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Configuração do eu: a representação de s

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 41-45)

4. A LITERATURA DO EU EM VICTORIA OCAMPO

4.1 Configuração do eu: a representação de s

Três amigos de Victoria Ocampo dar-lhe-ão o mesmo conselho a respeito de como seria interessante que escrevesse. O primeiro a fazê-lo foi Paul Goussac, diretor da Biblioteca Nacional. Cito:

¿Por qué no elige otro género de tema menos dantesco, por no decir pedantesco, si es que siente verdadera necesidad de escribir? Por ejemplo, experiencias personales; diretamente vividas, etc. (…) Me aconsejó que me tomara a mí misma como tema de mis escritos si es que me encaprichaba en escribir; o me divertía hacerlo. (T.V. 5. 23)

Mais tarde será Ortega y Gasset quem a orienta a que cultive especialmente o gênero epistolar, em resposta à pergunta que lhe faz Victoria sobre se deveria escrever em sua revista Sur. Diz Ortega que ela deveria escrever “em um tono personal como el

de Montaigne, sobre los temas más personales que se me ocurrieran, Memórias, cartas, por ejemplo. (T.V.55).

Finalmente, em uma de suas cartas Virginia Woolf anima a escritora a escrever sua autobiografia.

Embora o conselho seja o mesmo, os autores citados adotam perspectivas bem diferentes. Por um lado, Groussac e Ortega aconselham a que escreva o gênero que consideram apto para uma mulher com pretensões literárias, por pertencer mais à esfera privada, um espaço considerado como próprio à escrita feminina naquela época. Virginia Woolf, ao contrário, que escreva no gênero autorizado às mulheres, mas adotando um espaço próprio como projeção externa. A opinião de Virgínia parece haver dado forças à Victoria para adotar um gênero literário relegado à vida privada, mas um gênero literário com ofício público, feminino e argentino.

Ao adotar este tipo de escritura, Ocampo se considera legatária de um esforço e de uma atitude que rompe barreiras para as futuras escritoras. Ela está plenamente consciente de estar abrindo caminhos no campo fechado da literatura até então exclusivamente masculina.

Victoria Ocampo escreverá sua Autobigrafia servindo-se de suas Cartas, Diário e Fotos. Em seus Testimonios serão desenvolvidos temas que ainda não estavam permitidos a uma mulher da alta sociedade.

Sylvia Molloy16 considera que não há uma inserção textual clara no relato da

vida de Ocampo. Diz ela:

... muitos encontros com livros aparecem no texto. O gesto simbólico se repete sem cansaço: uma cena de leitura que traz a seguinte, um livro traz outro livro, um descobrimento leva a outro, de forma que há muitos começos, tantos que se desfazem em uma vertiginosa corrente em que o gesto nu – ler – perpetua-se mesmo como impulso gerador de um único e consistente ato autobiográfico. [Em nota de pé de página

deste artigo, Molloy diz que “salta à vista a natureza

autobiográfica de toda a obra de Victoria Ocampo”]

Sylvia Molloy faz uma comparação entre duas fotos uma de Ocampo e outra de J.-P. Sartre. Ocampo traz um livro nas mãos e diz: trago um livro que havia sido lido

para mim e finjo estar lendo-o. Lembro-me perfeitamente da história, sei que está por trás destas letras que não consido entender. (AUT. I p. 81); Sartre em seu livro As palavras (Les mots) diz: “fingia ler. Seguia com os olhos as linhas negras sem pular nenhuma, e em voz alta contava a mim mesmo uma história, cuidando para pronunciar todas as sílabas” (ob.cit). Molloy demonstra a clara diferença que há no que se refere à

importância que a leitura teve para os dois escritores: Ocampo não teve como Sartre um leitor competente que lesse para ela os livros e que lhe ensinasse a amar a literatura. Sartre pertencia a uma família francesa culta ao passo que a de Victoria era uma família argentina que embora socialmente importante e rica era ligada ao campo, sem nenhuma espécie de tradição cultural. Em resumo, enquanto Ocampo relembra uma história que havia sido contada para ela, Sartre contava para ele uma história que ele próprio fabricava.

Para Victoria Ocampo ler é muito mais do que inteirar-se de algo novo referente ao mundo ou aos outros e se incorpora à bagagem dos próprios conhecimentos e experiências; é, igualmente, descobrir idéias e sentimentos já existentes que estavam escondidos ou pouco desenvolvidos no fundo de si mesma. Assim, ler será apoderar-se de aspectos desconhecidos que emergem à medida em que se lê convertendo-se num processo de comunicação consigo próprio e ao mesmo tempo um diálogo com o autor que lemos e com o qual discutimos concordando ou não. Finalmente, sua forma de ler redunda em um enriquecimento da própria expressão.

16 Molloy, Sylvia. Vale o escrito. A escrita autobiográfica na América Espânica. Ed. Argos. Chapecó.

SC. .2004.

Assim, uma das características essenciais do uso da leitura em Ocampo é o do autoconhecimento e da descoberta de si mesma, através da amizade com os livros.

