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Como foi visto, a parresía não é a única maneira de dizer a verdade. Conforme Foucault (2010a), há também a sabedoria, com o isolamento do sábio; o ensino, com a relação entre mestre e aluno; e a técnica, na qual a ficção é uma das possibilidades. E, como já foi visto, a parresía, que chegou a ser considerada uma técnica, pode também se valer de técnicas no seu modo dizer a verdade. Dessa maneira lanço a seguinte proposta de

interpretação sobre o dizer a verdade da ficção de Dom Quixote. Ou seja, é uma breve consideração da ficção existente dentro da ficção.

Partindo do princípio de que Dom Quixote criou um personagem para expor os seus pensamentos sobre o mundo – a sua incoformidade com as injustiças, o seu desejo de se apaixonar a qualquere preço, a sua sede por aventuras – e que, em seu leito de morte ele, para ser levado a sério, interpretou o Alonso que todos imaginavam ser o Dom Quixote com sanidade mental, enfim, considerando tudo isso pode-se entender que Alonso criou um personagem ficcional para interpretar na vida real. E o fato de o autor assumir a vida do próprio personagem torna a crença nas suas ideias menos verdadeiras do que se ele estivesse as defendendo como Alonso? Creio que não.

Antes de mais nada, para não haver uma distância demasiada grande entre as reflexões dessa etapa da pesquisa com o objeto de estudo (a relação entre jornalismo parresiastico e o jornalismo gonzo), é necessário fazer algumas relações entre o que foi visto, o que está sendo refletido agora e a obra de Hunter Thompson.

Como foi ressaltado nos capítulos anteriores, a parresía não faz parte de formas discursivas. Ela pode ser praticada independente de pertencer a opiniões, juízos, aforismos, lições ou réplicas, e pode ser manifestada em discurso oral ou escrito – e, ainda, por que não, com imagens e outras representações simbólicas? No entanto, para a presente análise, a de um jornalismo parresíastico tendo como objeto o jornalismo gonzo de Hunter Thompson, cabe pensar no tripé que vai compor a obra do jornalista norte-americano: parresía, jornalismo e ficção. Então entra-se na seguinte questão: é possível dizer a verdade, fazer uso da fala franca, em um espaço público, assumindo riscos, através da ficção?

Inicialmente, vale voltar novamente a Dom Quixote. Como ressaltou o escritor argentino Jorge Luis Borges em conversa com o seu compatriota, o também escritor Ernesto Sabato: a “literatura não é menos real do que aquilo que se chama realidade” (BARONE, 2005,p. 53). Sabato por sua vez, faz a seguinte análise da obra escrita por Cervantes: “Para mim, se Quixote é uma obra genial, uma das duas ou três obras mais geniais que jamais se produziu, é porque Cervantes disse o que tinha que dizer e na forma que tinha que dizê-lo” (BARONE, 2005, p. 60). Ou seja, para os dois escritores, a obra, mesmo sendo uma ficção com o personagem principal sendo o que Borges vai chamar de “ridículo e, ao mesmo tempo, venerável e querido” (BARONE, 2005, p. 59), é uma forma do autor dizer a sua verdade, bem como Dom Quixote acreditava numa verdade pessoal, que não era a mesma verdade dos outros.

Porém, como há diversos estudos que analisam profundamente a relação entre autor e narrativa em Dom Quixote, aqui a abordagem ocorre no sentido de contextualizar e de exemplificar uma forma sobre como é possível dizer a verdade (a verdade na qual se acredita) através da ficção e de metáforas. Por sinal, vale ressaltar que a metáfora é um dos pilares da ficção, inclusive quando ela visa dizer a verdade: “Há portanto na ficção o apelo à imaginação, o deslocamento da realidade objetiva para a realidade subjetiva, afetiva e significativa – deslocamento esse só possível pela ambiguidade do texto e pelo uso da metáfora” (COSTA, 2002, p. 24). Aliás, muitas vezes a verdade chamada de subjetiva pode ser mais verdadeira do que a objetiva, pois, fatos concretos podem ser utilizados para transformar mentiras abismais em realidade, como por exemplo, quando um político usa dados reais e acontecimentos públicos para ilustrar um ponto de vista que só é seu na teoria. É a verdade dos fatos servindo de base para a mentira das crenças, das opiniões e das ideias.

