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NOTAS SOBRE O JORNALISMO LITERÁRIO

Antes de partir para a relação entre ficção, jornalismo e parresía, vale a pena fazer algumas breves considerações sobre o que muitos chamam de jornalismo literário. Também vale ressaltar que esse tópico não será aprofundado, pois são diversos os autores que produziram pesquisas extensas sobre esse tema. Portanto, nessa etapa apenas é feita a retomada de alguns pontos de vista e considerações sobre o jornalismo literário e a relação entre jornalismo e literatura, presente no contexto histórico apresentado até aqui. Isso se faz necessário justamente pelo fato de que muitos desses autores incluem o jornalismo gonzo nessa categoria.

Um desses autores é Felipe Pena, que escreveu um livro intitulado justamente Jornalismo Literário. Nele, o autor apresenta diversas reflexões sobre o que ele classifica como um gênero jornalístico. Uma das ideias aplicadas ao jornalismo literário seria, então,

uma alternativa para os jornalistas saírem da lógica comandada pela espetacularização, pelos interesses econômicos e pela busca da audiência. Nesse sentido, o autor define jornalismo literário como:

Significa potencializar os recursos do Jornalismo, ultrapassar os limites dos acontecimentos cotidianos, proporcionar visões amplas da realidade, exercer plenamente a cidadania, romper as correntes burocráticas do lead, evitar os definidores primários e, principalmente, garantir perenidade e profundidade aos relatos (PENA, 2006, p. 13).

Já na contextualização histórica, Pena (2006) apresenta o Gonzo como sendo uma vertente do New Journalism. Para ele: “o Jornalismo Gonzo é uma versão mais radical do New Journalism” (PENA, 2006, p. 56). Essa é uma possível leitura que pode ser feita em relação ao jornalismo gonzo, no entanto, aqui está se apresentando a ideia de que, com o tempo, Hunter S Thompson se distanciou do estilo que ficou conhecido como New Journalism, como fica mais claro nas próximas páginas.

A relação entre jornalismo e literatura, no entanto, é uma questão que está sempre presente na vida dos jornalistas literários. Analisando a lista dos 100 autores clássicos da literatura ocidental elaborada em Guia de Leitura, de Masina (2009), observa-se que a maioria deles teve passagem por redação de jornais. Apenas para se ter uma ideia, levantou-se os seguintes nomes: Albert Camus, Alberto Moravia, Alejo Carpentier, Alexandre Dumas, Almeida Garret, Bram Stoker, Carlos Fuentes, Charles Dickens, Domingo Faustino Sarmiento, Eça de Queiroz, Edgar Allan Poe, Émile Zola, Ernest Hemingway, Ernesto Sabato, Euclides da Cunha, Fiódor Dostoievski, Franz Kafka, Francis Scott Key Fitzgerald, Gabriel Garcia Márquez, Graciliano Ramos, Graham Greene, Guy de Maupassant, Honoré de Balzac, Ítalo Calvino, Jack London, J.D. Salinger, John Steinbeck, Jorge Luis Borges, José de Alencar, José Saramago, Machado de Assis, Marcel Proust, Mario Vargas Llosa, Mark Twain, Miguel Angel Asturias, Raymond Chandler, Rudyard Kipling, além de muitos outros, que não integram tal lista. Em outras palavras, praticamente todos os grandes escritores da literatura ocidental acabaram atuando em algum momento de suas vidas no jornalismo. E alguns deles foram jornalistas literários. “Difícil encontrar um escritor que não seja jornalista, e a história do jornalismo conta com múltiplas participações diretas de escritores, tanto na gênese do meio de comunicação como em seu desenvolvimento” (MONTORO, 1973, p. 44).

No Brasil, o jornalista João Paulo Emílio Coelho Barreto, mais conhecido como João do Rio, publicou uma pesquisa feita com escritores da época que também

trabalhavam em redação. Ela foi publicada como reportagens no jornal Gazeta de Notícias entre 1904 e 1905 e, mais tarde, como livro, com o título de O Momento Literário (1994). A principal pergunta do questionário enviado a escritores da época era justamente: “o jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a arte literária?” (RIO, 1994, p. 9). A partir de então, João do Rio realizou entrevistas, pessoalmente, com os escritores que moravam no Rio de Janeiro e enviou por carta o questionário para escritores de outros estados. Numericamente, 36 dos entrevistados responderam ao questionário, dos quais onze afirmaram que o jornalismo ajuda a atividade literária; dez disseram que prejudica; onze alegaram que ajuda para aqueles que pretendem ingressar no mundo das letras, mas que o jornalismo também pode atrapalhar a sua carreira de escritor; três enviaram as cartas sem conter a resposta para essa pergunta; e um alegou que não se sentia apto a responder.