O processo de explicar as características pessoais que definem o eu por meio da

literatura se mantém ao longo da Autobiografia. Como Don Quijote, Ocampo se deixa influenciar pelo que lê, formando e transformando a visão que tem sobre si própria. À função catártica da escritura acrescenta-se a compensatória da leitura. As histórias e os romances trazem emoção e dinamismo a sua experiência pessoal, sendo uma atração maior a liberdade gozada pelos personagens e negada a Victoria. Na adolescência, a leitura lhe proporciona sonhos impossíveis de serem realizados, uma vez que, nos livros, os apaixonados se comunicam livres de proibições: Los libros, los

libros, los libros eran un mundo nuevo en que reinaba una bendita liberdad. Yo vivía la vida de los libros, y no tenía que rendirle cuentas a nadie de este vivir, era cosa mia… (AUT. I. 117)

Viver “a vida dos livros” caracteriza bem a leitura praticada por Victoria que, apagando as distinções existentes entre realidade e ficção, converte-se num personagem a mais e participa da ação fictícia. Inversamente, o contato com seres de ficção lhe permite ver-se a si mesma como um personagem novelesco. A dinâmica entre os dois âmbitos tem lugar na intimidade e é o resultado de uma elaboração pessoal.

O alívio encontrado na escritura e a liberdade de tratar o quotidianamente proibido combinam-se nas cartas que Ocampo escreve a Delfina Bunge por um período de seis anos, em plena adolescência, e citadas de modo fragmentário no segundo volume de sua Autobiografia: El imperio insular. Nessas cartas ela já trata de temas que irá desenvolver em seus escritos posteriores onde suas ambições literárias misturam-se com a rebeldia contra a submissão da mulher na sociedade, a crítica de uma religião opressora e a exposição de suas teorias sobre o amor, o que irá coincidir com a primeira relação sentimental significativa de sua vida.

É de grande interesse o processo mental seguido pela protagonista. O jovem por quem pensa estar apaixonada, e que se tornará, mais tarde, um marido odiado, figura em suas cartas a Delfina Bunge sob o nome de Jérome (trata-se de Estrada). Nessa ficcionalização, Jérome torna-se um personagem novelesco, com todos os atributos dos heróis romanescos.

Ocampo confessa que procedeu do seguinte modo: Se adorna a ese alguien con

todas las cualidades que uno tiene (o quisiera tener); se le anima con la vida que vive

en nosotros; se le encendía con el amor que a una la quema.... Uno descubre que lo ha inventado todo.” (AUT. II, 198)

O que é realmente verdadeiro é a satisfação dos desejos do autor do texto que

consiste em transplantar sua própria fantasia para o texto.

Victoria Ocampo refere-se à leitura em termos semelhantes:

“ Esto les ocurre a los lectores que se vuelcan en lo que están leyendo, y colaboran con el autor 17 , si la obra, en alguna

forma, les permite hacerlo. A veces un libro que en sí no vale gran cosa, adquiere en ellos una resonancia mucho mayor y prolongada de la que merece. En la adolescencia, este fenómeno se da a menudo.” (AUT. II, 182)

Tanto o amor quanto a leitura produzem um reflexo do eu, uma projeção

especular: o leitor transforma-se em co-autor. No âmbito do real ocorre algo semelhante: o leitor concede às pessoas que o rodeiam atributos nem sempre existentes. A leitura, a interpretação e a escritura são atividades destinadas a criar um novo meio no qual os personagens reais contaminam, por assim dizer, os fictícios e vice-versa.

É, entretanto digno de nota, que Ocampo está plenamente consciente de que a

prática de tais atividades pode conduzir a erros. Se o leitor der valor a um texto que não o merece, na realidade pode cometer erros piores ainda. No seu caso o erro cometido a conduziu a um casamento fracassado com o próprio Jérome, pois o texto criado pela jovem continha leis inaplicáveis fora do campo escrito, o que fez com que ela própria caísse em sua armadilha:

“Seguía tejiendo en torno a las caras que me atraían toda una telaraña de sueños, atribuyendo al portador de la cara excelencias, virtudes, dotes, características que no poseía, o interpretándolo en el sentido que yo deseaba, si contradecía la línea por mí trazada... Yo misma caía en la propia telaraña que tendía, no en la que posiblemente otros me tendían.” (AUT.II, 165)

A narradora considera que lhe é impossível escrever romances ou fazer literatura

romanesca. Em carta a Bunge, explica sua impossibilidade de criar um personagem,

17 Ver Rayuela de Julio Cortázar. Victoria Ocampo não se enquadraria no que ele considerava como

sendo um lector-hembra. Cortázar, Julio. Rayuela. Ed. Andrés Amorós. Ediciones Cátedra S.A. 2000. P. 647.

pois todos eles seriam sempre seu próprio eu disfarçado. Ela se pergunta: ¿Cómo

demonios puede uno deshacerse de su “yo”? (AUT. II, 201).

A insistência com que ela se pergunta realça sua complexidade, pois descobre

que escrever o eu, mais do que uma forma de desfazer-se desse eu, é uma maneira de disfarçá-lo. As palavras afastam sem nunca conseguir transmitir exatamente a realidade, pois levam nelas uma falsificação.

Disso ressalta que o texto autobiográfico nunca pode deixar de participar da ficção. Por outro lado, é impossível negar a existência do sujeito e das experiências que descreve. O texto de Ocampo coloca o problema do gênero autobiográfico em novos termos. Decidir entre as alternativas opostas da transposição à palavra escrita de um eu extratextual gerador do texto e a alternativa de um eu, criado puramente por textos é reafirmar um modo de pensar tradicional, que não leva em consideração outras possibilidades.

Distinguir entre ficção e documento, optando por uma única possibilidade é desvirtuar o gênero deixando de lado as ambigüidades que o constituem. Um texto é constituído por uma série de máscaras que o desfiguram, o cobrem e o descobrem, como num palimpsesto.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 41-45)