme Foucault (2013), o discurso passa a ser um jogo regido por regras
(linguísticas, de poderes simbólicos, de técnicas, de expressões e de silêncios) que inclui
uma relação de troca entre atores sociais. Assim, para se analisar algo discursivamente, é
necessário observar alguns princípios apresentados por Foucault (2013). O primeiro é o da
inversão, em que além dos papéis positivos, como o do autor, o da disciplina e o da vontade da verdade, também “é preciso reconhecer, ao contrário, o jogo negativo de um recorte e de uma rarefação do discurso” (FOUCAULT, 2013, p. 49). O segundo é o da descontinuidade, quer dizer, para além do discurso proferido há um grande discurso ilimitado, “contínuo e silencioso que fosse por eles reprimido e recalcado e que nós
tivéssemos por missão descobrir restituindo-se, enfim, a palavra” (FOUCAULT, 2013, p.
49). O terceiro, muito importante, é o da especificidade, que faz referência a não
transformação do discurso em jogo de significações prévias. Ou seja, é quando o analista
se despe de todos os seus conceitos e pré-conceitos para fazer a análise do discurso. A
quarta regra é a da exterioridade: “a partir do próprio discurso, de sua aparição e de sua regularidade, passar às suas condições externas de possibilidade, àquilo que dá lugar à série aleatória desses acontecimentos e fixa suas fronteiras” (FOUCAULT, 2013, p. 51). Todos esses são princípios sugeridos por Foucault (2013), que foram consideradas ao
longo da pesquisa sem, no entanto, servir de camisa de força para fazer a análise, pois,
Orlandi (2013), por sua vez, ressalta que, etimologicamente, a palavra discurso traz
consigo a ideia de curso, de percurso, de movimento. “O discurso é assim palavra em
movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando”
(ORLANDI, 2013, p. 15). Não necessariamente o discurso vai ser oral, podendo se
apresentar de diferentes formas comunicacionais, dentre as quais, a escrita. O discurso é
apontado pela autora como a mediação que torna possível tanto a permanência e
continuidade, quanto o deslocamento e a transformação da humanidade e da realidade na
qual estamos todos inseridos. Isso inclui o simbólico, que está na base da produção da
existência humana.
Outra premissa apontada por Orlandi é a necessidade de inserir o homem em um
contexto histórico, considerando os processos e as condições de produção da linguagem,
fazendo “a análise da relação estabelecida pela língua com os sujeitos que a falam e as situações em que se produz o dizer” (ORLANDI, 2013, p. 16). O mesmo dizer de um escritor-jornalista nos Estados Unidos dos anos 1960, por exemplo, pode ter significados e
interpretações diferentes do mesmo discurso proferido contemporaneamente no solo americano ou em outra parte do mundo. “Desse modo, para encontrar as regularidades da linguagem em sua produção, o analista de discurso relaciona à linguagem à sua exterioridade” (ORLANDI, 2013, p. 16).
Também é necessário se considerar que a história e a sociedade em que o discurso é
proferido não apenas contextualizam, mas também significam. Um exemplo disso é
quando surgem movimentos como os da contracultura, beat, hippie e outros, a partir dos
anos 1950, que são aprofundados nessa pesquisa. Muito mais do que apenas existirem em termos de contextualização, eles significam algo diante de outros objetos, como o
jornalismo gonzo. Assim, chega-se à questão da ideologia, pois parto do mesmo princípio
de Orlandi (2013) e Pêcheux (2014) de que não há discurso sem sujeito, bem como não
existe sujeito sem ideologia: “o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido” (ORLANDI, 2013, p. 17).
Vale a pena também ressaltar a diferença entre os objetivos da Análise de Conteúdo
e da Análise de Discurso. Enquanto na primeira a questão é voltada para o que o texto quer
dizer, na segunda a questão colocada é: como esse texto significa? Ou seja, muito mais do
que apresentar preocupações quanto às intenções do texto, para se observar o grau de
parresía nos textos de Hunter Thompson, é necessário analisar a maneira como tais
discursos escritos significam e são apresentados. Considera-se, portanto, a biografia do
as repercussões dos textos e as consequências que a publicação teve na época para ele e
para os outros. Por isso, a Análise do Discurso é uma das opções metodológicas mais
apropriadas para se fazer a presente pesquisa.