Outras vezes, no entanto, o dizer a verdade vai estar justamente no seu não-dizer, ou seja, no silêncio. É o que propõe um dos teóricos sobre a relação entre ficção e jornalismo: “O jornalismo encontra-se com a literatura quando toma consciência da carne e do silêncio das palavras” (MACHADO DA SILVA, 2002, p. 47). O jornalista que escreve o bom texto, conforme o autor, é aquele que sabe omitir por seleção. “Somente o domínio profundo do texto permite o exercício da comunicação pelas entrelinhas” (MACHADO DA SILVA, 2002, p. 47). Dessa maneira, o texto jornalístico e a narrativa da grande reportagem tem justamente como uma de suas principais técnicas algo que caracteriza a literatura ficcional: a verossimilhança. “O jornalismo, como construção de texto, precisa falar do verdadeiro, sem falsidade, mas com verossimilhança” (MACHADO DA SILVA, 2002, p. 47). Além disso, conforme aponta o mesmo autor, o jornalista acaba não informando tudo o que gostaria justamente pelo excesso de informação e pela falta de silêncio, da falta de verossimilhança, enfim, de falar pelas entrelinhas e pelas metáforas.

Uma metametáfora, aliás, também pode ficar na fronteira entre ficção e realidade. Um exemplo é o livro Casados com Paris, da escritora norte-americana Paula McLain. Ela não se limitou a escrever uma biografia ou um texto histórico para relatar objetivamente como os recém-casados Ernest Hemingway e Hadley Richardson viveram na Paris dos anos 1920. Ao invés de escrever um texto, que poderia até ser uma grande reportagem, apresentando depoimentos, entrevistas e pesquisa documental, ela escreveu um romance em primeira pessoa na voz da primeira esposa do famoso escritor e jornalista americano. Apesar disso, ela manteve os nomes reais de todos os personagens, como amigos e

parentes, e também baseou a sua narrativa em acontecimentos reais, mas de forma totalmente romanceada, ou seja, valendo-se da verossimilhança e da criatividade. Os detalhes dos acontecimentos e as opiniões da personagem dão um tom extremamente realista à obra: “Enquanto isso, Ernest partilhava com Gertrude um copo de alguma bebida lindamente colorida. Achei que fiquei meio apaixonada por ela naquele dia, à distância, e Ernest também” (MCLAIN, 2015, p. 97). São ciúmes, paixões, raivas, alegrias e tristezas de uma personagem real jogada para a ficção e pela ficção. É o dizer a verdade inventando fatos.

Nesse ponto é necessário voltar a conceitualização da parresía e lembrar que ela tem muito mais um sentido de efeito do que uma forma discursiva. Voltando novamente a Grécia Antiga, Foucault (2010b) faz essa relação quando aborda a forma como Platão diz a verdade a Dionísio que, mesmo sem acusar o príncipe diretamente de ser injusto, proferiu um discurso que causou a ira do tirano que ordenou a venda de Platão como escravo:

A parresía deve ser procurada do lado do efeito que seu próprio dizer-a-verdade pode produzir no locutor, do efeito de retorno que o dizer-a-verdade pode produzir no locutor a partir do efeito que ele produz no interlocutor. Em outras palavras, dizer a verdade na presença de Dionísio, o tirano que fica furioso, é abrir para quem diz a verdade um certo espaço de risco, é abrir um perigo, é abrir um perigo em que a própria existência do locutor vai estar em jogo, e é isso que constitui a parresía (FOUCAULT, 2010b, p. 55).

Chega-se à seguinte questão: essa verdade pode ser dita, tanto para um tirano, quanto para um grande público, na forma de ficção? Ora, na própria imprensa brasileira há inúmeros casos, que não serão aprofundados aqui, mas que também seriam boas análises para uma extensão da noção de jornalismo parresiasta. Esses exemplos mostram que sim, é possível fazer uso da ficção para dizer a verdade contra tiranos assumindo riscos. Isso aconteceu, por exemplo, no períoda da ditadura militar brasileira, entre 1964 e 1988, como bem mostra Jorge (2008) em seu livro Cale a Boca, Jornalista. Um dos jornalistas brasileiros que fez uso da parresía jornalística, e que acabou sofrendo por isso, foi Dimas Perrim. Dentre outros trabalhos, ele escreveu um livro-reportagem sobre a Inconfiência Mineira. Além disso, ele se posicionou contrário ao Acordo Militar Brasil-Estados Unidos, sendo, juntamente com muios outros escritores e jornalistas, considerado subversivo. Com isso, em 1974, Perrim foi preso e torturado. Mesmo sobrevivendo, posteriormente ele revelou o que aconteceu na prisão: “A brutalidade e o sadismo com que me tratavam não me permitia alimentar a mais leve esperança de sair com vida daquele lugar terrível” (JORGE, 2008, p. 211). Além das surras, os militares ameaçaram que se o jornalista não

