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O ano era 1947. A cidade, Louisville, no estado americano de Kentucky. Todos os dias, um furgão sem portas parava na casa que fica no final da Ransdell Avenue, número 2437. Era um furgão fedorento, que parava de casa em casa pela vizinhança para entregar leite. A equipe encarregada de tal tarefa: o leiteiro, que também fazia o papel de motorista, e o entregador, conhecido por mula, que também tinha a função de fazer as cobranças com quem estava com a conta atrasada. Pois o entregador chamava-se Hunter Stockton Thompson, então, com dez anos, que cumpria a tarefa com disciplina e dedicação. Poderia atender a porta a dona de casa mais feia dos Estados Unidos, em seu roupão de banho, de cara amarrada e pronta para gritar e xingar, que ele cumpria o seu dever de cobrar os 21 dólares e dezesseis centavos. “Nenhum argumento me abalava. Acho que nem escutava o

que diziam. Estava ali para cobrar e não para ouvir, e pouco me lixava se eles iam pagar ou não” (THOMSON, 2007, p. 11). O que aquele garoto de 10 anos queria mesmo era sentir a adrenalina de correr pelos gramados, pular cercas e chegar são e salvo ao furgão. Pois essa relação simples, de Hunter Thompson com o leiteiro, já o fez entender como funcionavam as coisas nos Estados Unidos e no mundo ocidental. Era a lógica do sistema, que as pessoas praticamente não questionavam. Apenas se submetiam a ela. E essa experiência, narrada em um texto escrito 27 anos depois para o New York Times, fez com que Thompson entendesse desde cedo o status quo que já estava estabelecido assim que ele chegou ao mundo:

Aquele leiteiro que me fez de cobrador não era nada bobo. Eu recebia ordens dele e nunca me ocorreu imaginar quem mandava nele. Para mim era suficente percorrer as ruas decoradas por olmos num furgão grande de cores vivas, entregando a mercadoria. Mas na época eu tinha 10 anos de idade e não sabia de muitas coisas... [...]. Se o leiteiro tivesse me dado uma pistola e dito para eu meter uma bala no estômago de qualquer vagabundo que criasse caso sobre a conta, eu provavelmente teria feito isso também [...] O leiteiro entendeu que eu não precisava saber muitas coisas sobre o meu trabalho. Nem ele, na verdade. Éramos muito mais felizes apenas cumprindo ordens (THOMPSON, 2007, p. 14).

Entre os dez anos de Hunter Thompson até a criação do seu jornalismo gonzo, muita coisa aconteceu. Porém, as experiências da infância e da juventude o influenciaram para o resto da vida.

Volta-se, então, dez anos atrás. Na mesma Louisville, no dia 18 de julho de 1937, nasceu Hunter Stockton Thompson, primeiro filho de Jack e Virgínia Thompson. Eles casaram quando ele tinha 42 anos e ela 27, em 1935. A origem do nome foi uma mescla do nome dos pais de Virgínia: Lucille Cochran Hunter e Presley Stockton Ray. Desde essa época, até a morte da mãe de Hunter, em 1998, o endereço da família sempre foi o mesmo: Ransdell Avenue, 2437, em Louisville.

Imagem 6: Ransdell Avenue, 2437, em Louisville, em 2014.

Fonte: Arquivo pessoal.

Hunter se criou brincando com os amigos de bairro e escola no Cherokee Park, um amplo parque de área verde em Highlands, que ficava nas proximidades de sua casa. “A cidade era o seu parque de diversões” (MCKEEN, 2008, p. 6).

Imagem 7: Cherokee Park em 2014. Nesse parque com muito verde, Hunter e seus amigos brincavam nos anos 1940.

Fonte: Arquivo pessoal.

Sua primeira escola foi a Bloom Elementary School, e já nessa época ele começou a desenvolver os seus problemas com as autoridades: “Mesmo nos primeiros anos de escola, Hunter teve problemas com a autoridade, mas o que tornava ele mal visto pelos professores fazia dele um herói para os colegas” (MCKEEN, 2008, 7-8). Afinal, “Hunter era considerado um delinquente juvenil brilhante, liderando aquelas crianças fracas, que eram seus amigos, para fazer coisas poderosas” (LINDERBERGER, 2014, p. 70). Mais tarde, ele acabou se transferindo para a High School of Louisville, aonde também teria problemas com os professores.