Orlandi (2013), apresenta outros três pontos fundamentais para se trabalhar com a
Análise do Discurso que foram observados durante a produção do texto que se segue nas
próximas páginas. O primeiro diz respeito à língua, que tem a sua ordem própria de forma
relativamente autônoma. A segunda é a história, que tem o seu real afetado pelo simbólico.
E o terceiro é o sujeito de linguagem, que é descentrado, pois é afetado pelo real da língua
e pelo real da história, não tendo, assim, controle sobre o modo como elas o afetam. “Isso
redunda em dizer que o sujeito discursivo funciona pelo inconsciente e pela ideologia” (ORLANDI, 2013, p. 20). Assim, como salienta Pêcheux (2014), os objetos ideológicos
vão muito além daqueles formalizados, como partidos políticos e grupos guerrilheiros, mas
eles também se encontram em ações cotidianas, como no trabalho, no sexo, na natureza, na
ciência, na razão, mesmo que essas não recebam o status de objetos lógicos e formais. “Esses objetos apenas existem como relações de forças historicamente móveis, como movimentos flexíveis que são surpreendentes por causa do paradoxo que eles possuem” (PÊCHEUX, 2014, p. 97). Tem-se, então, a definição de discurso como sendo o efeito de
sentido entre os locutores em movimento. A forma de se jogar com esses efeitos, no
entanto, é aprofundada na contextualização histórica do termo parresía, que se difere, por
exemplo, da lisonja e da retórica.
Outro ponto importante a ser ressaltado, é a diferenciação, apontada por Orlandi
(2013), da Análise de Discurso da Hermenêutica. Enquanto a segunda está preocupada em interpretar com profundidade o texto, ou seja, o discurso construído por linguagem, a
Análise do Discurso trabalha nos seus limites, nos seus mecanismos, como parte dos
processos de significação, afinal, não há uma verdade oculta atrás do texto, mas sim, há
gestos de interpretação que constituem o que o analista, com seu dispositivo, pode e deve
compreender. Vale ressaltar, portanto, que: “compreender é saber como um objeto
simbólico (enunciado, texto, pintura, música, etc.) produz sentidos. É saber como as interpretações funcionam. Quando se interpreta já se está preso em um sentido” (ORLANDI, 2013, p. 26). Ou seja, busca-se nessa pesquisa a compreensão de como um
objeto simbólico, como um conjunto de textos jornalísticos ou literários, produzem
sentidos e como ele está investido de significância para e pelos sujeitos.
Mesmo com a compreensão ficando em primeiro plano, vale ressaltar que a
ela vai aparecer em dois momentos da análise. Primeiro, quando o sujeito que fala
interpreta algo, e o analista descreve esse gesto de interpretação do sujeito que constitui o
sentido submetido à análise. Segundo, considerando que não há descrição sem
interpretação, portanto, o analista estará necessariamente envolvido na interpretação.
Assim, a autora chama a atenção para que haja um convite para que o leitor da pesquisa
ocupe, simbolicamente ou metaforicamente, a posição de pesquisador, pois estando “nesse
lugar, ele não reflete mas situa, compreende, o movimento da interpretação inscrito no objeto simbólico que é seu alvo” (ORLANDI, 2013, p. 61). Para tudo isso acontecer, no entanto, é fundamental a mediação teórica, que na presente tese está representada pela
teorização da palavra grega parresía feita por Foucault, mais aprofundada ao longo dos
capítulos.
Dessa maneira, muito mais do que simplesmente selecionar os textos de Hunter
Thompson que interessaria a um pesquisador que busca interpretá-los, o que é feito aqui é
a busca pela compreensão a partir da ligação entre o objeto estudado, a teoria proposta de
parresía jornalística e as relações externas que atuaram na formação do que ficou
conhecido como jornalismo gonzo. Afinal, os dizeres não são apenas mensagens a serem
decodificadas e interpretadas, mas sim:
São efeitos de sentidos que são produzidos em condições determinadas e que estão de alguma forma presentes no modo como se diz, deixando vestígios que o analista de discurso tem de apreender. São pistas que ele aprende a seguir para compreender os sentidos aí produzidos, pondo em relação o dizer com sua exterioridade, suas condições de produção. Esses sentidos têm a ver com o que é dito ali mas também em outros lugares, assim como com o que não é dito, e como o que poderia ser dito e não foi. Desse modo, as margens do dizer do texto, também fazem parte dele (ORLANDI, 2013, p. 30).