dissesse nada, eles iriam prender a sua mulher e genro. Além disso, ele levou mais socos, choques elétricos – incluindo descargas fortes nos órgãos genitais –, e o golpe chamado telefone, que eram pancadas nos ouvidos que o fizeram desmaiar. Diante da ameaça contra a família, o jornalista tentou o suicídio, mas não conseguiu. Esse é apenas um exemplo do que representava assumir um discurso parresiastico no Brasil dos anos 1960, 70 e 80, bem como o mesmo aconteceu em outros países, e nem sempre tendo o Estado como inimigo. Na Colômbia dos anos 1980 e 90, por exemplo, o dizer a verdade implicava na fúria dos narcotraficantes – bem como acontece no Brasil e no México contemporâneos. Em relação ao caso colombiano, um estudo a parte tendo como base teórica a parresía jornalística pode ser feito sobre a relação entre os textos do jornal El Espectador e o narcotraficante Pablo Ecobar. O dizer a verdade do jornal, principalmente nos anos 1980, resultou na morte de diretores, jornalistas, funcionários e até ataques a bomba contra o prédio da empresa jornalística. Esses exemplos deixam claro como há diversas possiblidades de jornalismo parresiastico além do jornalismo literário e do jornalismo gonzo, que é o foco principal da presente tese.

Dessa maneira, já é possível antecipar que não está sendo defendido aqui um ineditismo ou a invenção da prática do jornalismo parresiástico como sendo exclusiva do jornalismo gonzo, mas sim, a existência de um jornalismo parresiástico que pode ser pensado tendo como objeto diversos tipos e gêneros do jornalismo – bem como outras práticas jornalísticas, principalmente aquelas realizadas em períodos de ditadura. No entanto, aqui esses exemplos não serão aprofundados, pois não é esse o objetivo principal da presente tese. Já para verificar se realmente há a parresía em cada um dos casos citados acima, seria preciso verificar se há a ligação entre o que fizeram os jornalistas e as suas formas de vida. Afinal, a parresía fica situada “no que liga o locutor ao fato de que o que ele diz é a verdade, e às consequências que decorrem do fato de que ele disse ser a verdade” (FOUCAULT, 2010b, p. 56).

Feitas essas considerações, vale ressaltar ainda que o dizer a verdade, mesmo que se valendo de metáforas ou de criação literária (afinal, é possível se dizer a verdade através de um poema) vai se caracterízar como uma ação parresiastica, não pela forma como está sendo dito, mas sim, por dizer a verdade e colocar o seu emissor em situação de risco – como acontecia diversas vezes com o personagem Dom Quixote nas suas aventuras: o dizer a verdade contra soldados, contra grupos que estavam com muito mais armamento e em maior número, etc.

Os parresiastas são os que, no limite, aceitam morrer por ter dito a verdade. Ou, mais exatamente, os parresiastas são os que empreendem dizer a verdade a um preço não determinado, que pode ir até a sua própria morte. Pois bem, está aí, me parece, o nó do que é a parresía (FOUCAULT, 2010b, p. 56).

Um exemplo disso são os já mencionados cínicos da Grécia Antiga. Segundo Foucault (2011), a maioria dos relatos registrados dos cínicos estão contados com pequenas histórias e anedotas. No entanto, ele ressalta que “o heroísmo filosófico, a vida filosófica como vida heroica, é algo que foi inscrito e transmitido por essa tradição cínica” (FOUAULT, 2011, p. 186).