Já em relação à família, em um de seus textos autobiográficos, Hunter salienta que foi criado para respeitar as autoridades, porém, isso nunca foi fácil para ele.

Meus pais eram pessoas de bem e fui criado, como meus amigos, para acreditar que a Polícia era nossa amiga e protetora – o Distintivo era símbolo de uma autoridade extremamente elevada, talvez a mais elevada de todas. Ninguém jamais perguntava por quê. Era uma dessas perguntas impróprias que é preferível deixar quietas. Se você precisava perguntar isso, com certeza era Culpado como o diabo por algo e provavelmente deveria estar atrás das grades havia muito tempo. Ninguém ganhava com isso (THOMPSON, 2007, p. 31).

Nessa primeira reflexão feita por Thompson já é possível perceber a sua insatisfação com as coisas que já estavam estabelecidas na sociedade muito antes que ele viesse a integrá-la. A quebra das normas sociais, legais e jornalísticas, abordada com mais profundidade mais adiante, aparecem em diversos momentos de sua vida. Assim, ao mesmo tempo em que não é o objetivo dessa pesquisa fazer unicamente um trabalho de levantamento biográfico de Thompson, também não é possível tratar dela superficialmente, tendo em vista a importância que o estilo de vida adotado pelo jornalista-escritor teve na produção de sua obra, e é o que permite analisá-la sob o ponto de vista da parresía jornalística.

Nesse sentido, a obra de Wenner e Seymour (2007), que faz um levantamento biográfico de Thompson a partir de depoimentos de amigos, familiares, colegas, inimigos e pessoas ilustres que conheceram o jornalista, torna-se significativa, bem como a biografia escrita por McKeen (2008) e todo o material autobiográfico do jornalista. A primeira esposa de Hunter, Sandy, por exemplo, conta em entrevista que a inconformidade de Thompson com as normas começa desde o momento em que ele deixa o ventre da mãe:

Hunter nasceu de forma diferente – muito diferente. Sua mãe, Virginia, e eu conversamos muitos, muitos anos atrás sobre como Hunter era quando era um garotinho. Ele tinha raiva. Ele tinha charme. Ele tinha muitos problemas. E o que eu sempre costumava dizer – que é interessante, à luz do fim de sua vida – era que ele tinha se atirado para fora do ventre de raiva. E, em seguida, ele o deixou da mesma forma (WENNER; SEYMOUR 2007, p. 3).

Em outro depoimento dado aos autores, Debora Fuller, assistente pessoal de Thompson entre 1982 e 2003, declara que “a mãe de Thompson me disse que ele nasceu como uma coruja da noite. Ela amaldiçoava isso porque – „oh Deus, ele nunca dorme no mesmo horário dos seus irmãos‟” (WENNER; SEYMOUR, 2007, p. 4).

Mas afinal, quem era esse casal com 15 anos de diferença que se uniu matrimonialmente e colocou Hunter Thompson no mundo? A mãe, Virgínia, era uma bibliotecária que trabalhava na Biblioteca Municipal de Louisville. Já o pai, Jack, nasceu em Horse Cave, Kentucky, em 1893, e chegou em Louisville com seus três irmãos, acompanhando sua mãe. A primeira esposa de Jack morreu em 1923, dois anos depois de terem o primeiro filho, Jack Jr, que foi criado pela avó materna em Greenup, Kentucky. Jack Thompson, anos depois de se casar, serviu na Segunda Guerra Mundial e, ao retornar, se tornou um agente de seguros.

Nos depoimentos, a família de Thompson é descrita como sendo de classe média baixa. Entretanto, há uma unanimidade nos depoimentos que apontam que desde a infância Thompson tinha tanto amigos de classes sociais mais baixas, que incluíam ladrões e traficantes, até pessoas da alta classe de Louisville, como o filho do prefeito e de outras autoridades locais. De acordo com os relatos, o pai de Thompson era muito rigoroso e disciplinador em relação à educação dos filhos.