Por isso que, convergindo com a ideia defendida pelo CM, mencionada
anteriormente, durante a pesquisa todos os possíveis rastros foram considerados: cartas;
coletâneas de entrevistas; biografias; reportagens publicadas em formato de livro;
reportagens publicadas exclusivamente em jornais, revistas e sites; depoimentos de amigos,
parentes e inimigos; filmes de ficção e documentários; viagens feitas pelos Estados Unidos
seguindo os passos do jornalista; conversas com leitores; conversas com editores e
parentes, enfim, um material gigantesco que renderia um livro de mais de 10 mil páginas
se houvesse leitores para isso. Porém, parte desse material foi devidamente selecionado
para ser incluído na presente tese. Por isso que ainda há espaço para muitos outros
sua interpretação e teria a sua própria compreensão das questões propostas. Vale a pena
destacar que o conjunto dos textos e, principalmente, cada texto de Hunter Thompson
publicado, renderia, por si só, extensos trabalhos analíticos. No entanto, aqui diversos deles
foram selecionados – alguns importantes possivelmente possam ter ficado de fora, não por
omissão, mas sim pela limitação espaço-temporal – pensados e analisados considerando que, não só o contexto, mas também a memória, faz parte do discurso, afinal, ela também
significa a linguagem (ORLANDI, 2013). Há uma relação que pode ser inconsciente por
parte do emissor do discurso, entre o já dito e o que se está dizendo: “Todo dizer, na realidade, se encontra na confluência dos dois eixos: o da memória (constituição) e o da atualidade (formulação). E é desse jogo que tiram seus sentidos” (ORLANDI, 2013, p. 33). Muitas vezes, para se compreender um discurso, é preciso saber o que é dito em outros
discursos, além de incluir na análise o que não é dito – os silêncios – e os esquecimentos.
Afinal, “nem todas as regiões do discurso são igualmente abertas e penetráveis; algumas
são altamente proibidas (diferenciadas e diferenciantes)” (FOUCAULT, 2013, p. 35), enquanto outras são abertas a todos, sem restrições.
Outra relação importante a ser pensada na Análise de Discurso, considerada ao
longo da pesquisa, são as relações de forças. Conforme Orlandi (2013), o sujeito que emite
o discurso está falando a partir de algum lugar, e isso influencia no seu discurso. Essa é
uma noção importante, que vai ser central na ideia da parresía, pois o que vai definir uma
situação de parresía é o risco assumido por aquele que fala – o que implica em uma grande
probabilidade de que, hierarquicamente, nos diversos jogos de poder, o sujeito falante está um ou mais degraus abaixo daquele a quem o discurso é dirigido. “Como a sociedade é constituída por relações hierarquizadas, são relações de força, sustentadas no poder desses
diferentes lugares, que se fazem valer na comunicação. A fala do professor vale (significa) mais do que a do aluno” (ORLANDI, 2013, p. 40). Esse jogo de posição e de lugar que cada um ocupa no ambiente em que a comunicação está acontecendo vai ser fundamental
para, mais adiante, melhor se compreender a noção de parresía. Nesse momento é apenas
importante se ter em mente esse jogo discursivo muito bem ilustrado no trecho a seguir:
Ou seja, “na relação discursiva, são as imagens que constituem as diferentes posições” (ORLANDI, 2013, p. 40). Aliás, vale lembrar que: “o dizer do homem é afetado pelo sistema de significação em que o indivíduo se inscreve. Esse sistema é formado pela
língua, pela cultura, pela ideologia e pelo imaginário” (BENNETI, 2007, p. 109). Como é aprofundado ao longo da pesquisa, essas relações vão ser fundamentais para se
compreender o que é a parresía e as relações que elas podem ser feitas com a prática
jornalística, em especial, com o jornalismo gonzo. Pois além das imagens mais
tradicionais, geralmente relacionadas com as profissões, ou seja, o jornalista, o advogado,