Um século depois do levantamento feito por João do Rio, a pesquisadora Cristiane Costa repetiu a pesquisa com 32 escritores-jornalistas brasileiros, que começaram a se destacar a partir da década de 1990. Tal pesquisa foi feita entre os anos de 2001 e 2004. Analisando as duas pesquisas, alguns problemas em comum são apontados pela autora, como a falta de retorno financeiro, a falta de tempo que aqueles que trabalham nas redações têm para se dedicar à literatura e a falta de poder aquisitivo da população para comprar livros. Porém, até que se chegue a esse quadro, é necessário considerar que a separação mais clara dos dois gêneros começa a se concretizar a partir dos anos 1920, após a pesquisa de João do Rio, quando a literatura passa a ganhar menor espaço no jornal, estabelecendo a separação da técnica literária e jornalística, que acaba se intensificando na década de 1950, com a adesão ao modelo utilizado pela imprensa americana, que priorizava a objetividade (COSTA, 2005).

Para Juremir Machado da Silva, por exemplo, o jornalismo é uma profissão que não exige tanto a criatividade quanto a literatura:

Na maior parte das vezes, o jornalista é um carteiro, o sujeito que leva a mensagem ao destinatário. Nada mais. É uma profissão não necessariamente criativa. Já a literatura não pode ser profissão, pois só funciona como iluminação, ruptura, invenção. O resto é negócio18.

A discussão é ampla, e conforme apontou Costa (2005), são diversas as dicotomias entre o jornalismo e a literatura, tais como as relações entre arte e mercado, artista e

18

SILVA, Juremir Machado da. Disponível em: http://www.penadealuguel.com.br/entrevistas/ news.asp?cod1=15. Acesso em: 10 de outubro de 2014.

trabalhador, linguagem condicionada e liberdade criativa, perenidade e imediatismo; fato e ficção, objetivo e subjetivo, tempo e dinheiro, local e universal, dentre outros.

Apesar das ligações históricas que podem ser apontadas relacionando o jornalismo e a literatura, diversos teóricos apresentam a diferenciação dos dois gêneros. Um deles é Marcelo Bulhões que, em Jornalismo e Literatura em Convergência (2007), defende que há um certo abismo ontológico que separa o jornalismo da literatura. Enquanto o jornalismo teria como função apurar os acontecimentos, difundir informações da atualidade, captando o movimento da própria vida, visando a isenção e a imparcialidade, a literatura teria uma natureza oposta a do jornalismo, adotando uma linguagem verbal de uma dimensão que não é meio, mas fim. Para Bulhões (2007), na literatura, a linguagem não é figurante, mas sim o centro das atenções. Conforme o autor, na realização literária, o mundo fora da linguagem só importa se o verbal que o transmitir estiver transmudado, recriado, destituído de sua função cotidiana e costumeira. A razão de ser da literatura não é exatamente a comunicação. “Não existe caminho para a literatura que seja um desvio do próprio texto literário” (BULHÕES, 2007, p. 13). Nesse sentido, o autor destaca que a convergência entre jornalismo e literatura é, por natureza, um território de impasses:

O percurso de convergência entre jornal e letras - isto é, entre jornalismo e literatura - é um território de impasses, ajustes e conflitos derivados das configurações assumidas pelas duas expressões segundo as demandas econômicas capitalistas peculiares de cada fase da vida ocidental. Assim, o exame das feições formais assumidas por ambos, suas realizações no campo da linguagem, não estão separadas de tais condições materiais (BULHÕES, 2007, p. 28).

Nesse sentido, o ponto essencial da confluência de gêneros entre jornalismo e literatura é o que se refere à narratividade.

Produzir textos narrativos, ou seja, que contam uma sequência de eventos que se sucedem no tempo, é algo que inclui tanto a vivência literária quanto a jornalística. E a narratividade possui conexão estreita com a temporalidade, o que significa dizer que se contam eventos reveladores da passagem de um estado a outro. Além disso, é bom não perder de vista que a narratividade está intimamente vinculada à necessidade humana de conhecimento e revelação do mundo ou da realidade (BULHÕES, 2007, p. 40).