Foucault (2010b) também ressalta que no cinismo há uma relação forte entre o dizer-a-verdade filosófico e a prática política. Um dos principais filósofos desse grupo foi Diogénes, que ficou conhecido justamente como Diogénes, O Cínico, por dar sempre respostas ácidas, muitas vezes se valendo de metáforas, para os superiores. Foucault conta uma das cenas em que Diógenes coloca em risco a sua vida para fazer uso da fala franca:

Diógenes, feito prisioneiro por Filipe depois da batalha de Queroneia, se encontra diante do monarca, do soberano [macedônio]. E o soberano

[macedônio] diz a ele: quem és tu? E Diógenes responde: “Sou o espião da tua avidez”. Ou ainda o famoso diálogo desse mesmo Diógenes com o filho de Filipe, Alexandre. Mesma pergunta também: “quem és tu?” Mas dessa vez é

Diógenes que faz a pergunta a Alexandre. E Alexandre responde: sou o grande rei Alexandre. E nesse momento Diógenes responde: eu vou te dizer quem eu sou, sou Diógenes, o cão (FOUCAULT, 2010b, p. 210).

Em ambos os casos, a fala franca não é um dizer-a-verdade objetivo, não é simplesmente falar o que aconteceu. Diógenes não falou o seu nome completo, mas sim, fez um jogo de palavras para dizer o que estava pensando – no caso de Alexandre, que ele pouco se lixava para o título de “O grande”. Mas ele não disse “estou pouco me lixando para o seu título” e, sim, ele fez uso de um jogo de linguagem, falando pelas entrelinhas, cheio de humor, para se auto-entitular de “cão”, mesmo correndo o risco de o imperador interpretar isso como uma ofensa – o que poderia ter lhe causado a condenação à morte. No entanto, ao chamar a si mesmo de cão, usando a palavra num sentido figurado, Diógenes disse a verdade, pois os cínicos tentavam levar uma vida que fosse semelhante a de um cão no sentido de não se ter pudor, nem vergonha nem respeito hierárquico. “É uma vida que faz em público e aos olhos de todos o que somente os cães e os animais ousam fazer, enquanto os homens geralmente escondem” (FOUCAULT, 2011, p. 213). Ou seja, ele se auto-entitulou um cão por levar uma vida impudica, indiferente e, acima de tudo, uma vida em que se late aos outros da mesma forma que um cão late para outro cão que

está passando, isto é, “uma vida capaz de brigar, de latir contra os inimigos, que sabe distinguir os bons dos maus, os verdadeiros dos falsos, os amos dos inimigos” (FOUCAULT, 2011, p. 213). E, assim como um cão de rua, o cínico está em todos os lugares: “O cínico vive na rua, mora na porta dos templos. Ele come, satisfaz suas necessidades e seus desejos em público. Vai a todas as grandes aglomerações de gente. É visto nos jogos, nos teatros. Dá a todos testemunho de sua vida” (FOUCAULT, 2011, p. 223).

Mesmo a resposta sendo curta, em uma frase, Diógenes utiliza uma linguagem literária para fazer uso da fala franca sem falar a verdade nua e crua. Essa é, portanto, a parresía filosófica: “A parresía filosófica de Diógenes consiste essencialmente em se mostrar em sua nudez natural, fora de todas as convenções e fora de todas as leis artificialmentes impostas pela cidade” (FOUCAULT, 2010b, p. 261), ou seja, a parresía de Diógenes, em ambas as respostas, está justamente no seu modo de vida, vindo a se manifestar nesse discurso agressivo e cínico.

Essa postura cínica, aliás, que perpassou os séculos, vindo a aparecer no que Nietzsche vai chamar de senso da verdade no artista. Assim como o cínico não quer se submeter às verdades dos demais, o artista também não pretende se enquadrar às formas de vida impostas pelos outros. Nesse sentido, o filósofo aponta a dicotomia entre as verdades dos artistas e a dos cientistas:

No que toca ao conhecimento das verdades, o artista tem uma moralidade mais fraca do que o pensador; ele não quer absolutamente ser privado das brilhantes e significativas interpretações da vida, e se guarda contra métodos e resultados óbvios e simples. Aparentemente luta pela superior dignidade e importância do ser humano; na verdade, não deseja abrir mão dos pressupostos mais eficazes para a sua arte, ou seja, o fantástico, o mítico, incerto, extremo, o sentido para o simbólico, a superestimação da pessoa, a crença em algo miraculoso do gênio: considera o prosseguimento de seu modo de criar mais importante que a devoção científica à verdade em qualquer forma, por mais simplesmente que ela se manifeste (NIETZSCHE, 2005, p. 107-108)

A crítica de Nietzsche, no entanto, pode ser aplicada justamente às falsas parresías: aquela em que o escritor, o artista, o filósofo ou o jornalista assumem posições idealistas fanáticas, que o cegam e o atrapalham no seu processo da busca pela própria verdade. É o caso, por exemplo, dos já citados muckrakers-políticos que, muitas vezes, ao assumirem posições políticas, compremetiam o que eles realmente pensavam para se manterem coerentes aos interesses partidários. São os já mencionados adversários da parresía.