o juiz, o professor, tem-se também as imagens baseadas em rótulos sociais e psicológicos,
como o louco, o drogado, o bêbado, o depravado, o inteligente, o malandro, etc. E esses
rótulos vão aparecer claramente, principalmente quando Hunter Thompson deixa de ser um
escritor e jornalista anônimo para se tornar uma celebridade que vira personagem de filme
de Hollywood. Porém essa imagem não pode ser menosprezada, pois “o imaginário faz necessariamente parte do funcionamento da linguagem” (ORLANDI, 2013, p. 42). Entretanto, a análise também não pode ficar presa à imagem, ela precisa atravessar esse
imaginário que condiciona os sujeitos dentro das suas discursividades, para se
compreender melhor o que está sendo dito. Além disso, a imagem vai fazer parte do que
Foucault (2013) vai chamar da legitimação do discurso. Desde a Idade Média é verificada
essa legitimação que atribui que se foi uma pessoa que ocupa um determinado cargo quem
proferiu o discurso, essa fala ganha o status de verdade. Contemporaneamente,
imageticamente falando, algumas pessoas mais ingênuas podem, por exemplo, achar que
uma fala legitimada por um jornalista, ou por um professor, ou por um juiz, tenha um selo de qualidade intitulado: verdade.
A legitimação do autor, assim, vai também para o campo da literatura, na qual a
função do escritor ao longo dos séculos não cessou de se reforçar: os textos, as poesias, as
anedotas saíram do campo do anonimato para o campo autoral. Em outras palavras, antes
as histórias contadas oralmente, muitas vezes, não tinham um autor. No entanto, com o
passar do século, principalmente a partir da invenção da imprensa, que conforme aponta
Briggs e Burke (2006) ocorreu em 1450 com Johann Gutenberg de Mainz, criou-se a ideia
de direito autoral e, assim, a figura do autor passou a ser praticamente um item
indispensável para um discurso literário. E dessa maneira, o autor, mesmo quando escreve
aquele que dá à inquietante linguagem da ficção suas unidades, seus nós de coerência, sua inserção no real” (FOUCAULT, 2013, p. 26).
Voltando aos procedimentos metodológicos, no entanto, é necessário destacar outro
ponto importante para a Análise de Discurso, que irá aparecer ao longo do texto: a noção
de metáfora. Aqui, ao contrário do que ocorre na retórica, ela não é uma figura de
linguagem, mas sim, significa basicamente transferência, estabelecendo o modo como as
palavras significam. Sendo assim, algumas metáforas são apresentadas não apenas para
ilustrar o que se quer dizer, mas também para se transferir o significado de determinado
contexto para que se tenha a melhor compreensão analítica do objeto. Afinal, assim como o discurso é linguagem em movimento, a Análise de Discurso também passa a ser “um
procedimento que demanda um ir-e-vir constante entre teoria, consulta ao corpus e análise”
(ORLANDI, 2013, p. 67), procedimento esse que foi feito durante todo o trabalho.
Porém enquanto para alguns a AD pode ser vista como um processo simples e fácil,
a verdade é que, para se analisar discursivamente determinado corpus, é preciso considerar
o que realmente é o texto e a linguagem contida nele (com todas as suas significações) e o
que se gostaria que fosse, utopicamente falando. Assim, mais uma vez, ressalta-se que a
presente tese não busca apresentar uma verdade absoluta, pois os próprios discursos
analisados não são constituídos dessa forma:
O que temos, em termos de real do discurso, é a descontinuidade, a dispersão, a incompletude, a falta, o equívoco, a contradição, constitutivas tanto do sujeito como do sentido. De outro lado, a nível das representações, temos a unidade, a completude, a coerência, o claro e distinto, a não contradição, na instância do imaginário. E por essa articulação necessária e sempre presente entre o real e o imaginário que o discurso funciona. É também dessa natureza a distinção (relação necessária) entre discurso e texto, sujeito e autor (ORLANDI, 2013, p. 40).