Neville Blakemore, amigo de infância, conta que seus pais não gostavam que ele andasse com Thompson, pois o futuro jornalista tinha fama de “valentão”. Entretanto, isso não foi o suficiente para afastá-lo de Thompson. Conforme depoimento de Blakemore: “Ele era um imã. Havia sempre alguma coisa acontecendo. Tínhamos soldados de brinquedo enormes e nós brincávamos de guerra” (WENNER; SEYMOUR, 2007, p. 5). Foi na infância que Hunter já demonstrava um grande interesse por armas de fogo. Entretanto, conforme outro vizinho de infância de Thompson, Gerald Tyrrel, também foi nesse período que o jornalista começou a desenvolver seu interesse por literatura:

Nosso grupo ia para o Parque Cherokee para jogar futebol [americano], ou jogava basquetebol, ou pegava moedas de dez centavos e ia para o centro ver filmes – nós íamos em todos os lugares – mas era frequente ir para a biblioteca

ler livros. Hunter dizia, “Vamos para a biblioteca”, e sete ou oito de nós

pegávamos nossas bicicletas e descíamos para lá. E assim, íamos sentados em nossos bancos numa marcha turbulenta e barulhenta até os degraus da biblioteca, e em seguida nós estávamos tão quietos quanto em uma missa e cada um escolhia um livro e sentava e lia por um par de horas, e então colocava os livros de volta e saía novamente sentados em nossos bancos e voltávamos da mesma forma de bicicleta para casa. E isso inclusive em dias chuvosos. Era o ano todo (WENNER; SEYMOUR, 2007, p. 5).

O interesse por literatura também está relacionado, conforme outros relatos, com o fato da mãe de Thompson ser bibliotecária. Além disso, nesse período Virgínia lia histórias para ele e seus amigos.

Imagem 8: A Biblioteca Pública de Louisville, aonde a mãe de Thompson, Virgínia, trabalhou até a sua morte, em 1998, e aonde o jornalista e seus amigos gastavam boa parte do tempo lendo livros durante a

infância e adolescência.

Fonte: arquivo pessoal do autor.

Um dos episódios mais marcantes da infância de Hunter, relacionado à sua formação questionadora sobre o poder das autoridades, ocorreu no verão de 1946, quando Hunter tinha apenas nove anos. Pode-se dizer que esse acontecimento, relembrado frequentemente por ele e por aqueles que estavam a sua volta, o marcou tanto em sua filosofia de vida perante a sociedade, bem como na sua prática jornalística. Na ocasião, Hunter e alguns amigos arrancaram um equipamento de aço e o colocaram na rua, em frente à parada de ônibus, para se vingar do motorista novo do transporte escolar, que insistia em não parar o ônibus para eles. O plano deu certo e o veículo bateu na engenhoca. Então, agentes do FBI bateram na porta da sua casa e conversaram com seus pais, insistindo que ele confessasse tudo. A insistência durou até que os agentes disseram que tinham testemunhas que confirmavam a sua participação no episódio. Foi então que Thompson demonstrou uma das características que marcou toda a sua trajetória no jornalismo: o questionamento às autoridades:

“Quem?,” perguntei. “Que testemunha”?

Não era nada demais para perguntar naquelas circunstâncias – e eu realmente queria saber exatamente qual dos meus melhores amigos e irmãos de sangue do temido Hawks A.C. tinha cedido sob pressão e me denunciado a esses mal- encarados, a esses brutamontes pomposos e lambe-botas com seus distintivos de plástico guardados na carteira, que alegavam trabalhar para J. Edgar Hoover e ter o Direito, e até mesmo o dever, de me botar na cadeia porque tinham escutado

“um boato na vizinhança” de que alguns dos meus companheiros tinham entregado os pontos e me dedurado. “O quê?” Não, impossível (THOMPSON,

2007, p. 35).

A partir de então, o pai de Thompson fez a mesma indagação aos oficiais, que acabaram desistindo da operação.

Após esse episódio, Thompson seguiu praticando pequenos delitos, como cometer furtos e fazer uso de bebida alcoólica. Doug Brinkley, diretor literário executivo do jornalista e

editor de três de seus livros, contou em entrevista que foi com atitudes como essas que o jornalista e escritor começou a descobrir o seu poder de liderança:

Ele aprendeu que poderia tornar-se, essencialmente, um líder ou um tirano por extravagância verbal e fazendo as brincadeiras mais ultrajantes. Que ele poderia tornar-se mais frio que um quarto zagueiro de futebol [americano] ou a cabeça de algum clube da escola Kentucky por ser um vagabundo selvagem pronto para encontrar os pontos fracos em alguém e rasgá-los em pedaços. E, depois, dar-lhe a mão de forma superior (WENNER E SEYMOUR, 2007, p. 9).