Já Edvaldo Pereira Lima e Eduardo Belo dão nome a esse ponto em que há a convergência entre o jornalismo e a literatura: livro-reportagem. Assim como Pena (2006), Belo (2006) também apresenta esse formato como uma alternativa ao jornalismo cotidiano. Comparando as condições para publicações brasileiras com a realidade dos Estados

Unidos, ele comenta: “Ainda sem o mesmo potencial e mesmo com as dificuldades inerentes a uma economia restrita e um mercado editorial limitado, esse tem sido um caminho promissor para os profissionais da reportagem” (BELO, 2006, p. 18). Pereira Lima (2004), por sua vez, vai mais longe, e apresenta uma série de classificações para os tipos de livros reportagens, que vai do perfil e do depoimento até os mais complexos como o livro-reportagem ciência e o instantâneo. Esses pontos não são aprofundados aqui, pois, esse não é o objetivo da presente tese. Aliás, tal aprofundamento já foi feito nas referidas obras.

Além do livro-reportagem, outro tipo de texto que fica na fronteira entre os dois gêneros é a crônica. Como define um dos especialistas no assunto, a crônica é: “uma soma do jornalismo e literatura (daí a imagem do narrador-repórter)” (DE SÁ, 1987, p. 5). Aliás, como bem define um dos principais teóricos da Comunicação e do Jornalismo no Brasil, a crônica é um fenômeno tipicamente brasileiro, “não encontrando equivalente na produção jornalística de outros países” (MARQUES DE MELO, 1994, P. 145). Tanto é que, como ressalta Antonio Olinto, nenhum jornal brasileiro abre mão de ter bons cronistas.

Veja-se a crônica, o fenômeno típico do jornalismo brasileiro. De Machado de Assis a Rubem Braga, tem esse gênero sido dos de maior popularidade no Brasil, ao ponto de nenhum jornal se abster de um bom cronista, sob pena de perder leitores (OLINTO, 1968, p. 12).

Por fim, tem-se os autores que consideram o jornalismo literário como um gênero jornalístico. Um desses autores chega a dizer que “nesta gama de gêneros jornalísticos, o Jornalismo Literário se apresenta, com mais frequência, na grande reportagem” (BORGES, 2013, p. 77). Boynton (2005), por sua vez, defende que os jornalistas literários contemporâneos produzam livros-reportagens visando a sua consagração jornalística, e não mais literária, como ocorria com os jornalistas escritores dos anos 1960 e 1970. Sinteticamente, são diversos os autores que problematizam a questão. Assim, esse trecho da pesquisa teve como objetivo contextualizar de maneira geral essas discussões e se posicionar de acordo com a visão na qual considero ser a mais apropriada para se pensar o jornalismo gonzo. Não se está dizendo aqui que uma ou outra maneira é a certa ou a errada de analisar e interpretar o tema, ou de que a visão do autor X é melhor ou pior do que a do autor Y (isso poderia ser feito, parresiasticamente, mas em outro estudo específico sobre a temática). No entanto, para uma pesquisa sobre jornalismo gonzo, parto do princípio

apontado por Cosson (2001), de que o romance-reportagem é um gênero à parte. Acredito que tal análise pode ser aplicada aos textos de Hunter Thompson. Aliás, a justificativa sobre o seu estudo sobre o romance-reportagem define os mesmos dilemas enfrentados por quem pesquisa jornalismo gonzo:

Por um lado, não é jornalismo, uma vez que é romance; por outro, não é literatura, uma vez que é reportagem. O saldo de tal ambiguidade é o fato de as narrativas assim denominadas terminar por ser lidas não no que elas são (romance-reportagem), mas naquilo que não conseguiram ser (romance ou reportagem) (COSSON, 2001, p. 9).

Essa é exatamente a mesma confusão que ocorre com teóricos do jornalismo e da literatura em relação ao jornalismo gonzo. Teóricos do jornalismo acusam, com dedo em riste, de que os textos de Thompson são ficção, logo, não são textos jornalísticos. Já os teóricos da literatura se levantam para declarar, seriamente, que o jornalismo gonzo não é literatura, afinal, são reportagens feitas sobre eventos para revistas e jornais! Ora, ambos estão certos, pois o jornalismo gonzo não é nem jornalismo puro, nem literatura pura. É jornalismo gonzo: que se vale de elementos de um e de outro gênero. No entanto, antes de mergulhar no mundo gonzo de Hunter Thompson, vale a pena se fazer mais algumas reflexões sobre essa hibridez que envolve jornalismo, literatura, ficção e o dizer a verdade.