Esse é um dos pontos que será aprofundado ao longo da análise, afinal, devido a
essas complexidades e imperfeições, tornam-se possíveis argumentos como os defendidos
ao longo da presente tese, bem como aqueles em sentido oposto, ou seja, enquanto a
hipótese a ser testada é a de que houve uma coerência entre os textos de Hunter Thompson
e a sua filosofia de vida, o que é um ponto importante para considerar o jornalista um
parresiasta, é possível, sim, se defender uma tese contrária alegando que ele, em seu
trabalho literário jornalístico, valeu-se mais de uma linguagem que passasse a impressão de
estar falando a verdade, objetivando causar uma falsa impressão ao leitor sobre o uso da
retórico. Se o que apresento ao longo do texto que se segue não é a verdade absoluta, posso
destacar que é ao menos a minha verdade, ou seja, aquela verdade em que acredito
enquanto pesquisador. Essa verdade é a que pretendo compartilhar no sentido de contribuir
para as reflexões – e compreensões – do campo jornalístico. Aliás, aproveito a oportunidade para, ao explicar a opção pela Análise do Discurso, também justificar a
ausência de um capítulo que aborde linguagem jornalística. Antes de mais nada, vale
ressaltar que o objeto dessa tese não é discutir se jornalismo gonzo é ou não jornalismo.
Conforme é percebido ao longo da tese, alguns textos podem ser considerados
jornalísticos, enquanto há outros que são exclusivamente literários e até mesmo ficcionais.
Porém não é o uso de uma linguagem jornalística ou literária ficcional que permite apontar
se Hunter Thompson foi ou não um jornalista parresiasta, mas sim, a maneira, ou o como,
apresentam-se os seus discursos. E, na análise do discurso, como muito bem aponta
Orlandi (2013), as tipologias podem ser utilizadas em alguns momentos da análise, mas isso não faz parte de suas preocupações centrais: “O que caracteriza o discurso, antes de tudo, não é o seu tipo, é seu modo de funcionamento” (ORLANDI, 2013, p. 86). No entanto, para os pesquisadores preocupados com essa questão, fica a sugestão como tema a
ser aprofundado em outros estudos. Outro ponto interessante a ser lembrado sobre isso é
que:
Os que praticam a análise de discurso concordam, geralmente, sobre a necessidade de distinguir, de um lado, os universos discursivos logicamente estabilizados [...] e, por outro lado, os espaços discursivos não estabilizados logicamente (destacando-se os espaços do filosófico, do sócio-histórico, do político, do estético e dos múltiplos registros do cotidiano) (PÊCHEUX, 2014, p. 143).
Tudo isso foi considerado ao longo do presente estudo, bem como as relações entre
discurso e poder, apresentadas por Foucault (2013), salientando que em toda a sociedade a
produção do discurso é, simultaneamente, controlada, organizada, selecionada e redistribuída por um número limitado de procedimentos que “têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (FOUCAULT, 2013, p. 8-9). Além disso, o autor acrescenta que: “Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam
logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder” (FOUCAULT, 2013, p. 9-10).
apoderar” (FOUCAULT, 2013, p. 10). E isso é percebido ao longo da relação que pode ser feita entre a parresía e o discurso jornalístico, pois, querendo ou não, ele acaba sendo uma
forma de luta ideológica, objetivando um ideal que o seu autor – ou autores – busca transformando o mundo onde vive, bem como os filósofos parresiastas faziam na Grécia
Antiga. Chega-se, então, ao que é aprofundado ao longo da tese, à relação entre discurso e
verdade, ou melhor, a vontade da verdade que fica sujeita às pressões, que podem exercer
um poder de coerção (FOUCAULT, 2013).
Para finalizar as considerações sobre a Análise de Discurso, vale ressaltar que
Foucault (2010b) salientou a complexidade de se pensar o discurso quando se analisa algo
sob a perspectiva da parresía. “A análise da parresía é a análise dessa dramática do discurso verdadeiro que revela o contrato do sujeito falante consigo mesmo no ato do
dizer-a-verdade” (FOUCAULT, 2010b, p. 66). Ou seja, tudo o que foi dito até aqui foi justamente no sentido de se analisar as relações entre o discurso jornalístico de Hunter
Thompson com a sua filosofia de vida, ou, como bem colocou o filósofo francês, para
identificar a existência ou não do contrato do jornalista falante com a sua fala franca.
