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5. UMA MEMÓRIA HÍBRIDA

5.3 O lugar marginal

Se na casa que comparte com o marido, o personagem adquire certos direitos e

se converte em sujeito ativo, como escolher móveis e adornos, organizando o espaço em que se move, a palavra própria, que a separa do ambiente que a rodeia, continua sendo- lhe negada. As liberdades conseguidas, como leituras livres de censura e espetáculos sem controle paterno, não impedem que o casamento fracasse: cenas de ciúmes e brigas constituem o único intercâmbio dos cônjuges. E é somente por vontade do marido que o casal continua vivendo no mesmo espaço físico.

Ocampo dedica o terceiro volume de sua autobiografia, La rama de Salzburgo,

ao início e desenvolvimento da paixão que a une ao homem mais importante de sua vida, J. Às escondidas de seu marido e de seus pais, inicia uma relação ilegal e apaixonada que irá durar anos.

A vigilância sobre suas atividades continua por meio de Fani, antiga babá das

meninas Ocampo e que prossegue seu serviço como empregada de Victoria. Fani, longe de submeter-se a sua nova patroa, assume uma postura autoritária de guardiã da ordem social:

Su misión, encomendada por mi madre, era velar por mí y se excedía en su celo, de acuerdo con su moral [...] El fin justificaba cualquier medio para ella. Yo no tenía un día de paz. Me espiaba, y si me veía a veces llorar, rezongaba. El enemigo- amigo estaba en casa. (AUT. III, 35)

A mudança de estado civil e de casa produziu uma variação, não no sistema autoritário a que era submetida, mas na maneira como se exercia essa autoridade. O

enemigo-amigo supõe um refinamento e um controle; há uma maior igualdade entre

quem possui a voz do poder e quem a sofre.

A relação com J. se mistura com episódios dramáticos que colocam em perigo o

segredo que a rodeia. Uma série de cartas anônimas, cuja autoria é atribuída a Fani – acusa Victoria e pretende uma vez mais mantê-la sob vigilância. O novo sistema repressivo conduz, rapidamente, a uma maior rebelião e a uma ruptura mais definitiva com a ordem. A única saída possível desemboca no adultério. As mensagens anônimas supõem a ameaça do julgamento social e, mesmo se não corrigem a conduta, a obrigam a manter o decoro através do segredo. Por outro lado, os laços familiares constituem um elo que ela não se atreve a cortar; o carinho que sente por seus pais, assim como o temor de causar-lhes tristeza por saber que sua filha está sendo alvo de falatórios e de má reputação, a obrigam à moderação. Ocampo emprega a ambigüidade da escritura para burlar o controle e a condenação social.

À margem da sociedade, os amantes se encontram com certa liberdade em um

apartamento suburbano e, em conseqüência, marginal, e lá, pela primeira vez, a narradora leva uma vida plena:

Mi verdadera vida, durante esos años en que allí nos veíamos, estaba en la calle Garay. Esa calle tan fea, a orillas de la gran ciudad, sin otro encanto que la proximidad del Parque Lezama. (AUT. III, 67)

Podemos notar que a cidade representava a vida dentro das regras sociais e o

subúrbio a marginalidade, a ruptura, onde os meios de controle perdiam a sua eficácia. O personagem busca um espaço livre de leis e obstáculos onde possa emitir sua própria palavra, sua norma. O eu se divide em uma vida dupla: por um lado mantém as aparências e aceita as regras familiares e sociais dissimulando sua vontade e, por outro, às margens da cidade, dá voz à sua paixão verdadeira. O bairro periférico, sem normas nem estilo, consente o ilícito, a inversão das regras da “civilização”.

Nesse ambiente emerge outro eu, desconhecido dos ambientes centrais da

cidade. É o eu da escritora adulta que maneja a duplicidade e os jogos da linguagem de maneira consciente, sem a simplicidade da escritura infantil e juvenil. A nova escritura de Ocampo, na qual tenta analisar-se surge de uma adulteração voluntária, na qual finge

sua situação e esconde a verdade. Coincidem, assim, a ruptura das normas sociais e a aquisição de uma voz própria, que dá a conhecer através de seus escritos em meios de comunicação de grande alcance, como por exemplo, o jornal La Nación.

