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As casas como fundadoras da escritura

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 95-99)

5. UMA MEMÓRIA HÍBRIDA

5.5 As casas como fundadoras da escritura

Toda autobiografia consiste numa narração histórica e esta, em particular, tem

como cenário os espaços “próprios” do personagem, são casas, muitas das quais, não mais existem no momento da escritura. Esses desaparecimentos ou mudanças de funções dos edifícios acontecem ao mesmo tempo em que as mudanças de costumes, ocorridos entre o início do século XX e os anos 50, são relatados pela autora.

Na qualidade de testemunha, Ocampo mostra as diferenças e o contraste

existentes entre o passado de Buenos Aires e seu presente, sobre os quais ela emite juízos críticos de caráter ambíguo com os quais os julga. A autora valoriza sua escritura como testemunha do desaparecido, seus textos têm um valor de antiguidade e são apreciados porque narram o insólito, o passado esquecido por falta de manifestações visíveis.

Podemos mesmo afirmar que Ocampo lê seus textos dando-lhes um valor

arqueológico porque contém linguagens que já estão caducas. Com essa interpretação, ela lhes outorga uma única função que é a de preservar esse passado, de ser uma narração costumbrista. Reforça, igualmente, a idéia de um passado remoto de uma origem que ela mesma funda, dando-se a conhecer ao leitor como fundadora.

Michel Foucault explica em seu livro L’ordre du discours:

Le sujet fondateur, en effet, est chargé d’animer directement de ses visés les formes vides de la langue; c’est lui qui, traversant l’épaisseur ou l’inertie des choses vides, ressaisit, dans l’intuition, le sens qui s’y trouve dépensé; c’est lui également qui, par-delà le temps, fonde des horizons de signfications [...] où les propositions, les sciences, les ensembles déductifs trouveront en fin de compte leur fondement.30

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Michel Foucault. La mémoire collective. PUF. Paris. Pg. 79

Ocampo quer possuir a linguagem e, como fundadora, encontrá-la nas casas em

que morou, penetrá-la e descobrir seu sentido; esta é a missão que se dá para firmar sua autoridade. Do mesmo modo, o desejo de entrar nas casas desaparecidas demonstra a busca de uma essência, mas só encontra arquivos contendo verdades relativas.

O desejo de encontrar uma verdade e de encerrá-la trai, sempre, junto a ele, o

perigo de constituir uma linguagem que elimina outras e que, por isso mesmo, torna-se patriarcal e excludente; nesse caso, a autora seria a detentora da lei que reprime o outro, e sua casa, o lugar da coerência e da regra. Ela quer fazer valer seus direitos de autora.

Essa atitude impõe a vontade da autora, mas, também denota temor a críticas

futuras. A pretendida segurança de Ocampo mostra, com efeito, sua insegurança e seus textos, longe de assumir a superioridade e exercer a tirania de uma linguagem cerrada, apresentam a ambigüidade do discurso patriarcal.

Ainda que as referências às casas, no texto autobiográfico, apareçam espaçadas,

de acordo com a época à qual corresponde a narração, elas aparecem, cronologicamente situadas, e podemos observar as datas em que Ocampo as habita. Essa ordem rigorosa dá a ilusão de um ciclo evolutivo completo, um destino fechado que a leva desde a falta de linguagem própria até sua obtenção.

A escritura da autobiografia pretende traduzir com exatidão o eu que lhe dá origem, seguir sua evolução e concluir com a visão do personagem na plenitude de sua carreira de escritora. Mas se a casa figura como sentido seguro, único, a fuga dela pode ser lida como uma busca de seu contrário, ou seja, ruptura e ambigüidade.

A casa dá ao discurso um corpo fixo e determinado, uma identidade que em sua

distribuição classifica e organiza as diversas linguagens; pátio dos fundos, local dos empregados, etc. Ocampo busca, evidentemente, o lugar que lhe dará autoridade, entretanto, o texto a desmente abrindo-se a outras leituras. A metáfora tendente a reduzir e a identificar vê-se, assim, em contraposição, cerrando-se, e fazendo com que a construção do eu escrito deixe de ser um espaço morto, submetido a uma única interpretação, para abrir-se num labirinto de múltiplas possibilidades. A interpretação que a narradora oferece de seus escritos como fundação, seja de uma leitura feminista, seja de uma leitura de costumes, fica, desse modo, diversificada.

Esse texto dá origem a uma multiplicidade de ambigüidades: por um lado, ele

quer estabelecer e fixar a origem de uma linguagem própria inscrevendo-se numa longa cadeia histórica cujos membros fundam códigos e linguagens; por outro, mostra uma luta suprema com uma linguagem única e própria que, em seu intento de fundar, jamais

a domina. Ocampo nunca consegue localizar-se nela, por isso a mobilidade dessas casas que, querendo prendê-la numa construção severa, jamais logram seu intento.