Para o seu amigo Gerald Tyrrel, ao mesmo tempo em que descobria que tinha poder persuasivo sobre as outras pessoas, Hunter teve a sua iniciação com a bebida. Conforme Tyrrel, Hunter sempre quis ser um atleta, entretanto, a baixa estatura para os padrões dos times de basquetebol fez com que, ao chegar aos 14 anos, ele se frustrasse pelo fato de que não iria crescer mais. Tyrrel contou em entrevista que essa frustração fez com que ele passasse a trocar uma vida voltada para o esporte por “atividades sociais em torno de diferentes coisas, desde que tivessem garrafas” (WENNER; SEYMOUR, 2007, p. 9).

Foi nesse período que o pai de Thompson faleceu. Segundo o depoimento de Sandy Thompson, com a morte de Jack, Virginia e Hunter passaram a beber mais. A morte do pai certamente teve influência na formação do jornalista, que passou a não ter mais a autoridade paterna para tentar conter o seu impulso em cometer pequenas infrações. “A sua mãe tentou criá-lo como um cavalheiro, mas a morte precoce do seu pai chocou Thompson e conduziu-o em direção a uma carreira como delinquente” (MCKEEN, 2008, p. XIV).

Ao mesmo tempo, foi nessa época que a mãe de Thompson passou a levar mais livros para casa, aprofundando a relação dele com a literatura. Doug Brinkley salienta em depoimento que: “Hunter tinha um repertório criminoso na sua mente, e ele teria se tornado um criminoso se não fosse a literatura, que sua mãe infundiu em casa” (WENNER; SEYMOUR, 2007, p. 11).

A adolescência também foi tema de reflexão do texto “Você faria de novo”, publicado em Reino do Medo. Nele, Thompson conta que durante a sua juventude ele tinha um apetite ferrenho por aventuras, que logo o levou para caminhos mais complexos, causando dificuldade para a sua mãe entendê-lo. Além disso, ele reconhece que era um aluno popular na escola e com notas aceitáveis, entretanto, ele se descreve como detentor de um humor perverso que assustava até mesmo os adultos.

Mas eu era um delinquente juvenil. Era o Billy the Kid de Louisville. Um

criminoso, isso é tudo que precisa fazer. Na sexta série, fui eleito chefe de Patrulha de Segurança – os garotos que usam distintivos param o tráfego durante o recreio e patrulham. Era uma posição de muita importância, e a diretora detestou o fato de eu ter sido eleito. Ela disse: “Isso é horrível”. “Não podem

deixar o Hunter fazer nada”. “Ele é um pequeno Hitler”. Eu não tinha certeza do

que aquilo significava, mas acho que significava que eu tinha um domínio natural sobre muitos alunos. E que eu provavelmente deveria ser lobotomizado, para o bem da sociedade (THOMPSON, 2007, p. 41).

Esses depoimentos, por mais insignificantes que possam parecer inicialmente, são fundamentais de serem assimilados, pois a formação da personalidade de Thompson foi determinante para que ele elencasse as principais características do jornalismo gonzo, anos mais tarde. Como se pode perceber, pela posição social, pelas relações familiares e pela inconformidade com o sistema, ele levou a sua marginalidade, tempos depois, para as páginas dos jornais e das revistas. O próprio Hunter já avaliava como seria a sua vida desde a infância: “Sempre imaginei que viveria nas margens da sociedade, como parte de um segmento Fora-da-Lei bastante reduzido. Nunca fui aprovado por nenhuma maioria” (THOMPSON, 2007, p. 42). De fato, pela sua biografia, Thompson teve a sua previsão confirmada, pois mesmo depois de se tornar um jornalista e escritor famoso, ele sempre esteve longe de ser uma unanimidade, tanto em relação ao público leitor, quanto em relação a seus colegas de profissão. E esse caráter fora da lei começou a ficar mais forte a partir da morte de seu pai, que foi quando “ele se tornou um planejador meticuloso de vandalismos criativos” (MCKEEN, 2008, p. 8).

Entretanto, vale ressaltar que a afirmação anterior de Doug Brinkley, de que a literatura salvou Thompson de uma vida criminosa, é apenas parcialmente correta, pois a literatura não o salvou do crime, já que ele seguiu cometendo pequenos e médios delitos, conforme será abordado posteriormente. Porém, como ressaltou Tyrrel, em depoimento: “Não demorou muito para eu perceber que ir ler na biblioteca não era uma coisa normal para uma gang de garotos fazer” (MCKEEN, 2008, p. 8).