Assim, é pertinente dizer que escrever uma tese aplicando o conceito de parresía
para verificar se uma ideia de parresía jornalística está ou não presente no jornalismo
gonzo é uma viagem que, conforme já mencionado, pode ser feita por diversos caminhos.
Dessa forma, não faltaram dúvidas na hora de definir como seria feita a análise. Duas das
mais importantes foram: definir como objeto um número restrito de obras de Thompson ou
tentar abarcar toda a sua produção? A segunda: fazer a análise a partir das características
da parresía, observando como elas aparecem no jornalismo gonzo, ou analisar a vida e obra de Hunter Thompson em ordem cronológica para verificar se ele foi ou não um
parresiasta? A resposta para essas duas questões, complementam-se. Optei, então, por
abarcar a produção mais significativa de Hunter Thompson em ordem cronológica,
verificando, assim, como se relacionam as características da parresía jornalística com a sua
vida e obra, lembrando que, como é visto no capítulo conceitual e histórico sobre parresía,
a fala franca está diretamente relacionada com o modo de vida do seu emissor. Portanto,
durante a análise, a vida de Hunter Thompson foi dividida em etapas, que constituem
subcapítulos, em que é feita a referida análise. Achou-se mais produtivo esse método, já
que fazer a análise a partir das características da parresía abriria o alto risco de tornar o
texto repetitivo, pois em todas as etapas da vida do jornalista essas características
estiveram presentes. A partir disso, para a leitura da análise ter um sentido mais claro ao
melhor opção de método para responder a questão-problema dessa pesquisa: o jornalista
norte-americano Hunter Thompson foi um jornalista parresiasta? Em outras palavras: ele
exerceu a parresía nos seus textos de jornalismo gonzo ou apenas buscou um efeito de
parresía/fala franca? Dessa forma, o corpus da pesquisa (os onze livros publicados por
Hunter Thompson e outras produções jornalísticas) aparecem de acordo com o momento
da vida do autor.
Feitas essas considerações metodológicas, vale ressaltar que a presente tese está
dividida em 11 capítulos. No primeiro, é apresentada a história, os conceitos e os
adversários do termo grego parresía, tendo como referencial teórico a obra de Michel
Foucault. Feita essa contextualização, no segundo capítulo é apresentada uma proposta
teórica para o conceito de parresía jornalística, ou seja, a aplicação da ideia da parresía da
Grécia Antiga no campo jornalístico. Nessa parte do estudo são apresentadas e discutidas
as características que formam a concepção de parresía jornalística.
No terceiro capítulo começa a contextualização histórica, convergindo com o
pensamento apresentado durante as considerações sobre a análise de discurso. Afinal, para
compreender – e é essa a proposta desse método – devem ser feitas as relações com os diferentes processos de significação que acontecem em um texto. E esses processos,
conforme salienta Orlandi (2013), são função da historicidade do texto. “Compreender
como um texto funciona, como ele produz sentidos, é compreendê-lo enquanto objeto
linguístico-histórico, é explicar como ele realiza a discursividade que o constitui” (ORLANDI, 2013, p. 70). Além disso, a relação entre textos faz com que a interpretação
que o leitor terá da própria análise seja mais completa, como bem sintetizam os teóricos Jean-Claude Carrière e Umberto Eco em diálogos publicados em forma de livro:
Se leio Kafka antes de ler Cervantes, através de mim e à minha revelia, Kafka modificará minha leitura do Quixote. Da mesma forma que nossos percursos de vida, nossas experiências pessoais, a época em que vivemos, as informações que recebemos, até nossas mazelas domésticas ou os problemas de nossos filhos, tudo influencia nossa leitura das obras antigas (ECO; CARRIÈRE, 2010, p. 135)
Portanto, é importante se ter em mente o que aconteceu anteriormente à produção
do jornalismo gonzo em solo americano, que foi onde Hunter Thompson fez a sua obra.
Assim, no terceiro capítulo é apresentado um grupo de jornalistas da virada do século XIX
para o século XX que ficou conhecido como mucraker, por fazer um jornalismo mais
investigativo, que flertava com o sensacionalismo. Em seguida, no quarto capítulo, é feita