Escrever sobre essas casas, metáforas da linguagem, equivale a construir uma

linguagem sobre a linguagem, edificação móvel, deslizante, cujo resultado é um texto que transforma a unidade em metáfora. Tantas mudanças e saídas criam cortes, rupturas que o texto trata de ligar.

O significado que Ocampo pretende des-velar e re-velar na Autobiografia é seu

próprio eu. Mas esse eu, supostamente pré-existente ao texto, consiste numa construção – como as casas – num estilo, numa linguagem. A metáfora da casa encontra apoio na analogia que estabelece a casa como linguagem, relacionando ambos os termos, para traduzir com fidelidade aquele que os produz. A construção a que chega, equivalente e contraditória, escapa à fixação dos termos em oposição: verdade/falsidade, interior/exterior, privacidade/publicidade que se confundem e se superpõem. O projeto dessa escritura, des-velar o eu, não é mais do que outra metáfora; o sujeito se re-vela constituído pelas mesmas camadas que pretende levantar. O eu provém da adoção de múltiplos significantes que o manifestam e constituem, sendo a escritura um único entre eles. Revelá-lo significa criar um novo código metamórfico.

No esforço em esgotar o tema que a obcessiona, Ocampo aborda o eu a partir de

múltiplas linguagens, de modo que a voz do autor se divide e multiplica numa colagem de datas, línguas estrangeiras e cartas alheias e próprias.

A travessia efetuada através da linguagem, ilustrada pela busca constante da

propriedade e da pertenência, desemboca na apropriação de uma significante de origem alheio. A volta à casa paterna, Villa Ocampo, é eloqüente neste sentido: apropriar-se da casa, que tem o nome paterno, símbolo do poder patriarcal, para receber ali inúmeras visitas argentinas e estrangeiras, equivale a invadi-la para forçar seu sentido ampliando- o ao máximo. Doar essa casa a um organismo internacional é deixá-la para sempre em mãos de todos e de ninguém e dar-lhe linguagens plurais e sentidos múltiplos.

O quarto próprio jamais será próprio e o significado próprio, o eu, será sempre elidido. O texto autobiográfico nasce no corte existente entre significado, eu, e significante, casa-linguagem e cria um tecido que nunca consegue cicatrizar a ferida. As lutas entre todas essas tendências permanecem no texto sem chegar a uma solução de unidade. Ocampo em sua escritura problematiza constantemente a escritura, querendo decidir-se sobre qual o estilo seria melhor adotar, mas não consegue tomar uma decisão, já que, respostas às perguntas formuladas, jamais a satisfazem totalmente.

6. A CONDIÇÃO DO GÊNERO

Gênero é também, em sua segunda, mas primitiva acepção, uma maneira de fazer as coisas. Os setores mais liberais da investigação científica trabalham há muito tempo com a hipótese de que a ciência não é neutra, porque os resultados contradizem suas afirmações iniciais; mas o saber – em seu conjunto – não fez nenhum esforço de ética imprescindível, para descentralizar o sujeito da investigação humana em direção à complexidade de formas binárias de conhecimento da realidade que não excluam o feminino por definição.

A palavra homem para ser humano também representa um fator um tanto sexista. É lamentável que não haja nas línguas latinas, uma palavra equivalente ao

Mensch alemão para significar tanto homens quanto mulheres.

Os resultados dos estudos de gênero nas ciências sociais demonstram uma clara disfunção dos sistemas de conhecimento quando se aplicam novos padrões. O antropocentrismo e o logocentrismo que caracterizaram a cultura que estava em crise no século vinte, tiveram um grande componente sexista nunca reconhecido, e agora sofrem críticas pelo que têm de “politicamente incorreto” do que teria que ser visto como uma desonestidade intelectual com relação ao compromisso científico.

O século recém findo, conta entre suas características, o fato de ter sido cenário de uma pacífica, mas incessante luta pela emancipação das mulheres, pelas mudanças dos hábitos sociais e dos modos produtivos, cuja marca começou a se fazer sentir já no final do mesmo.

Quanto mais se pretende encerrar o feminismo na categoria política da reivindicação indiscriminada de igualdade, mais aparente fica o limite do saber cientítico quando se verificam as mudanças que o estudo do feminismo tem trazido para a elaboração de novas teorias do conhecimento.

Em texto intitulado Teresa de la Parra y Fray Luis de León: Imágenes de la

mujer y construcciones de lo femenino Carolina A. Navarrete González31 da Pontificia

Universidad Católica de Chile, refere-se a um manual de Fray Luis dedicado às esposas, elaborado em 1583, e reimpresso mais de doze vezes durante vários séculos; inspirado na Bíblia o autor considera que o estado de matrimônio exige da mulher casada a perfeição de se conservar pura e fiel ao marido, encarregando-se dos afazeres do lar e procurando ser tão valiosa como uma jóia para seu esposo; amando-o e ajudando-o nas

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http://www.ucm.es/info/especulo/numero33;tparrafr.html.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 95-99)