Pode-se dizer, porém, que o mundo dos livros fez com que ele cometesse esses delitos com determinados fins, geralmente no sentido de questionar as normas, e então o jornalismo entra como fator determinante para que ele pudesse passar esses questionamentos para a sociedade.

A utilização da imprensa como um canal para levar adiante as suas ideias e seus questionamentos também inicia cedo, ainda em Louisville. Quando tinha onze anos, Hunter e os amigos começaram um pequeno e precário jornal que chamaram de Southern Star, que era distribuído pela vizinhança. O pequeno experimento chamou a atenção do

principal jornal de Louisville, o Courier-Journal, que pagou de um a três centavos por história, para publicar algumas delas em suas páginas. A primeira publicação foi justamente um texto sobre esportes, uma das paixões que acompanharia o jornalista até o fim de sua vida. “Hunter ganhou a sua primeira assinatura aos onze anos, em uma história destacando as atuações heroicas dele e de seu time de basquete” (MCKEEN, 2008, p. 9).

Ainda na adolescência, Hunter passou a almejar os clubes sociais e literários da cidade: o Castlewood Athletic Club e o Athenaeum Literary Association, que já tinha 125 anos. Como o ingresso nesses clubes ocorria exclusivamente mediante convite, ele fundou um clube próprio alternativo, o Hawks Atheltic Club, e passou a organizar competições esportivas convidando os outros grupos. Pouco depois, ele e alguns amigos finalmente foram convidados a integrar o Atheneum Literary Association.

Um desses amigos, Porter Bibb, relata que eles vestiam terno e gravata para participar das reuniões semanais, que sempre ocorriam aos sábados, e depois que elas acabavam as roupas eram jogadas para o alto e uma grande bebedeira começava. Já Paul Semonin relata que a participação de Thompson nesse clube literário foi fundamental para a formação de sua personalidade literária. No grupo, havia conversas sobre clássicos da literatura e sobre temas como a perda da individualidade, justamente em um momento em que Thompson e seus amigos queriam se tornar mais individualistas, pois essa era uma das premissas do sonho americano.

Em Reino do Medo, Thompson recorda de um texto escrito para a revista do Atheneum, e que ele tentaria republicar anos mais tarde, em The Spector, quando seu amigo Porter Bib era editor, mas que acabou sendo barrado. A matéria tinha como título “Dona de casa da sociedade exposta em escândalo sexual infantil; consequências sangrentas chocam vizinhança do East End” (THOMPSON, 2007, p. 70). O próprio título já apresenta algumas características da prática muckraker, como o sensacionalismo em torno de escândalos que envolvem pessoas da alta sociedade norte-americana.

Foi também na juventude que Thompson leu um dos livros que mais o influenciou: O Grande Gatsby de Fitzgerald, que, conforme depoimento de Porter Bib:

Hunter, Paul Semonin e eu saíamos todos os dias. Nós todos acreditávamos que éramos a encarnação de Fitzgerald. Hunter era tão apaixonado quanto o resto de nós sobre isso. Foi então que ele começou a transcrever os livros de Fitzgerald e Hemingway, palavra por palavra. Eu costumava dizer muito para Hunter quando

criança: “nós não somos Fitzgerald. Por que porra você está digitando The Great

Gatsby? Essa é a coisa mais estúpida que eu já vi”.

“Eu sei, ele dizia. Eu só queria saber a sensação de como é escrever todas essas palavras” (WENNER E SEYMOUR, 2007, p. 23).

O Grande Gatsby, publicado em 1925, de acordo com Allen (1972), é o livro que melhor ilustra a ideia do sonho americano. O romance, conta com um personagem- narrador, Nick, que inicialmente é apenas um observador. Na medida em que a história começa a se desenrolar, Nick passa a participar dos acontecimentos, tornando-se amigo de Gatsby. E quem é Gatsby? Trata-se de um homem que ascendeu na vida economicamente, passando pelo exército americano, por Oxford e por um emprego de funcionário de um milionário. No período em que ele não sabia de onde tirar dinheiro para pagar as próprias contas, Gatsby conhece Daisy, mas a perde, justamente por sua tímida posição social. O curioso é que essa primeira parte, da infância de Gatsby, acontece justamente na cidade