A relação entre o espaço da casa e a escritura expressa-se claramente em uma

resposta ao Epílogo que Ortega y Gasset escreve para De Francesca a Beatrice. Esse texto, o segundo que Ocampo escreve, origina-se em sua identificação com Francesca. Nele a narradora explica o motivo que a levou a escrevê-lo nesses termos:

El aspecto de una casa la víspera de una mudanza en desagradable y angustioso. Se han vaciado los armarios, las cómodas y la biblioteca. Se organiza un desorden que hace irreconocible cada cuarto. Aparecen los objetos más heteróclitos. Encuentra uno su lapicera cuando busca el cepillo de dientes, y cuando necesita su pañuelo se da con las sábanas.

En los pasillos hay que navegar entre baúles y cada cajón del escritorio está atacado de papeles y cartas que es preciso releer antes de romper, cuando se tendría la tentación de simplificar las cosas haciendo lo contrario.

Llega un momento en que la urgencia de ir a respirar a otro sitio es irresistible...

Con este espíritu he buscado yo refugio en Dante. Y también por este espíritu nunca se me ha ocurrido instalarme definitivamente en mi refugio. Bien o mal ordenada yo no podría nunca vivir fuera de mi casa – léase mi época. (FB., 123)

Nesse fragmento inscreve-se uma nova relação entre a casa e o eu. O texto de

Dante aparece como outro espaço - casa no qual encontra refúgio para sua confusão pessoal. O eu, confundido e deslocado por caminhos que experimentava, vê-se disperso em caixas e baús que o separam. A angústia do desconhecimento próprio traduz-se no encontro de textos ilegíveis e estranhos.

A casa cumpre, agora, uma dupla função: refere-se tanto ao eu – e, nesse ponto,

Ocampo coincide com Bachelard29 -, quanto a um texto escrito. A mudança coloca o eu

num lugar impreciso de transição; esses armários, cômodas, biblioteca, sem nada dentro podem ser vistos como metáforas de um eu vazio e deslocado que busca um significado que lhe corresponda e o preencha. Aqui, o eu não é concebido como um significado que deve ser representado ou que deve manifestar-se, pelo contrário. Ele é significante, mas “irreconhecível”, sem identidade, uma palavra solta. A mudança implica instabilidade

29

Bacbelard, Gaston. La poétique de l’espace. Presses Universitaires de France. Paris. France. 1967.

emocional; a narradora utiliza ambos os sentidos do texto reproduzido acima e o texto de um estranho satisfaz, nesse caso, a carência de sentido: cobre a falta e, ao servir de pre-texto ao texto próprio, oferece uma sutura para o corte sofrido.

O resultado dessa leitura-escritura em busca de uma identidade culmina com a

elaboração de papéis escritos e de livros que, colocados em bibliotecas e caixotes, têm a pretensão de colocar as coisas em seus lugares, de compor o eu, ordená-lo e manifestá- lo. Uma biblioteca de textos vários expõe o eu à própria vista. A escritura logra manifestá-lo por meio de intervenções metafóricas e de tergiversações que enfatizam a esperança de alcançar um lugar próprio que lhe pertença em sua totalidade. A linguagem literal, reguladora, de sentido único, que lhe inculcaram tanto na casa paterna quanto na casa do marido não lhe pertence: a sua fica alienada num espaço marginal, em uma linguagem metafórica.

A casa que até então cumpria a função metafórica definida assinalando

linguagens impostas pela autoridade muda e se torna uma figura multifacética já que atrái outros significados: o eu e a escritura. A narradora cumpre com a profecia de seu nome nas ruas; a escritura a conduz longe da casa paterna de sentido unívoco através de labirintos de palavras confusas. A ordem que busca na palavra escorregadia ela a dirige a uma plurivalência.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 87-90)