Era na tentativa de não comprometer a própria liberdade para dizer a verdade, que os cínicos ficavam posicionados a parte da sociedade. No entanto, isso não quer dizer que eles não se comunicavam com a sociedade, até porque uma das características dos cínicos era o fato de eles serem os homens das ruas e os homens da opinião na Grécia Antiga. E, conforme ressalta o filósofo francês: “os cínicos ainda são homens da cidade que perpetuarão até o Império Romano essas tradições da cidade, da praça pública, etc” (FOUCAULT, 2010b, p. 265).

Assim, em diversos casos os cínicos optam por dizer a verdade de maneira indireta, ou metafórica, ao invés emitir um falso dizer-a-verdade que simplesmente se adapte ao status quo. Conforme Foucault (2010b), o falso dizer a verdade ocorre, principalmente, quando há ameaças abertas contra aquele que tem a palavra, como ocorria na Grécia Antiga com as ameaças de pena de morte e de exílio. Nesses casos há três possibilidades: 1) o sujeito se cala; 2) o sujeito diz a verdade por metáforas, alusões, ficção, etc; ou 3) o sujeito opta pelo discurso da falsa-verdade através da retórica. No terceiro caso o sujeito tenta passar a impressão de que está dizendo a verdade, mas na verdade não está: ele adapta o seu discurso para se livrar da punição. Ou, como compara Foucault (2010b): é como se fosse uma moeda falsa, praticamente idêntica a verdadeira, mas diferente no seu cérne.

Foi assim que os cínicos atuavam no sentido de se opor às diferentes regras de conduta e dos valores culturais e sociais que imperavam e, dessa forma, criou-se uma arte e uma literatura completamente cínicas. “A sátira, a comédia foram frequentemente atravessadas por esses temas cínicos e, melhor ainda, elas até certo ponto constituíram um lugar privilegiado de expressão para os temas cínicos” (FOUCAULT, 2011, p. 163). Inclusive, “na Europa medieval e cristã, haveria sem dúvida a considerar todo um aspecto da literatura como sendo uma espécie de arte cínica” (FOUCAULT, 2011, p. 163). E, através dessa literatura e das manifestações artísticas que os cínicos, podendo se valer da ficção e da poesia, criavam a sua própria parresía. Foucault (2011) aponta que a arte do mundo moderno, bem como a literatura, tem até hoje o seu vínculo com o cinismo.

É a ideia de que a própria arte, quer se trate da literatura, da pintura ou da música, deve estabelecer com o real uma relação que não é mais da ordem da ornamentação, da ordem da intimação, mas que é da ordem do desnudamento, do desmascaramento, da decapagem, da escavação, da redução violenta ao elementar da existência. Essa prática da arte como desnudamento e redução ao elementar da existência é algo que se assinala de uma maneira cada vez mais sensível a partir sem dúvida de meados do século XIX (FOUCAULT, 2011, p. 164-165).

E então, a partir da influência cínica, há na arte moderna o que Foucault (2011, p. 165) chama de “anti-platonismo”, ou seja, a arte, a música, a literatura, pensando no mundo e na vida não como um ideal, mas como algo nu, “como lugar de irrupção do elementar, desnudamento da experiência”. E isso implica justamente numa ação de parresía em que há uma recusa, mas também há uma agressão. E eis que, nesse ponto, nota-se toda a influênica cínica que aparece na literatura e no jornalismo que, como será visto mais adiante, vai influenciar Hunter Thompson até o surgimento do jornalismo gonzo:

A arte moderna, antiplatônica e antiaristotélica: redução, desnudamento do elementar da existência; recusa, rejeição perpétua de toda forma já adquirida. [...] E se não é simplesmente na arte, é na arte principalmente que se concentram, no