8 JORNALISTA PARRESIASTA: UM DOM QUIXOTE DA IMPRENSA?

“Numa aldeia da Mancha, de cujo nome não quero me lembrar, não faz muito tempo vivia um fidalgo desses de lança no cabide, adarga antiga, pangaré magro e galgo corredor” (CERVANTES, 2012a, p. 61). Com essa apresentação, Miguel de Cervantes começa o primeiro volume do clássico Dom Quixote19. Nele, é narrada a vida e as aventuras de Alonso Quixano, um fidalgo que “nos momentos em que estava ocioso – que constituíam a maior parte do ano –, deu para ler livros de cavalaria” (p. 62). Tal paixão pelos livros fez com que ele, aos poucos, fosse criando um mundo próprio, vindo a fazer coisas consideradas insanas, como vender os seus bens e pedaços de terra de plantio para comprar mais obras sobre cavalaria. Ou, como está exposto na narrativa: “Enfim, ele se embrenhou tanto na leitura que passava as noites lendo até clarear e os dias até escurecer; e assim, por dormir pouco e ler muito, secou-lhe o cérebro de maneira que veio a perder o juízo” (p. 63).

Mergulhado no mundo da literatura de cavalaria, Alonso Quixano passou a querer ter uma vida identica a dos heróis dos livros: limpou uma armadura velha que havia sido dos seus bisavós, arrumou o seu pangaré e, depois de oito dias pensando, resolveu chamá- lo de Rocinante, e, então, após mais oito dias refletindo, finalmente encontrou um novo nome para si mesmo: dom Quixote. Assim, o personagem construiu um cenário em que ele era um cavaleiro andante, com uma donzela que lhe esperava, um escudeiro e muito trabalho pela frente: fazer justiça pelo mundo. Aliás, a escolha da donzela começa a refletir a nova vida adotada por Quixote:

É que havia numa aldeia perto da sua, pelo que se pensa, uma camponesa de muito boa aparência por quem ele andou apaixonado um tempo, embora se acredite que ela jamais tenha sabido disso nem o tenha deixado provar de sua formosura. Chamava-se Aldonza Lorenzo, e ele achou bom lhe dar o título de senhora de seus pensamentos; e, procurando um nome que não destoasse muito do seu e insinuasse ou parecesse nome de princesa e grande senhora, veio a chamá-la “Dulcineia del Toboso”, porque era natural de El Toboso: nome, em sua opinião, musical e raro e significativo, como todos os demais que ele tinha posto em si e em suas coisas (CERVANTES, 2012a, p. 66).

Depois de ter em mãos a sua armadura, o seu pangaré Rocinante e a musa dos seus sonhos, ainda faltava encontrar um escudeiro. E foi então que dom Quixote foi atrás de Sancho Pança, seu vizinho, camponês, “mas de miolo mole” (CERVANTES, 2012, p.

19 O livro Dom Quixote é dividido em dois volumes. O primeiro, que inicialmente se chamava O Engenhoso

Fidalgo Dom Quixote de la Mancha foi publicado em 1605. Já o segundo, lançado com o título de Segunda Parte Do Engenhoso Cavaleiro Dom Quixote de La Mancha, foi publicado em 1615.

106). Prometendo muitas aventuras, e uma ilha para que Sancho governasse após concluir o trabalho de justiceiro, o pobre camponês deixou a sua mulher e filhos para ser o escudeiro do vizinho. Como não tinha um cavalo, Sancho levou consigo um jumento, e então Quixote, que nunca tinha lido sobre nenhum cavaleiro ou escudeiro que tivesse como meio de transporte um burro, prometeu arranjar coisa melhor assim que tivesse oportunidade, talvez, “tirando o cavalo do primeiro cavaleiro descortês com quem topasse” (CERVANTES, 2012a, p. 107).

A partir desse cenário, Dom Quixote e Sancho Pança criam um mundo que é verdadeiro apenas em suas cabeças. Eles acreditam nas verdades absolutas, mas também em outras mentiras, parafraseando o título da obra de Dandão (2005) que, inclusive, serviu de inspiração para o título da presente tese. No entanto, o que torna esse mundo real para os personagens do livro de Cervantes é a crença que eles tem nos princípios da cavalaria e na forma de vida que eles devem levar. Assim, os dois criam lentes próprias que lhes dão uma maneira singular de enxergar o mundo. Acreditando e vivendo os seus ideais, eles acabam produzindo algo que poderia ser pensado como uma caricatura de parresía. Em uma das cenas mais famosas da obra, que é justamente a primeira grande aventura da dupla Dom Quixote e Sancho Pança, o cavaleiro da Triste Figura, como ele mesmo se denomina, avista cerca de 30 moinhos de vento. Ao ouvir o seu amo dizer que são gigantes, Sancho responde: “Olhe você mercê – respondeu Sancho –, aqueles que estão ali não são gigantes, mas moinhos de vento, e o que neles parecem braços são as pás, que, rodadas pelo vento, fazem trabalhar a mós” (CERVANTES, 2012a, P. 109). No entanto, o escudeiro leva um puchão de orelha do seu amo, que lhe chama de inexperiente em aventuras. Ao dar o primeiro golpe no moinho, e se ferir com a pancada, ele assume que bateu em um moinho de vento, e não em um monstro. No entanto, ele alega que os monstros haviam sido transformados em moinhos por um mago que seria seu inimigo.

Como cavaleiro, dom Quixote buscava aquilo que os parresiastas gregos e os jornalistas parresiastas buscam: a justiça e a verdade, mesmo que isso implique em danos pessoais. Com tal personalidade, Quixote, ao ver 12 prisioneiros sendo levados por guardas, tomou a liberdade de entrevistar cada um deles para saber se as prisões eram justas ou não. Ouvindo da boca dos presos ou dos guardas que alguns estavam ali por cantar ou por comércio clandestino, o cavaleiro considerou injusta as penas e, assim, travou uma de suas maiores batalhas, assumindo risco de perder a vida e a liberdade ao enfrentar os policias do reino.

E, falando e fazendo, sem lhe dar tempo de se defender, investiu contra ele tão rápido que o mandou ao chão, gravemente ferido pela lança; e por sorte era o que trazia a espingarda. Os outros ficaram pasmos e suspensos com o acontecimento inesperado, mas, recuperando-se, os guardas a cavalo empunharam as espadas e os que estavam a pé os dardos, avançando contra dom Quixote, que com toda a calma os aguardava e sem dúvida teria passado o diabo, se os galeotes, vendo a oportunidade que lhes era oferecida de alcançar a liberdade, não a tivessem aproveitado, procurando romper a corrente que os prendia. Foi tamanha a confusão que os guardas não fizeram nada de muito proveito, ou porque corriam para os condenados que se soltavam ou porque lutavam com dom Quixote (CERVANTES, 2012a, p. 261).

Diante da confusão, Sancho soltou os prisioneiros que colocaram os guardas para correr. Após a batalha, dom Quixote exigiu que queria como pagamento pelo seu serviço que os 12 prisioneiros fossem até El Toboso para contar sobre os seus feitos para a amada Dulcineia, ao que os prisioneiros deram risada alegando que seria muita burrice os 12 andarem juntos para um lugar onde certamente seriam presos novamente. Tal resposta causou a fúria de dom Quixote: “Pois garanto que ireis – disse dom Quixote, tomado de raiva –, sozinho e com o rabo entre as pernas, com a corrente toda nas costas, dom filho da puta, ou dom Ginesillo de Paropillo, ou seja lá como for!” (CERVANTES, 2012a, p. 263). Então, os presos passarama atirar pedras em dom Quixote e em Sancho Pança, que ficaram feridos, reclamando da ingratidão daqueles que se beneficiaram da sua justiça.

No entanto, não apenas dom Quixote estava submerso em sua loucura. Sancho Pança, que havia visto a camponesa que era chamada de Dulcineia del Toboso, entrou no mundo imaginário de seu amo e a tudo se submeteu. Tanto é que, ao dizer para dom Quixote que Dulcineia não chegava aos pés de Doroteia, personagem que eles conheceram durante as suas andaças e que disse-lhes ser uma princesa de verdade. Tal afirmação causou a fúria de dom Quixote, que partiu para cima de seu escudeiro, vociferando:

- Pensais, bronco desgraçado – disse-lhe depois de um instante -, que podeis fazer e acontecer em minhas barbas e tudo será erro vosso e perdão meu? Pois vos enganais, velhaco excomungado; em dúvida fostes excomungado, porque difamastes a sem-par Dulcineia. Não sabeis, camponês grosseirão, biltre miserável, que se não fosse pela coragem que ela infunde a meu braço eu não teria força para matar uma bolga? Dizei-me, patife linguarudo, quem pensais que